Em 1857, Marx estava convencido de que a crise financeira que se desenvolvia em nível internacional tinha criado as condições para um novo período revolucionário em toda a Europa. Ele havia esperado por esse momento desde os levantes populares de 1848 e agora, que ele parecia haver finalmente chegado, Marx não queria que os acontecimentos o apanhassem despreparado. Por isso, decidiu retomar seus estudos econômicos e dar-lhes uma forma acabada.
Por onde começar? Como principiar a crítica da economia política, aquele projeto ambicioso e árduo já tantas vezes iniciado e interrompido? Essa foi a primeira pergunta que Marx fez a si mesmo quando retomou o trabalho. Duas circunstâncias tiveram um papel crucial na formulação da resposta: a primeira foi que ele considerava que, apesar da validade de algumas teorias, a ciência econômica ainda não dispunha de um procedimento cognitivo para captar e explicar corretamente a realidade; e a segunda foi que ele sentiu a necessidade de fundamentar os argumentos e a ordem da exposição antes de iniciar a tarefa da composição. Essas considerações o levaram a aprofundar-se em problemas de método e a formular os princípios norteadores de sua pesquisa. O resultado foi um dos manuscritos mais debatidos de toda a sua obra: a chamada Introdução de 1857.
A intenção de Marx certamente não era escrever um sofisticado tratado metodológico, mas sim deixar claro para si mesmo, perante seus leitores, que orientação ele deveria seguir na longa e rica jornada crítica que tinha pela frente. Isso era também necessário para revisar a enorme massa de estudos econômicos que ele tinha acumulado desde meados da década de 1840 . Assim, juntamente com as observações sobre o emprego e a articulação de categorias teóricas, essas páginas contêm um número de formulações essenciais para seu pensamento que ele julgou indispensável resumir de novo – especialmente aquelas relativas à sua concepção da história –, bem como uma lista muito pouco sistemática de questões para as quais as soluções permaneciam problemáticas.
Essa mistura de demandas e objetivos, o curto período para sua elaboração (menos de uma semana) e, acima de tudo, o caráter provisório dessas notas as torna extremamente complexas e controvertidas. Não obstante, como contém o pronunciamento mais extenso e detalhado feito por Marx sobre questões epistemológicas, a “Introdução” é um elemento importante para a compreensão de seu pensamento e uma chave para a interpretação dos Grundisse em sua totalidade.
A história e o indivíduo social
Seguindo seu estilo habitual, Marx alterna na “Introdução” a exposição de suas próprias ideias com a crítica de seus opositores teóricos. O texto é dividido em quatro seções:
- “A produção em geral;
- A relação geral entre produção, distribuição, troca e consumo;
- O método da economia política;
- Meios (forças) de produção e relações de produção, relações de produção e relações de intercâmbio etc.” [2].
A primeira seção inicia com uma declaração de intenções, que imediatamente precisa o campo de estudo e assinala o critério histórico: “o objeto nesse caso é, primeiramente, a produção material. Indivíduos produzindo na sociedade – por isso, o ponto de partida é, naturalmente, a produção dos indivíduos socialmente determinada”. O alvo polêmico de Marx eram as robinsonadas do século XVIII [3], o mito de Robinson Crusoé como paradigma do homo oeconomicus, ou a projeção de fenômenos típicos da era burguesa sobre todas as outras sociedades que existiram desde tempos imemoriais.
Na realidade, o indivíduo em isolamento simplesmente não existiu antes da época capitalista. Conforme afirmou Marx em outra passagem dosGrundrisse: “Ele aparece originalmente como umser genérico, ser tribal, animal gregário” [4]. Essa dimensão coletiva é a condição para a apropriação da terra, “o grande laboratório, o arsenal, que fornece tanto o meio de trabalho quanto o material de trabalho, bem como a sede, a base da comunidade”[5] [ Basis der Gemeinwesens]. Na presença dessas relações primais, a atividade dos seres humanos é diretamente vinculada à terra; existe uma “unidade natural do trabalho com seus pressupostos objetivos” e o indivíduo vive em simbiose com outros como ele (seus semelhantes) [6]. A esse respeito, Marx escreve na Introdução: “quanto mais fundo voltamos na história, mais o indivíduo, e por isso também o indivíduo que produz, aparece como dependente [unselbstständig], como membro de um todo maior”[7].
Os economistas clássicos tinham invertido essa realidade, com base no que Marx considerava uma fantasia inspirada no direito natural. Adam Smith e David Ricardo descreviam um produto altamente desenvolvido da sociedade em que viviam – o indivíduo burguês isolado – como se ele fosse uma manifestação espontânea da natureza. O que surgia das páginas de seus escritos era um indivíduo mitólogico, atemporal, postulado pela natureza, cujas relações sociais eram sempre as mesmas e cujo comportamento econômico tinha um caráter antropológico desprovido de história [8]. Segundo Marx, os intérpretes de cada perído histórico têm regularmente caído na ilusão de que os aspectos mais marcantes de sua época estiveram presentes desde tempos imemoriais.
Depois de esboçar a gênese do indivíduo capitalista e demonstrar que a produção moderna se ajusta somente a “um determinado estágio de desenvolvimento social – da produção de indivíduos sociais”, Marx assinala um segundo requerimento teórico, a saber, denunciar a mistificação praticada por economistas com relação ao conceito de “produção em geral” [ Production im Allgemeinem]. Isso é uma abstração, uma categoria que não existe em qualquer estágio concreto da realidade. Entretanto, como todas as épocas de produção têm certos traços comuns, características comuns [gemeinsame Bestimmungen], Marx reconhece que “produção em geral é uma abstração, mas uma abstração razoável, na medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum”, dispensando assim repetições inúteis para o acadêmico que procura reproduzir a realidade pelo pensamento [9].
