1. 1858-1953: Cem anos de solidão
Ao deixar de lado os Grundrisse, em maio de 1858, para se dedicar ao trabalho da Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx utilizou passagens daquele na elaboração deste último texto, mas, em seguida, referiu-se pouquíssimas vezes a ele novamente. Na verdade, embora tivesse o hábito de fazer referência a seus próprios estudos precedentes, chegando a transcrever passagens inteiras deles, os manuscritos preparatórios d’O capital, com exceção daqueles de 1861-1863, não contêm nenhuma referência aos Grundrisse. Esta obra se situa entre tantos outros esboços em que Marx não tinha intenção de se deter.
Pode não haver certeza sobre o assunto, mas é provável que nem mesmo Friedrich Engels tenha lido os Grundrisse. Como é sabido, Marx logrou terminar, até sua morte, apenas o primeiro volume d’ O capital e os manuscritos inacabados do segundo e terceiro volumes foram selecionados e reunidos para publicação por Engels. No curso desse trabalho, ele deve ter examinado dezenas de cadernos contendo esboços preliminares d’O capital, e é plausível admitir que, ao colocar alguma ordem na montanha de papéis, ele tenha folheado os Grundrisse e concluído que era uma versão prematura do trabalho de seu amigo – anterior até à Contribuição à Crítica da Economia Política de 1859 – e que não poderia, portanto, ser utilizada para seus propósitos. Além disso, Engels nunca se referiu aos Grundrisse, nem em seus prefácios aos dois volumes d’O capital que se encarregou de publicar, nem em sua própria coleção imensa de cartas.
Depois da morte de Engels, grande parte dos textos originais de Marx foi entregue ao arquivo do Partido Social-Democrata Alemão (SPD) em Berlim, onde foram tratados com negligência extrema. Conflitos políticos no interior do Partido impediram a publicação de numerosos materiais importantes que Marx havia deixado para trás; na verdade, eles levaram a desmembrar os manuscritos e por muito tempo impediram a publicação da edição completa dos trabalhos dele. Não deixaram ninguém ficar responsável por um inventário do legado intelectual de Marx, de modo que os Grundrisse continuaram desconhecidos ao lado de outros textos.
A única parte desse legado que veio ao conhecimento público neste período foi o “Prefácio”, que Karl Kautsky publicou em 1903 naDie Neue Zeit (Os Novos Tempos), [1] com uma breve nota que o apresentou como um “esboço incompleto”, datado de 23 de agosto de 1857. Argumentando que o texto era a introdução para a obra magna de Marx, Kautsky deu a ele o títuloEinleitung zu einer Kritik der politischen Ökonomie ( Prefácio à crítica da economia política) e afirmou que “apesar de seu caráter incompleto”, o texto “ofereceu um número vasto de novos pontos de vista”.[2] Interesse considerável, na verdade, era demonstrado pelo texto: as primeiras versões em outras línguas consumaram-se em francês (1903) e em inglês (1904), e rapidamente ele se tornou divulgado de modo mais amplo depois de Kautsky publicá-lo em 1907 como um apêndice à Contribuição à Crítica da Economia Política. Cada vez mais traduções apareceram – incluindo a russa (1922), a japonesa (1926), a grega (1927) e a chinesa (1930) – até que se tornou um dos trabalhos mais comentados de toda a produção teórica de Marx.
Enquanto o Prefácio contou com a sorte, os Grundrisse continuaram desconhecidos por um longo período. É difícil acreditar que Kautsky não tenha tomado conhecimento do manuscrito inteiro com o Prefácio, mas nunca fez qualquer menção a ele. E um pouco depois, quando decidiu publicar alguns dos escritos de Marx desconhecidos até então entre 1905 e 1910, ele se concentrou no conjunto de textos de 1861-1863, para o qual deu o título Teorias da mais-valia.