Os economistas burgueses pretendiam mostrar “a eternidade e a harmonia das relações sociais existentes” [10]. Em contrapartida, Marx afirmava que eram as características específicas de cada formação socioeconômica que tornava possível distingui-la das demais, davam impulso ao seu desenvolvimento e permitiam aos acadêmicos entender as verdadeiras mudanças históricas.
Embora a definição dos elementos gerais de produção seja “cindido em diferentes determinações. Algumas determinações pertencem a todas as épocas; outras são comuns apenas a algumas”, mas certamente há entre seus componentes universais, o trabalho humano e o material fornecido pela natureza[11], uma vez que, sem um sujeito produtor e um objeto trabalhado, não poderia haver produção de qualquer tipo. Contudo, os economistas introduziram um terceiro pré-requisito da produção: “um estoque, previamente acumulado, de produtos de trabalho anterior, ou seja, capital” [12]. Para Marx, a crítica desse último elemento era essencial para revelar o que ele considerava uma limitação fundamental dos economistas. Também lhe parecia evidente que nenhuma produção seria possível sem um instrumento de trabalho, ainda que fosse apenas a mão humana, ou sem trabalho anterior acumulado, ainda que fosse apenas sob a forma dos movimentos repetitivos do homem primitivo. Embora concordando que o capital era trabalho acumulado e um instrumento de produção, diferentemente de Smith, Ricardo e John Stuart Mill, ele não concluía que tivesse sempre existido.
Interpreta “a concepção do capital simplesmente sob seu aspecto material, como instrumento de produção, prescindindo inteiramente da forma econômica [ ökonomischen Form] que faz do instrumento de produção capital, enreda os economistas em todo tipo de dificuldades” [13] e na crença de “que existe uma única relação econômica que recebe diversos nomes” [14]. Ignorar as diferenças expressas na relação social significa abstrair a diferença específica, que é o ponto nodal de tudo. Assim, na “Introdução”, Marx escreve que o capital é uma relação geral [allgemeines], eterna, da natureza, isto é, se eu puser de lado apenas a qualidade específica que por si só transforma “instrumento de produção” e trabalho acumulado em capital [15].
Para que isso fosse plausível, os economistas descreviam as circunstâncias históricas anteriores ao aparecimento do modo de produção capitalista como “resultado de sua presença”, com suas próprias características exclusivas[16]. Como Marx coloca nos Grundrisse:
Os economistas burgueses, que consideram o capital como uma forma de produção eterna e natural (não histórica), tentam então justificá-lo novamente expressando as condições de seu devir como as condições de sua efetivação atual, i.e., expressando os momentos em que o capitalista ainda se apropria como não capitalista – porque ele só está devindo capitalista – como as verdadeiras condições em que apropria como capitalista.[17]
De um ponto de vista histórico, a profunda diferença entre Marx e os economistas clássicos é que, em sua visão, “o capital não participou da criação do mundo, mas encontrou a produção e os produtos já prontos antes de submetê-los ao seu processo” [18]. Pois “as novas forças produtivas e relações de produção não se desenvolvem do nada, nem do ar nem do ventre da ideia que se põe a si mesma; mas o fazem no interior do desenvolvimento da produção existente e das relações de produção tradicionais herdadas, e em contradição com elas” [19]. De modo semelhante, as circunstâncias pelas quais sujeitos produtores são separados dos meios de produção – o que permite ao capitalista encontrar trabalhadores sem propriedade capazes de executar trabalho abstrato (o requerimento necessário para o intercâmbio entre capital e o trabalho vivo) – resultam de um processo que sobre o qual os economistas silenciam, e que “constitui a história da gênese do capital e do trabalho assalariado” [20].
Diversas passagens nos Grundrisse criticam a maneira como os economistas apresentam realidades históricas como naturais. Por exemplo, para Marx é evidente que o dinheiro é produto da história: “ser dinheiro não é uma qualidade natural do ouro e da prata”, mas apenas uma característica (determinação?) que adquirem pela primeira vez num momento preciso do desenvolvimento social [21]. Preços e trocas também existiram na antiguidade, “mas a crescente determinação dos primeiros pelos custos de produção, assim como a predominância da última sobre todas as relações de produção, só se desenvolvem completamente, e continuam a desenvolver-se cada vez mais completamente, na sociedade burguesa, a sociedade da livre concorrência”, ou “aquilo que Adam Smith, em autêntico estilo do século XVIII, situa no período pré-histórico, no período que antecede a história, é, ao contrário, um produto da história” [22]. Ademais, da mesma forma que criticava os economistas por sua falta de senso histórico, Marx ridicularizava Proudhon e todos os socialistas que pensavam que o trabalho que produzia valor de troca podia existir sem se transformar em trabalho assalariado, que o valor de troca podia existir sem se tornar capital, ou que podia haver capital sem capitalistas [23].
O principal objetivo de Marx nas páginas iniciais da “Introdução” é, portanto, afirmar a especificidade histórica do modo de produção capitalista, demonstar, como ele voltaria a afirmar no volume III de O capital, que “ele não é um modo de produção absoluto”, mas “meramernte, histórico, transitório” [24].
Esse ponto de vista implica uma maneira diferente de enfocar muitas questões, inclusive o processo do trabalho e suas várias características. Nos Grundrisse, Marx escreveu que “os economistas burgueses estão tão encerrados nas representações de um determinado nível de desenvolvimento histórico da sociedade que a necessidade da objetivação das forças sociais do trabalho aparece-lhes inseparável da necessidade do estranhamento dessas forças frente ao trabalho vivo”[25]. Marx, questionou repetidas vezes essa apresentação das formas específicas do modo de produção capitalista como se fossem constantes do processo de produção como tal. Apresentar o trabalho assalariado não como uma relação específica de uma forma de produção histórica determinada, mas como uma realidade universal da existência econômica do homem significava considerar que a exploração e a alienação sempre haviam existido e sempre continuariam a existir.
Ignorar a especificidade da produção capitalista tinha, portanto, consequências tanto epistemológicas quanto políticas. Por um lado, impedia a compreensão dos níveis históricos concretos da produção; por outro, ao definir as condições atuais como não alteradas e inalteráveis, apresentava a produção capitalista como identificada com a produção em geral e as relações sociais burguesas como relações humanas naturais. Assim, a crítica de Marx das teorias dos economistas tinha um duplo valor. Além de sublinhar que uma caracterização histórica era indispensável para a compreensão da realidade, tinha o objetivo político preciso de se opor ao dogma da imutabilidade do modo de produção capitalista. A demonstração da historicidade da ordem capitalista seria também prova de seu caráter transitório e da possibilidade de sua eliminação.
O capitalismo não é o único estágio da história da humanidade, nem é o final. Marx prevê que ele será sucedido por uma organização da sociedade baseada na “produção universal” [gemeinschaftliche Production], na qual o produto do trabalho é “posto desde o início como elemento daprodução universal” [26].
A produção como totalidade
Na segunda seção da “Introdução” Marx examina a relação geral da produção com a distribuição, a troca e o consumo. Ele reconstrói a interconexão entre os quatro itens em termos lógicos, de acordo com o esquema de Hegel de universalidade-particularidade-individualidade [27]: “produção, distribuição, troca e consumo constituem assim um autêntico silogismo; a produção é a universalidade, a distribuição e a troca, a particularidade, e o consumo, a singularidade na qual o todo se unifica” [28].
Seu primeiro objeto de investigação foi a relação entre produção e consumo, que ele explicou como sendo de imediata identidade: “produção é consumo” e “consumo é produção”. Ocorre um processo de identidade sem intermediação entre a produção e o consumo; estes também se intermedeiam um ao outro e criam um ao outro à medida que se realizam. Não obstante, Marx achava um erro considerar ambos como idênticos – como pensavam Jean Baptiste Say e Pierre-Joseph Proudhon. Pois, em última análise, “o próprio consumo, como carência vital, como necessidade, é um momento interno da atividade produtiva”.
Marx se volta então para a análise da relação entre produção e distribuição. A distribuição, ele escreve, é o vínculo entre a produção e o consumo e “por meio de leis sociais” determina que parcela dos produtos é devida aos produtores[29]. Os economistas a apresentam como uma esfera autônoma da produção, de modo que em seus tratados as categorias econômicas são sempre colocadas de uma forma dual. A terra, o trabalho e o capital figuram na produção como agentes da distribuição, enquanto na distribuição, na forma de arrendamento do solo, salários e lucro eles aparecem como fontes de ingresso. Marx se opõe a essa divisão, que considera ilusória e errônea, pois a forma de distribuição “não é um arranjo facultativo, de modo que poderia ser distinto; ao contrário, ela é posta pela própria forma da produção; é apenas um de seus próprios momentos, considerado em outra determinação” [30].
A concepção de Marx do vínculo entre produção e distribuição esclarece não apenas sua aversão ao modo como John Stuart Mill separava rigidamente os dois, mas também sua apreciação por Ricardo pelo fato de ele ter postulado a necessidade de “compreender a produção moderna em sua articulação social determinada”[31]. O economista inglês sustentava, de fato, que “determinar as leis que regulam essa distribuição é o principal problema da Economia Política” [32], e, em consequência, fez da distribuição um de seus principais temas de estudo, pois ele concebia “as formas de distribuição como a expressão mais determinada na qual se fixam os agentes de produção em uma dada sociedade” [33]. Para Marx também, a distribuição não era redutível ao ato pelo qual as parcelas do produto agregado eram distribuídas entre os membros da sociedade; era um elemento decisivo do ciclo produtivo completo.
Quando Marx, por fim, examinou a relação entre produção e troca, ele também considerou esta última como parte daquela. A troca se torna autônoma da produção somente na fase em que o produto é trocado diretamente para consumo. Ainda assim, entretanto, sua intensidade, escala e características são determinadas pelo desenvolvimento e estrutura da produção, de modo que “a troca aparece em todos os seus momentos ou diretamente contida na produção, ou determinada por ela” [34].
Ao final de sua análise sobre a relação da produção com a distribuição, a troca e o consumo, Marx chega a duas conclusões: (1) a produção deve ser considerada como uma totalidade; e (2) a produção com um ramo particular dentro da totalidade predomina sobre os outros elementos. A segunda conclusão de Marx fez da produção o “momento predominante” [ übergreifende Moment] sobre as outras partes da totalidade da produção [Totalität der Production] [35], o “ponto de partida efetivo” [Ausgangspunkt] [36], ao qual “todo o processo transcorre novamente”, e assim “uma produção determinada, portanto, determina um consumo, uma troca e uma distribuição determinados, bem como relações determinadas desses diferentes momentos entre si ”[37]. Contudo, essa predominância não cancela a importância dos outros momentos, nem sua influência sobre a produção. A dimensão do consumo, as transformações da distribuição e o tamanho do âmbito da troca – ou do mercado – eram todos fatores que em conjunto impactam e definem a produção.