A descoberta dos Grundrisse ocorreu em 1923, graças a David Ryazanov, diretor do Instituto Marx-Engels (IME) em Moscou e organizador da Marx Engels Gesamtausgabe (MEGA), as obras completas de Marx e Engels. Posteriormente, ao investigar o Nachlass em Berlim, ele revelou a existência dos Grundrisse em uma reportagem para a Academia Socialista de Moscou sobre a obra de Marx e Engels:
Eu encontrei entre os textos de Marx uns oito cadernos de estudos de economia… O manuscrito pode ser datado de meados de 1850 e contém os primeiros esboços da obra de Marx [Das Kapital], cujo título ele não havia ainda cunhado na época; [também] representa a primeira versão de sua Contribuição à Crítica da Economia Política. [3]
“Em um desses cadernos”, Ryazanov prossegue, “Kautsky encontrou o ‘ Prefácio’ à Contribuição à Crítica da Economia Política” – e considerou os manuscritos preparatórios d’O capital de “interesse excepcional para aqueles que abordam o desenvolvimento intelectual de Marx e seu próprio método de trabalho e de pesquisa”. [4]
Por meio de um acordo entre o IME, o Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt e o Partido Social-Democrata Alemão (que ainda tinha custódia doNachlass Marx-Engels) para a publicação da MEGA, os Grundrisse foram fotografados com muitos outros escritos inéditos e começaram a ser estudados por especialistas em Moscou. Entre 1925 e 1927, Pavel Veller do IME catalogou todos os materiais preparatórios d’ O capital, o primeiro dos quais era o próprio Grundrisse. Em 1931, ele foi completamente desvendado e datilografado e, em 1933, uma parte foi publicada em russo como “Capítulo sobre dinheiro”, seguida dois anos depois por uma edição em alemão. Finalmente, em 1936, o Instituto Marx-Engels-Lenin (IMEL, sucessor do IME) adquiriu seis dos oitos cadernos dos Grundrisse, que possibilitaram resolver o restante dos problemas editoriais.
Em 1939, por conseguinte, o último manuscrito importante de Marx – um trabalho extenso de um dos mais férteis períodos de sua vida – apareceu em Moscou sob o título dado a ele por Veller: Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie (Rohentwurf) 1857-1858. Dois anos mais tarde, aparece seguido de um apêndice (Anhang), incluindo os comentários de Marx de 1850-1851 sobre os Princípios de economia política e tributação de Ricardo, suas observações sobre Bastiat e Carey, seu próprio sumário para osGrundrisse, e o material preparatório (Urtext) da Contribuição à Crítica da Economia Política de 1859. O prefácio do IMEL para a edição de 1939 destacou seu valor excepcional: “o manuscrito de 1857-1858, publicado na íntegra pela primeira vez neste volume, marcou uma decisiva fase na obra econômica de Marx”. [5]
Embora as linhas editoriais e o formato da publicação fossem semelhantes, os Grundrisse não foram incluídos nos volumes da MEGA, mas apareceram em edição à parte. Além disso, a proximidade da Segunda Guerra Mundial fez que a obra permanecesse virtualmente desconhecida: as três mil cópias tornaram-se rapidamente muito raras, e apenas pouquíssimas conseguiram atravessar as fronteiras soviéticas. Os Grundrisse não foram publicados na Sochinenya de 1928-1947, a primeira edição russa das obras de Marx e Engels, e sua primeira republicação em alemão teve de aguardar até 1953. Embora seja surpreendente que um texto como os Grundrisse fosse publicado ainda durante a era Stálin, herético como certamente era em relação aos então indiscutíveis cânones do diamat, o “materialismo dialético” de estilo soviétivo, devemos também lembrar que era naquela época o mais importante dos escritos de Marx a não chegar a circular na Alemanha. Sua publicação posterior, que atingiu na Berlim Oriental as trinta mil cópias, era parte das comemorações do Karl Marx Jahr,[6] do septuagésimo aniversário da morte de seu autor e do centésimo qüinquagésimo de seu nascimento. Escritos em 1857-1858, os Grundrisse foram disponibilizados para leitura em todo o mundo apenas a partir de 1953, depois de cem anos de solidão.