Aqui mais uma vez as percepções de Marx tinham um valor tanto teórico quanto político. Em oposição a outros socialistas de seu tempo, que sustentavam que era possível revolucionar as relações de produção existentes pela transformação do instrumento de circulação, ele defendia que isso demonstrava claramente a “incompreensão” deles da “conexão interna entre as relações de produção, distribuição e circulação” [38]. Uma mudança no formato do dinheiro não só deixaria inalteradas as relações de produção e as outras relações sociais determinadas por elas, mas também resultaria em algo sem sentido, pois a circulação só poderia se modificar juntamente com uma mudança nas relações de produção. Marx estava convencido de que “o mal da sociedade burguesa não pode[ria] ser remediado por meio de ‘transformações’ dos bancos ou da fundação de um ‘sistema monetário’ racional” ou de paliativos modestos como a concessão de crédito gratuito, nem pela quimera de transformar trabalhadores em capitalistas [39]. A questão central permanecia a superação do trabalho assalariado e, acima de tudo, isso tinha a ver com a produção.
Em busca do método
Nesse ponto de sua análise, Marx tratou da principal questão metodológica: como reproduzir a realidade no pensamento? Como construir um modelo categórico abstrato capaz de representar a sociedade?
A terceira, e mais importante, seção da “Introdução” é dedicada à “relação que a apresentação científica tem com o movimento real [reellen]” [40]. Entretanto, não é um relato ou uma descrição definitiva, oferece vias insuficientemente desenvolvidas de teorizar sobre o problema e apenas esboça um número de pontos. Algumas passagens contêm afirmações obscuras, que às vezes se contradizem, e a utilização de uma linguagem influenciada pela terminologia hegeliana em certos momentos acrescenta ambiguidades ao texto. Marx estava elaborando seu método quando escreveu essas páginas e elas mostram os vestígios e trajetórias dessa pesquisa.
Como outros grandes pensadores que o precederam, Marx partiu da questão de onde começar – ou, em seu caso, o que a economia política deveria tomar como seu ponto de partida analítico. A primeira hipótese que examinou foi a de começar “pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo […] o fundamento e o sujeito do ato social de produção como um todo”: a população [41]. Marx considerava esse caminho, tomado pelos fundadores da economia política William Petty e Pierre Boisguillebert, inadequado e errôneo. Começar com uma entidade indeterminada como a população implicaria uma imagem demasiado genérica do todo, impossibilitando a demonstração da divisão em classes, burguesia, proprietários de terras e proletariado, pois estes somente poderiam ser diferenciados com base em seus respectivos fundamentos: capital, propriedade da terra e trabalho. Com tal enfoque empírico, elementos concretos como o Estado se dissolveriam em determinações abstratas como a divisão do trabalho, moeda ou valor.
Tão logo os economistas do século XVIII terminaram de definir suas categorias abstratas, “começaram os sistemas econômicos, que se elevaram do simples, como trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, a troca entre as nações e o mercado mundial”. Esse procedimento, empregado por Smith e Ricardo em economia, bem com por Hegel em filosofia, pode ser resumido como “as determinações abstratas levam à reprodução do concreto por meio do pensamento”; isso é o que Marx descreveu como “o método cientificamente correto” [ wissenschaftlich richtige Methode]. Com as categorias corretas, era possível “dar início à viagem de retorno até que finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não como a representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relações” [42].
Contudo, contrariamente ao que certos comentaristas da “Introdução” argumentaram, o fato de Marx ter definido “o método cientificamente correto” não significa absolutamente que ele próprio o tenha empregado [43]. Em primeiro lugar, ele não compartilhava a convicção dos economistas de que a reconstrução lógica do concreto em nível de ideias levada a efeito por eles fosse uma reprodução fiel da realidade. Em verdade, o procedimento apresentado sinteticamente na “Introdução” tomou emprestados vários elementos do método de Hegel, mas também tinha diferenças radicais. Como Hegel, Marx estava convencido de que “o método de ascender do abstrato ao concreto é […] o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental”, a recomposição da realidade no pensamento deveria começar nas determinações mais simples e mais gerais. Ademais, para ambos o concreto era “a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida”, embora para Marx fosse sempre necessário ter em mente que o concreto era “o ponto de partida da intuição [Anschauung] e da representação” [44].
Entretanto, apesar dessa base comum, há uma diferença de concepção entre os pensadores: “Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento”, ao passo que para Marx este “de forma alguma é o processo de gênese do próprio concreto”. No idealismo hegeliano, argumenta Marx, o movimento das categorias aparece como o verdadeiro ato de produção cujo produto é o mundo; o pensar conceitual é o ser humano real e “somente o mundo conceituado enquanto tal é o mundo efetivo”, não apenas representando o mundo real nas ideias, mas também operando como seu processo constitutivo. Em contraste, para Marx as categorias econômicas existem como “relação abstrata, unilateral, de um todo vivente, concreto, já dado” [45]; elas “expressam formas de ser, determinações de existência [Daseinsformen, Existenzbestimmungen]” [46]. Marx sublinhou, várias vezes, em oposição a Hegel que “a totalidade concreta como totalidade de pensamento, como um concreto de pensamento, é de fato um produto do pensar, do conceituar; mas de forma alguma é um produto do conceito que pensa fora e acima da intuição e da representação, e gera a si próprio, sendo antes produto da elaboração da intuição e da representação em conceitos”. Pois “o sujeito real, como antes, continua a existir em sua autonomia fora da cabeça; isso, claro, enquanto a cabeça se comportar apenas de forma especulativa, apenas teoricamente. Por isso, também no método teórico o sujeito, a sociedade, tem de estar continuamente presente como pressuposto da representação” [47].