2. Quinhentas mil cópias circulando no mundo
Apesar da ressonância desse importante novo manuscrito que antecedeu O capital, e apesar do valor teórico atribuído a ele, as edições em outras línguas demoraram a aparecer. Depois do Prefácio, outro extrato, as “Formas que precedem a produção capitalista”, era o primeiro a despertar interesse. Esse extrato foi traduzido em russo em 1939, e posteriormente do russo para o japonês em 1947-1948. Posteriormente, a edição alemã separada dessa parte e uma tradução para o inglês contribuíram para assegurar um amplo número de leitores: a edição alemã, que surgiu em 1952 como parte da Kleine Bücherei des Marxismus-Leninismus (Pequena Biblioteca do Marxismo-Leninismo), serviu de base às versões húngara e italiana (1953 e 1954, respectivamente); enquanto a tradução inglesa, publicada em 1964, contribuiu para difundir o texto nos países anglófonos e, por meio das traduções na Argentina (1966) e Espanha (1967), para os leitores do mundo de língua espanhola. O organizador dessa edição inglesa, Eric Hobsbawm, acrescentou um prefácio que ajudou a relevar sua importância: Formações econômicas pré-capitalistas. Conforme ele observou, era
a tentativa mais sistemática [de Marx] de enfrentar o problema da evolução histórica”, e “pode-se afirmar, sem hesitação, que qualquer discussão histórica marxista realizada sem levar em consideração este trabalho… terá de ser reconsiderada à luz do mesmo. [7]
Cada vez mais especialistas em todo o mundo começaram, na verdade, a se interessar por esse texto, que apareceu em muitos outros países e em todos lugares propiciou discussões teóricas e históricas importantes. As traduções dos Grundrisse, na íntegra, iniciaram-se no final da década de 1950; sua difusão foi um processo lento, mas permanente, que finalmente permitiu uma apreciação mais acabada, e em alguns aspectos diferente, da obra de Marx. Os melhores intérpretes dos Grundrisse abordaram-no no original, mas seu estudo mais amplo – entre os especialistas que não liam em alemão e, sobretudo, entre os militantes políticos e estudantes universitários – ocorreu somente depois de sua publicação em várias línguas nacionais.
As primeiras a aparecer foram no Oriente: no Japão (1958-1965) e na China (1962-1978). Uma edição russa saiu na União Soviética somente em 1968-1969, como um suplemento à segunda edição ampliada da Sochinneniya (1955-1966). Sua exclusão prévia dessa edição era de todas a mais séria, pois tinha resultado em uma omissão parecida com a da Marx-Engels-Werke (MEW) de 1956-1968, que reproduziu a seleção soviética de textos. A MEW – a edição consideravelmente mais utilizada das obras de Marx e Engels, bem como a fonte para as traduções em muitas outras línguas – não continha os Grundrisse até sua publicação como um suplemento em 1983.
Os Grundrisse também começaram a circular na Europa Ocidental no final dos anos 1960. A primeira tradução apareceu na França (1967-1968), mas era de inferior qualidade e teve de ser substituída por uma tradução mais fiel ao texto em 1980. Uma versão italiana deu seqüência entre 1968 e 1970 à iniciativa significativamente vinda, como na França, de uma editora independente do Partido Comunista.
O texto foi publicado na Espanha na década de 1970. Se excluirmos a versão de 1970-1971 publicada em Cuba, que tinha pouco valor como era o caso da elaborada na versão francesa, e cuja circulação permaneceu confinada nos limites daquele país, a primeira tradução propriamente espanhola foi realizada na Argentina entre 1971 e 1976. Foi seguida por outras três produzidas conjuntamente na Espanha, Argentina e México, tornando o espanhol a língua com o maior número de traduções dos Grundrisse.
A tradução inglesa foi precedida em 1971 por uma seleção de extratos, organizada por David McLellan, e gerou expectativas nos leitores do texto: “Os Grundrisse são muito mais que um esboço aproximado d’ O capital”;[8] na verdade, mais do que qualquer outra obra, “contêm uma síntese de várias linhas do pensamento de Marx… Em um certo sentido, nenhuma das obras de Marx é completa, mas a mais completa delas é os Grundrisse”. [9] A tradução completa chegou finalmente em 1973, depois de vinte anos da edição original em alemão. Seu tradutor, Martin Nicolaus, observou em uma introdução:
Além de seu grande valor histórico e biográfico, eles [os Grundrisse] acrescentam muitos novos materiais, e figuram-se como o único esboço de todo o projeto de economia política. … Os Grundrisse desafiam e colocam em questão muitas interpretações importantes de Marx ainda aceitas. [10]
Os anos 1970 foram também cruciais para as traduções na Europa Oriental. Uma vez que a luz verde havia sido dada na União Soviética, não havia mais nenhum grande obstáculo para seu aparecimento nos países “satélites”: Hungria (1972), Tchecoslováquia (1971-1977 em tcheco, em 1974-1975 em eslovaco) e Romênia (1972-1974), bem como na Iugoslávia (1979). Durante o mesmo período, duas contrastantes edições dinamarquesas foram lançadas no mercado quase ao mesmo tempo: uma publicada por uma editora ligada ao Partido Comunista (1974-1978), e outra, por uma editora próxima à Nova Esquerda (1975-1977).
Nos anos 1980, os Grundrisse foram também traduzidos no Irã (1985-1987), onde constituiu a primeira edição minuciosa em persa de todos os trabalhos de Marx, e em um número crescente de países europeus. A edição eslovena data de 1985, e a polonesa e a finlandesa de 1986 (esta última com o apoio soviético). Com a dissolução da União Soviética e o fim do que foi conhecido como “socialismo realmente existente”, que na realidade foi uma descarada negação do pensamento de Marx, houve um período de queda da publicação dos escritos de Marx. No entanto, nem nos anos em que o silêncio envolvendo seu autor era rompido somente por pessoas que o relegavam com absoluta certeza ao esquecimento os Grundrisse deixaram de ser traduzidos em outras línguas. As edições da Grécia (1989-1992), da Turquia (1999-2003), da Coréia do Sul (2000) e do Brasil (prevista para 2009) fazem dos Grundrisse o trabalho de Marx com o maior número de novas traduções nas duas últimas décadas.
Ao todo, os Grundrisse foram traduzidos na íntegra em 22 línguas, [11] compreendendo um total de 32 versões diferentes. Sem contar as edições parciais, que foram impressas em mais de quinhentas mil cópias [12] – um quadro que surpreenderia enormemente o homem que escreveu esse texto apenas para resumir, com a maior imprecisão, os estudos econômicos que havia empreendido até aquele momento.
3. Leitores e intérpretes
A história da recepção dos Grundrisse, bem como de sua difusão, é marcada por um começo um tanto tardio. A razão decisiva disso, além das hesitações associadas a sua redescoberta, é certamente a complexidade do próprio manuscrito esboçado de modo incompleto e impreciso, e a dificuldade de traduzi-lo e de interpretá-lo em outras línguas. Em relação a isso, a autoridade no assunto Roman Rosdolsky observou:
Em 1948, quando pela primeira vez eu tive a sorte de ter acesso a uma das raríssimas cópias na época… ficou claro desde o princípio que era um trabalho de fundamental importância para a teoria marxista. Contudo, seu formato inusitado e até certo ponto sua maneira obscura de expressão deixaram-no muito distante do alcance de um amplo círculo de leitores. [13]
Essas considerações levaram Rosdoslky a tentar fazer uma exposição clara e um exame crítico do texto: como resultado, a obraZur Entstehungsgeschichte des Marxchen ‘Kapital’.Der Rohentwurf des ‘Kapital’ 1857-58 (Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx), que apareceu em alemão em 1968, é a primeira e ainda a principal monografia dedicada aos Grundrisse. Traduzida em muitas línguas, encorajou a publicação e a circulação da obra de Marx e tem tido uma influência considerável sobre todos seus intérpretes subseqüentes.