Na “Introdução”, Marx prossegue perguntando se as categorias simples poderiam existir antes e independentemente das mais concretas. Historicamente, a moeda existiu antes da existência do capital, dos bancos e do trabalho assalariado [48]. Embora o trabalho tivesse aparecido no início do processo de civilização dos seres humanos e parecesse um processo muito simples, Marx sublinhava que “concebido economicamente nessa simplicidade, o ‘trabalho’ é uma categoria tão moderna quanto as relações que geram essa simples abstração” [49].
Os expoentes do bullionismo e do mercantilismo mantinham que a fonte da riqueza se encontrava na moeda e que, portanto, ela tinha uma importância maior que o trabalho. Subsequentemente, os fisiocratas argumentaram que o trabalho era o criador último de riqueza, mas somente na forma de trabalho agrícola. A obra de Smith finalmente pôs termo a “toda determinabilidade da atividade criadora de riqueza”, de modo que agora o trabalho não mais era considerado sob uma forma particular, mas como “trabalho simplesmente, nem trabalho manufatureiro, nem comercial, nem agrícola, mas tanto um como os outros” [50]. Dessa maneira, a “expressão abstrata” foi descoberta para a mais simples e mais antiga relação na qual os seres humanos – fosse qual fosse a forma da sociedade – desempenhavam o papel de produtores. Como no caso da moeda, a categoria “trabalho” somente podia ser extraída se houvesse “o mais rico desenvolvimento concreto possível”, numa sociedade na qual algo fosse comum a muitos, comum a todos. Assim, a indiferença com relação a qualquer tipo específico de trabalho pressupõe uma totalidade altamente desenvolvida dos tipos reais de trabalho entre os quais já nenhum é predominante.
Ademais, na sociedade capitalista “o trabalho em geral” não é somente uma categoria, mas corresponde a uma forma de sociedade na qual os indivíduos podem facilmente passar de um trabalho a outro e o tipo específico é uma questão de casualidade para eles, e, portanto, de indiferença. O trabalho do trabalhador perde então o caráter corporativo, artesanal, que tinha no passado e se converte em “trabalho em geral”, “trabalho sans phrase” – “não somente enquanto categoria, mas na efetividade”[51]. Trabalho assalariado “não é esse ou aquele trabalho, mas é trabalho por excelência, trabalho abstrato: absolutamente indiferente diante de sua determinabilidade particular [Bestimmtheit], mas suscetível de qualquer determinação” [52]. Indiferença quanto ao tipo particular de trabalho é, contudo, um fenômeno comum a um número de realidades históricas. Portanto, nesse caso também, era necessário sublinhar as distinções: “há uma maldita diferença entre bárbaros com disposição para ser empregados em tudo e civilizados que empregam a si próprios em tudo”[53].
Tendo feito essa consideração, Marx se voltou para outra questão crucial. Em que ordem deveria colocar as categorias na obra que ia escrever? Diante da dúvida de se o complexo deveria fornecer os instrumentos para o entendimento do simples ou o contrário, ele optou decididamente pela primeira possibilidade.
A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica da produção. Por essa razão, as categorias que expressam suas relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organização e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, com cujos escombros e elementos edificou-se, parte dos quais ainda carrega consigo como resíduos não superados. [54]
É, pois, o presente que oferece as indicações para a reconstrução do passado. “A anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por outro lado, os indícios de formas superiores nas espécies animais inferiores só podem ser compreendidos quando a própria forma superior já é conhecida”[55]. Essa afirmação bem conhecida não deve, contudo, ser entendida em termos evolucionista. De fato, Marx criticou explicitamente a concepção do “chamado desenvolvimento histórico”, baseado na banalidade que “a última forma considera as formas precedentes como etapas até si mesma” [56]. Diferentemente dos teóricos do evolucionismo, que postulavam uma trajetória ingenuamente progressiva dos organismos mais simples aos mais complexos, Marx optou por um método lógico muito mais complexo e elaborou uma concepção de história marcada pela sucessão de modos de produção (antigo, asiático, feudal, capitalista), visando explicar as posições e funções que as categorias assumiam dentro desses variados modos [57]. Foi a sociedade burguesa, portanto, que forneceu as pistas para o entendimento das economias das épocas históricas anteriores – contudo, dadas as profundas diferenças entre sociedades, essas pistas deveriam ser tratadas com moderação. Marx repetiu enfaticamente que isso não poderia ser feito “de modo algum à moda dos economistas, que apagam todas as diferenças históricas e veem a sociedade burguesa em todas as formas de sociedade” [58].
Hall nota com razão que a teoria desenvolvida por Marx representou um rompimento com o historicismo, mas não com a historicidade
Na “Introdução”, Marx rejeitou o critério da sucessão cronológica para as categorias científicas em favor de um método lógico com testes histórico-empíricos. Como o presente ajudava a entender o passado, ou a estrutura do homem, a do macaco, era necessário começar a análise a partir do estágio mais maduro, a sociedade capitalista, e mais particularmente do elemento que predominava sobre todos os demais: o capital. “O capital é o poder que tudo domina na sociedade burguesa. Ele deve ser tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada.”
Em essência, o estabelecimento das categorias em uma ordem lógica precisa e o funcionamento da história real não coincidem um com o outro – e, ademais, como escreveu Marx nos manuscritos do terceiro volume de O capital , “toda a ciência seria supérflua se a aparência externa e a essência das coisas coincidissem diretamente/plenamente” [59].
Marx chegou então a sua própria síntese, divergindo do empiricismo dos primeiros economistas, que resultava na dissolução de elementos concretos em definições abstratas; do método dos economistas clássicos, que reduziam o pensamento sobre a realidade à própria realidade; do idealismo filosófico – inclusive, na visão de Marx, a filosofia de Hegel – que ele acusava de dar ao pensamento a capacidade de produzir o concreto com base em concepções gnoseológicas que contrapunham rigidamente formas de pensamento e a realidade objetiva; do historicismo e sua dissolução do lógico no histórico; e, finalmente, de sua própria convicção na Miséria da Filosofia, de que ele estava essencialmente seguindo “a marcha da história”[60].
Sua aversão a estabelecer uma correspondência exata entre o concreto e o pensamento o levou a separar os dois reconhecendo a especificidade deste último e atribuindo ao primeiro uma existência independente do pensamento, de modo que a ordem de exposição das categorias diferia das que se manifestavam nas relações do processo histórico real. Para evitar limitar o processo cognitivo a uma mera repetição dos estágios do que havia acontecido na história, era necessário utilizar um processo de abstração e, portanto, categorias que permitissem a interpretação da sociedade em toda a sua complexidade. Por outro lado, para ser realmente útil para esse propósito, a abstração tinha de ser constantemente comparada com as diversas realidades históricas, de tal forma que as determinações lógicas gerais pudessem ser distinguidas das relações históricas concretas. A concepção da história de Marx ganhava assim em eficácia e incisividade: uma vez que uma simetria de ordem lógica e da ordem histórica real tivesse sido rejeitada, o histórico se tornaria decisivo para o entendimento da realidade, enquanto o lógico tornaria possível conceber a história como algo além de uma simples cronologia de eventos. Para Marx não era necessário reconstruir a gênese histórica de cada relação econômica para entender a sociedade e então dar uma descrição adequada dela. Como ele assinala em uma passagem dos Grundisse:
O nosso método indica os pontos onde a análise histórica tem de ser introduzida, ou onde a economia burguesa, como simples figura histórica do processo de produção, aponta para além de si mesma, para modos de produção anteriores. Por essa razão, para desenvolver as leis da economia burguesa não é necessário escrever a história efetiva das relações de produção. Mas a sua correta observação e dedução, como relações elas próprias que devieram históricas, levam sempre a primeiras equações – como os números empíricos, p. ex., nas ciências naturais – que apontam para um passado situado detrás desse sistema. Tais indicações, juntamente com a correta apreensão do presente, fornecem igualmente a chave para a compreensão do passado – um trabalho à parte, que esperamos também poder abordar. Por outro lado, esse exame correto também leva a pontos nos quais se delineia a superação da presente configuração das relações de produção – e, assim, o movimento nascente, a prefiguração do futuro. Se as fases pré-burguesas aparecem como simplesmente históricas, i.e., como pressupostos superados, de maneira que as condições atuais da produção aparecemabolindo a si mesmas e pondo-se, consequentemente, comopressupostos históricos para um novo estado de sociedade. [61]
O método desenvolvido por Marx o equipou com ferramentas não só para entender as diferenças entre os modos pelos quais a produção se tinha manifestado na história, mas também para discernir no presente as tendências que prefiguravam um novo modo de produção e, portanto, confundindo todos aqueles que tinham proclamado a inalterabilidade do capitalismo. Sua própria pesquisa, inclusive em epistemologia, nunca teve uma motivação exclusivamente teórica, sempre foi impulsionada pela necessidade de interpretar o modo a fim de melhor se engajar na luta política.
A relação desigual entre a produção material e a produção intelectual
A última seção da “Introdução” consiste em uma breve e fragmentária lista de oito argumentos que Marx pretendia tratar em sua obra, além de algumas considerações sobre a relação entre arte grega e a sociedade moderna. Nos oito pontos, as principais notas de Marx dizem respeito a sua convicção de que as características do trabalho assalariado se manifestaram no exército antes mesmo de se manifestarem na sociedade burguesa; e o que ele chama de “desenvolvimento desigual” [ungleiche Eitwewicklung] entre as relações de produção e as relações jurídicas, particularmente na derivação do direito da sociedade burguesa nascente a partir do Direito Romano Privado. Entretanto, tudo isso aparece num memorando sem qualquer estrutura e que fornece apenas uma vaga ideia do pensamento de Marx sobre essas questões.
Suas reflexões sobre arte são um pouco mais desenvolvidas, concentrando-se na “relação desigual [ungleiche Verhaltniß] do desenvolvimento da produção material com, por exemplo, o desenvolvimento artístico”[62]. Longe de afirmar o tipo de paralelismo rígido que muitos marxistas professos mais tarde postularam, Marx salientou que não havia relação direta entre o desenvolvimento econômico-social e a produção artística. Ele também assinalou que certas formas de arte – a epopeia, por exemplo – somente são possíveis num estágio inicial de desenvolvimento artístico. Se esse é o caso na relação entre diferentes tipos de arte no campo das artes, não é surpreendente que o seja na relação entre todo o campo da arte e o desenvolvimento geral da sociedade [63].
Para Marx, então, a arte e a produção intelectual em geral têm de ser investigadas em sua relação com as condições materiais da sociedade, mas sem estabelecer uma correspondência rígida ente as duas esferas. De outra forma, cairíamos no erro de Voltaire (recordado por Marx em seus manuscritos econômicos de 1861-3) de pensar que “porque estamos mais avançados que os antigos em mecânica” também deveríamos “ser capazes de produzir um épico”[64].