O ano de 1968 foi importante para os Grundrisse. Além do livro de Rosdolsky, o primeiro ensaio sobre essa obra em inglês apareceu na edição de março-abril da New Left Review: “The Unknown Marx”, de Martin Nicolaus,[14] que teve o mérito de tornar os Grundrisse conhecidos de modo mais amplo e destacar a necessidade de uma tradução completa dessa obra. Enquanto isso, na Alemanha e na Itália, os Grundrisse persuadiram algumas das lideranças na revolta estudantil, que ficaram empolgadas com o conteúdo radical e explosivo e elaboraram suas alternativas através das páginas dessa obra. O fascínio era irresistível especialmente entre aqueles que na Nova Esquerda estavam comprometidos com a superação da interpretação de Marx oriunda do marxismo-leninismo.
Por outro lado, os tempos estavam mudando no Oriente também. Depois de um período inicial no qual os Grundrisse foram quase completamente ignorados, ou vistos com desconfiança, o estudo introdutório de Vitalii Vygodskii’s – Istoriya odnogo velikogo otkrytiya Karla Marksa (A história de uma grande descoberta: como Marx escreveu O capital ), publicado na Rússia em 1965 e na República Democrática Alemã em 1967 – tomou uma direção política diferente. Ele definiu os Grundrisse como um “trabalho de gênio”, que “nos esclarece sobre o ‘laboratório criativo de Marx’ e nos capacita a seguir passo a passo o processo no qual Marx elaborou sua teoria econômica”, e para a qual foi necessário, portanto, dar a devida atenção. [15]
No espaço de apenas poucos anos os Grundrisse tornaram-se um texto-chave para muitos marxistas influentes. Além daqueles já mencionados, os especialistas que em particular se interessavam pela obra, eram: Walter Tuchscheerer na República Democrática Alemã, Alfred Schmidt na República Federativa Alemã, os membros da Escola de Budapeste na Hungria, Lucien Sève na France, Kiyoaki Hirata no Japão, Gajo Petrović na Iugoslávia, Antonio Negri na Itália, Adam Schaff na Polônia e Allen Oakley na Austrália. No geral, tornou-se um trabalho com o qual qualquer estudioso sério de Marx tinha de lidar. Com várias nuances, os intérpretes dos Grundrisse se dividiram entre aqueles que o consideravam um trabalho autônomo completo em si conceitualmente e outros que o viam como um manuscrito prematuro que meramente preparou o caminho para O capital.
O cenário ideológico das discussões sobre os Grundrisse – o centro da disputa era a legitimidade ou ilegitimidade das abordagens de Marx, com suas enormes repercussões políticas – propiciou o desenvolvimento de interpretações equivocadas e que parecem hoje ridículas. Um dos mais entusiasmados comentadores dos Grundrisse argumentou até que este era teoricamente superior a O capital, apesar dos dez anos a mais de pesquisa intensa utilizados para a elaboração deste último. De modo análogo, entre os principais detratores dos Grundrisse, havia alguns que alegavam que, apesar das partes importantes para nosso entendimento da relação de Marx com Hegel e apesar das passagens significativas sobre alienação, esse texto não acrescentou nada para o que já era conhecido sobre Marx.