O valor das afirmações de Marx sobre a estética na “Introdução” não reside nas soluções pouco elaboradas e às vezes pouco convincentes que elas oferecem, mas sim em seu enfoque antidogmático sobre como as formas de produção material se relacionam com o comportamento e as criações intelectuais. Sua consciência de seu “desenvolvimento desigual” resultava na rejeição de qualquer procedimento esquemático que postulasse uma relação uniforme entre as várias esferas da totalidade social [65]. Mesmo a bem conhecida tese incluída no “Prefácio” de Contribuição à crítica da economia política, publicado dois anos depois de Marx ter escrito a “Introdução” – “o modo de produção da vida material condiciona o processo geral da vida social, política e intelectual”[66] – não deve ser interpretada num sentido determinista [67], deve ser claramente diferenciada da leitura estreita e previsível do “marxismo-leninismo”, na qual os fenômenos superestruturais da sociedade são mero reflexo da existência material dos seres humanos [68].
Conclusão
Quando Marx começou a escrever os Grundrisse, ele pretendia prefaciar seu Economia com uma seção sobre a metodologia de sua pesquisa. A “Introdução” não foi composta simplesmente com o propósito de autoclarificação; deveria conter, como nos escritos de outros economistas, as observações preliminares do autor sobre seu tema geral. Contudo, em junho de 1859, quando Marx enviou a primeira parte de seus estudos para publicação, com o título Contribuição à crítica da economia política, ele decidiu omitir a seção que tratava de sua motivação:
Uma introdução geral, que eu havia escrito, é omitida, porque com maior análise pareceu-me confuso antecipar resultados que ainda tem de ser fundamentados e o leitor que realmente deseje me seguir terá de decidir avançar do particular para o geral [von dem Einzelnen zum Allgemeinen aufzustigen]. [69]
Assim, o objetivo norteador de 1857 “ascender do abstrato ao concreto” [70] mudou no texto de 1859 para “avançar do particular para o geral” [71]. O ponto de partida da “Introdução” – as determinações mais abstratas e universais – foi substituído por uma realidade concreta e historicamente determinada, a mercadoria, mas, como o texto de 1857 não fora publicado, nenhuma explicação foi dada para a mudança. Na verdade, já na última passagem dos Grundrisse, depois de centenas de páginas em que ele tinha escrupulosamente analisado o modo de produção capitalista e os conceitos de economia política, Marx afirma que “a primeira categoria em que se apresenta a riqueza burguesa é a da mercadoria” [72]. Ele viria a dedicar à sua investigação o primeiro capítulo tanto deContribuição à crítica da economia política quanto de O capital, no qual a mercadoria é definida como a “forma elementar”[73] da sociedade capitalista, o particular com cuja análise a pesquisa tinha de começar.
Em vez da introdução planejada, Marx abriu a obra de 1859 com um breve prefácio no qual esboçou sucintamente sua biografia intelectual e a chamada concepção materialista da história. Subsequentemente, ele não mais se engajou no discurso sobre o método, exceto em ocasiões muito raras e com umas poucas e rápidas observações. Certamente a mais importante dessas foi o posfácio de 1873 ao primeiro volume de O capital, no qual, tendo sido provocado pelas resenhas que acompanharam sua publicação, ele não pôde resistir a se expressar sobre seu método de investigação e a revisitar alguns dos temas presentes na “Introdução”. Outra razão para isso foi a necessidade que ele sentiu de ressaltar a diferença entre método de exposição e método de investigação: enquanto o primeiro podia começar com o geral, movendo-se da forma universal para fórmulas historicamente determinadas e, assim, – numa confirmação da formulação de 1857 – “partindo do abstrato para o concreto”, o último tinha de começar da realidade imediata e, como ele formulou em 1859, mover-se “do particular para o geral”:
O método de apresentação [Darstellungsweise] tem de diferenciar-se na forma daquele da pesquisa [Forschungsweise]. Este último tem de se apropriar do material em detalhe, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento, identificar sua conexão interna. Somente depois de feito esse trabalho, pode o próprio movimento ser adequadamente descrito. [74]
Em sua obra posterior à “Introdução” de 1857, Marx não mais escreveu sobre questões de método da forma aberta e problematizadora que tinha caracterizado aquele texto, mas expressou suas ideias acabadas a respeito, sem revelar a gênese complexa por meio da qual elas tinham sido trabalhadas. Por essa razão, inclusive, as páginas da “Introdução” são extraordinariamente importantes. Num embate direto com as ideias de alguns dos maiores economistas e filósofos, Marx reafirma ali convicções profundas e chega a aquisições teóricas significativas. Acima de tudo, ele insiste novamente na especificidade histórica do modo capitalista de produção e suas relações sociais. Em segundo lugar, ele considera produção, distribuição, troca e consumo como uma totalidade, na qual a produção constitui o elemento que predomina sobre as demais partes do todo. Além disso, com relação à reprodução da realidade no pensamento, Marx não recorre a um método meramente histórico, mas faz uso da abstração e reconhece seu valor para a construção do caminho do conhecimento. Finalmente, ele sublinha a relação desigual que existe entre o desenvolvimento das relações de produção e as relações intelectuais.
Nos cem anos transcorridos desde sua publicação, as reflexões contidas na “Introdução” fizeram dela um texto teórico indispensável, bem como fascinante do ponto de vista literário, para todos os intérpretes e leitores sérios de Marx. Este será certamente o caso também para os que tomarem conhecimento de sua obra nas gerações futuras.