Não foram apenas essas as leituras contrastantes dos Grundrisse, havia também não leitores da obra – o mais notável e representativo exemplo foi o de Louis Althusser. Ainda que tenha tentado pôr em evidência os supostos silêncios de Marx e ler O capital com o objetivo de “tornar visível o que há de invisível nele”, [16] ele permitiu a si próprio não levar em consideração uma massa considerável de centenas de páginas escritas dos Grundrisse e efetuar uma divisão (debatida calorosamente mais tarde) do pensamento de Marx entre as obras de juventude e as obras de maturidade, sem tomar conhecimento do conteúdo e do significado dos manuscritos de 1857-8. [17]
Desde meados dos anos 1970, contudo, os Grundrisse angariaram um número bastante significativo de leitores e intérpretes. Dois comentários extensos apareceram: um em japonês em 1974 [18] e o outro em alemão em 1978,[19] mas muitos outros autores também escreveram sobre a obra. Vários especialistas reconheciam-no como um texto de importância vital para uma das questões debatidas de modo mais amplo, relacionadas ao pensamento de Marx: sua dívida intelectual com Hegel. Outros estavam fascinados pelas quase proféticas declarações nas passagens sobre maquinaria e automação, e no Japão os Grundrisse também foram lidos como um texto altamente atual para nosso entendimento da modernidade. Nos anos 1980, os primeiros estudos detalhados começaram a aparecer na China, onde a obra serviu para lançar luz sobre a gênese d’ O capital, enquanto na União Soviética uma coletânea de textos foi dedicada integralmente aos Grundrisse. [20]
Nos anos recentes, a capacidade contínua das obras de Marx de explicar (como também de criticar) o modo capitalista de produção tem proporcionado uma renovação do interesse por parte de diversos especialistas internacionais. [21] Se essa renovação perdurar e se for acompanhada por uma nova demanda por Marx no campo da política, os Grundrisse certamente provarão uma vez mais ser um de seus escritos capazes de despertar maior atenção.
Enquanto isso, na esperança de que “a teoria de Marx seja uma fonte viva de conhecimento e de prática política para o qual esse conhecimento se dirige”,[22] a história apresentada aqui da difusão e recepção global dos Grundrisse é proposta como um reconhecimento modesto de seu autor e como uma tentativa de reconstruir um capítulo ainda não escrito na história do marxismo.
Apêndice: Tabela cronológica de traduções dos Grundrisse
1939-41 | Primeira edição alemã |
1953 | Segunda edição alemã |
1958-65 | Tradução japonesa |
1962-78 | Tradução chinesa |
1967-1968 | Tradução francesa |
1968-1969 | Tradução russa |
1968-1970 | Tradução italiana |
1970-1971 | Tradução espanhola |
1971-1977 | Tradução tcheca |
1972 | Tradução húngara |
1972-1974 | Tradução romena |
1973 | Tradução inglesa |
1974-1975 | Tradução eslovaca |
1974-1978 | Tradução dinamarquesa |
1979 | Tradução sérvia/sérvio-croata |
1985 | Tradução eslovena |
1985-1987 | Tradução persa |
1986 | Tradução polonesa |
1986 | Tradução finlandesa |
1989-1992 | Tradução grega |
1999-2003 | Tradução turca |
2000 | Tradução coreana |
2008 | Tradução portuguesa |
References
1. O autor traduziu todos os títulos de livros, artigos e revistas que se encontravam numa língua diferente do inglês – língua original deste artigo. Nessa tradução, respeitamos esse procedimento do autor, com a diferença que apresentamos os títulos em português, fazendo obviamente alguns ajustes nos casos em que a edição brasileira do texto não reproduzir literalmente a tradução do título original. (N.T.)
2. Karl M. “Einleitung zu einer Kritik der politischen Ökonomie”. Die Neue Zeit, ano 21, v.1, n.1, p.710.
3. David Ryazanov “ Neueste Mitteilungen über den literarischen Nachlaß von Karl Marx und Friedrich Engels ” (Últimas notícias sobre o legado literário de Karl Marx e Friedrich Engels). Archiv für die Geschichte des Sozialismus und der Arbeiterbewegung , ano 11, 1925, p.393-4.
4. Ibidem, p.394.
5. Marx-Engels-Lenin-Institut. “Vorwort” (Préfácio) In: Karl M. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie (Rohentwurf) 1857-1858 . Moscou, Verlag für Fremdsprachige Literatur, 1939, p.VII.