References
1. Este artigo é uma versão resumida do capítulo “História, produção e método na Introdução de 1857” em Marcello Musso (org.), Karl Marx’s Grundisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later (Londres/Nova York, Routledge, 2008). Traduzido por (pai pericás, ver nome) e revisado por Mário Duayer.
2. Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858, esboços da crítica da economia política (São Paulo, Boitempo, 2011), p. 37.
3. Ibidem, p. 39.
4. Ibidem, p. 407.
5. Ibidem, p. 389.
6. Ibidem, p. 388.
7. Ibidem, p. 40.
8. Idem.
9. Ibidem, p. 41.
10. Idem.
11. Idem.
12. John Stuart Mill, Principles of Political Economy, v. I (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1965).
13. Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 491.
14. Ibidem, p. 192.
15. Ibidem, p. 41.
16. Ibidem, p.??.
17. Ibidem, p. 378.
18. Ibidem, p. 565.
19. Ibidem, p. 217.
20. Ibidem, p. 400.
21. Ibidem, p. 183.
22. Ibidem, p. 104.
23. Ver ibidem, p. 86.
24. Karl Marx, “Capital, v. III” em Marx Engels Collected Works, v. 37 (Nova York, International Publishers, 1998), p. 240. [Ed. bras.: O capital, livro 2: o processo de circulação do capital, São Paulo, Civilização Brasileira, 2000, v. 3.]
25. Idem, Grundrisse, cit. p. 706.
26. Ibidem, p. 118.
27. Ver G. F. W. Hegel, Science of Logic (Londres, George Allen & Unwin, 1969), p. 666.
28. Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 44.
29. Ibidem, p. 47-9.
30. Ibidem, p. 494.
31. Ibidem, p. 51.
32. David Ricardo, The Principles of Political Economy and Taxation (Londres, J. M. Dent & Sons, 1973), p. 3.
33. Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 50.
34. Ibidem, p. 53
35. Ibidem, p. 49.
36. Idem.
37. Ibidem, p. 53.
38. Ibidem, p. 74.
39. Ibidem, p. 85.
40. Ibidem, p. 41-2.
41. Ibidem, p. 54.
42. Idem.
43. Idem.
44. Idem.
45. Idem.
46. Ibidem, p. 59.
47. Ibidem, p. 55.
48. Ibidem, p. 56.
49. Ibidem, p. 57.
50. Idem.
51. Ibidem, p. 58.
52. Ibidem, p. 230.
53. Ibidem, p.58.
54. Idem.
55. Idem.
56. Ibidem, p. 59.
57. Cf. Stuart Hall, “Marx’s notes on method: A ‘reading’ of the ‘1857 Introduction’”, Cultural Studies, v. 17, n. 2, 2003, p. 133.
58. Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 58.
59. Idem, “Capital, v. III”, cit., p. 804.
60. Idem, “The Poverty of Philosophy” em Marx Engels Collected Works, v. 6: Marx and Engels 1845-48 (Moscou, Progress Publishers, 1976), p.172. [Ed. bras.: Miséria da filosofia, São Paulo, Expressão Popular, 2009.]
61. Idem, Grundrisse, cit., p. 378-9.
62. Ibidem, p. 62.
63. Ibidem, p. 62-4.
64. Idem, “Theories of Surplus Value” em Marx Engels Collected Works, v. 31: Economic Manuscripts of 1861-63 (Moscou, Progress Publishers), p. 182-3.
65. Idem, Grundrisse, cit., p. 62.
66. Idem, “A Contribution to the Critique of Political Economy” em Marx and Engels Collected Works, v. 29: Marx 1857-61 (Moscou, Progress Publishers, 1987), p. 236. [Ed. bras.: Contribuição à crítica da economia política, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2011.]
67. Evidência disso é o fato de que, quando Marx citou essa afirmação em uma nota à edição francesa de 1872-5 de O capital, ele preferiu usar o verbo dominer no lugar do alemãobedingen (mais comumente traduzido como déterminer ou conditionner); “Le mode de production de la vie matérielle domine [domina] en général le dévéloppement de la vie sociale, politique et intelectuelle”, ver Karl Marx, “Le Capital” em Marx Engels Gesamtausgabe (MEGA/2), v. II/7 (Berlin, Dietz, 1989), p. g2, ênfase do autor. Seu objetivo ao fazer isso era precisamente evitar o risco de postular uma relação mecânica entre os dois aspectos (cf. Maximilien Rubel, Karl Marx. Essai de biographie intellectuelle, Paris, Rivière, 1971, p. 298).
68. A pior e mais disseminada interpretação desse tipo é a de Joseph Stalin em O materialismo dialético e histórico: “o mundo material representa a realidade objetiva […] [e] a vida espiritual da sociedade é um reflexo dessa realidade objetiva”; e “qualquer que seja o ser de uma sociedade, quaisquer que sejam as condições da vida material de uma sociedade, tais são as ideias, teorias, visões políticas e instituições políticas dessa sociedade”, Joseph Stalin, Dialectical and Historical Materialism (Londres, Lawrence & Wishart), p. 15.
69. Karl Marx, “A Contribution to the Critique of Political Economy”, cit., p. 257-417.
70. Idem, Grundrisse, cit., p. 54.
71. Idem, “A Contribution to the Critique of Political Economy”, cit., p. 261.
72. Idem, Grundrisse, cit., p. 756.
73. Idem, “Capital, v. I” em Marx and Engels Collected Works, v. 35 (Nova York, International Publishers, 1996), p. 45; tradução modificada.
74. Ibidem, p. 19.