6. Ano Karl Marx. (N.T.)
7. Eric Hobsbawm. “Introduction” In: Karl Marx. Pre-Capitalist Economic Formations. London, Lawrence & Wishart, 1964, p. 10. [N. T.] Ver também edição brasileira: Eric Hobsbawm. Introdução. In: Karl Marx. Formações econômicas pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p.14.
8. David McLellan. Marx’s Grundrisse. London: Macmillan, 1971, p.2.
9. Ibidem, p.14-5.
10. Martin Nicolaus. Foreword. Karl Marx. Grundrisse. Harmondsworth, Peguin Books, 1973, p.7. (N.T.) Ver também a edição brasileira: Martin Nicolaus. Introdução. In: César Bejamin (Org.) Marx e o socialismo. São Paulo: Expressão Popular, 2003.
11. Ver a tabela cronológica de traduções no Apêndice 1. Às traduções completas mencionadas acima devem ser acrescentadas as edições em sueco (Karl Marx. Grunddragen i kritiken av den politiska ekonomin. Stockholm, Zenit/R&S, 1971) e macedônio (Karl Marx. Osnovi na kritikata na politi kata ekonomija (grub nafrlok): 1857-1858 . Skopje, Komunist, 1989), assim como as traduções doPrefácio e das Formas que precedem a produção capitalista publicadas em diversas línguas, do vietnamita ao norueguês, do árabe ao holandês, do hebreu ao búlgaro.
12. O total foi calculado levando em consideração a tiragem observada durante pesquisa nos países em questão.
13. Roman Rosdolsky. The making of Marx’s ‘Capital’ (v.1). London: Pluto Press, 1977. (N.T.) Ver também edição brasileira: Roman Rosdolsky. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Ed. Uerj/Contraponto, 2001.
14. Ver versão em língua portuguesa desse artigo: Martin Nicolaus. “ Marx desconhecido”. In: Robin Blackburn (Org.) Ideologia na ciência social: ensaios críticos sobre a teoria social . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. ([N.T.)
15] Vitalli Vygodskii. The story of a great discovery: how Marx wrote “Capital”. Tunbridge Wells: Abacus Press, 1974, p.44.
16. Louis Althusser e Étienne Balibar. Reading Capital. London: Verso, 1979, p.32. (N.T.) Ver também edição brasileira: Louis Althusser e Étienne Balibar. Ler O capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
17. Ver Lucien Sève. Penser avec Marx aujourd’hui. Paris: La Dispute, 2004, que recorda como “com a exceção de textos tais como o Prefacio … Althusser nunca leu os Grundrisse, no sentido real da palavra leitura” (p.29). Ao adaptar o termo “corte epistemológico” (coupure epistémologique) de Gaston Bachelard, que o próprio Althusser tinha emprestado e feito uso, Sève fala de um “corte bibliográfico ( coupure bibliographique) artificial que resultou nas visões mais equivocadas de sua gênese e, portanto, de sua coerência com o pensamento maduro de Marx” (p.30).
18. Kiriro Morita e Toshio Yamada.Komentaru keizaigakuhihan’yoko (Comentários sobre os Grundrisse), Tokyo: Nihonhyoronsha, 1974.
19. Projektgruppe Entwicklung des Marxschen Systems. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie (Rohentwurf) . Kommentar. Hamburg, VSA, 1978.
20. V.V.A.A. Pervonachal’ny variant “Kapitala”. Ekonomicheskie rukopisi K. Marksa 1857-1858 godov (A primeira versão d’O capital, Manuscritos Econômicos de 1857-1858, de K. Marx). Moscow: Politizdat, 1987.
21. Ver Marcello Musto. “The rediscovery of Karl Marx”. International Review of Social History, n.52/53, p. 477-98, 2007.
22. Roman Rosdolsky, op. cit., p.xiv.