The Moor’s last journey
Apoiando-se nas correspondências de Marx, Engels, seus familiares e amigos, o artigo descreve as circunstâncias e acontecimentos dos dois últimos anos de vida de Marx.
Destaca-se, particularmente, a viagem de Marx à Argélia, motivada por tratamento médico, cuja importância muitas vezes é negligenciada mesmo em renomadas biogra as. O estudo revela preocupações de Marx com a reconstituição da história universal, com a condição dos árabes, com as possibilidades revolu-cionárias da Rússia e com a sequência de seu trabalho teórico (O Capital).
Based on the correspondence of Marx, Engels, their relatives and friends, the paper describes the circumstances and events of the last two years of Marx’s life. It focuses particularly on Marx’s last trip, to Algeria. Motivated by a medical treatment, the importance of this last trip is usually neglected even in famous biographies. The study discloses Marx’s concerns with the reconstitution of the World history, with the condition the Arab people, with the revolutionary possibilities of Russia and with the sequence of his theoretical work (Capital).
1. A morte da esposa e o retorno ao estudo da história
Em 2 de dezembro de 1881, perto de completar 68 anos, Jenny von West- phalen, a mulher que por toda sua existência esteve junto a Marx, dividindo pe- núria e paixão política, veio a falecer de câncer no fígado.
Para Marx, foi uma perda irreparável. Pela primeira vez desde 1836, quando, com apenas dezoito anos, apaixonou-se por ela, deu-se conta de que havia ca- do sozinho, sem “o rosto [… que] desperta(va) as maiores e mais doces recordações da [sua] vida”1 e privado de “seu maior tesouro”2.
Para não comprometer, posteriormente, sua já frágil condição, Marx foi proibido até mesmo de ir ao funeral: “a proibição do médico de participar do enterro foi in exível” – contou, tristemente, à lha Jenny. Ele “resignou-se a [obe- decer] essa ordem” pensando nas palavras que sua mulher havia dito à enfermeira antes de morrer, a propósito de lidar com as últimas formalidades: “não somos pessoas que dão valor às coisas exteriores”3. Ao funeral de Jenny von Westphalen compareceu, no entanto, Engels – de nido por Eleanor como “de uma gentileza e devoção indescritíveis” (Kapp, 1977, p. 201) –, que, em seu discurso fúnebre, prestou-se a recordar: “se houve uma mulher cuja máxima alegria era fazer os outros felizes, essa foi ela” (Engels, 1989, p. 420).
Após a perda da mulher, ao sofrimento da alma se agrega a dor do corpo. Os tratamentos aos quais teve que se submeter era dolorosíssimos, ainda que os enfrentasse com espírito estoico. Sobre esses, refere-se desta forma para Jenny4:
Ainda devo espalhar o iodo sobre o peito e as costas, e isso, quando é repetido regularmente, produz uma in amação na pele bastante en- fadonha e dolorosa. Tal operação, que vem sendo executada apenas para prevenir uma recaída durante a convalescência (já nalizada, com a exceção de uma leve tosse), rende-me um grande serviço neste momento. Contra as dores da alma há apenas um antídoto e caz: a dor física. Compare e contraste, de um lado, o m do mundo, e do outro, um homem com uma forte dor de dente5.
Sua saúde é tão precária que, como escreve ao amigo, e economista russo, Nikolaj Danielson, em um dos momentos mais críticos esteve “muito próximo” a “voltar as costas contra esse mundo horrível”, agregando que os médicos que- riam “mandá-lo para o sul da França ou a Argélia”6.
Marx, cuja convalescência foi longa e complexa, foi obrigado a car “pre- gado na cama” por várias semanas, “restrito ao con namento domiciliar”, como escreveu ao companheiro Sorge, e bem consciente do que estava atravessando: “perde-se, de nitivamente, certa quantidade de tempo para as ‘manobras’ de recuperação”7.
Apesar das ocorrências destes dramas familiares e das enfermidades, en- tre o outono de 1881 e o inverno de 1882, ele destinou grande parte de suas energias intelectuais aos estudos históricos. Marx preparou, de fato, uma crono- logia comentada, na qual elencou, ano após ano, os principais eventos políticos, sociais e econômicos da história mundial transcorridos desde o século I d.C., recapitulando as causas e as características proeminentes. Ele adotou o mesmo método que já havia utilizado para a confecção das Notas sobre a história in diana (6641858)8, apontamentos compilados, entre o outono de 1879 e o verão de 1880, a partir do livro A história analítica da Índia [1870], de Robert Sewell (1845-1925). Assim procedendo, ele desejava, mais uma vez, comparar a validade de suas re exões com os acontecimentos reais que haviam selado os destinos da humanidade. Marx não se focou apenas nas transformações produtiva, mas, renunciando a qualquer determinismo econômico, concentrou-se por longos trechos, e com grande atenção, sobre a decisiva questão do desenvolvimento do Estado moderno9.
Para realizar sua cronologia, junto a algumas fontes menores que não foram relacionadas em suas anotações, Marx utilizou, sobretudo, dois textos. O primeiro foi História dos povos da Itália (1825), de Carlo Botta (1766-1837), publicado em três volumes em francês, já que este, em 1814, teve que abandonar Turim devido à perseguição do governo de Savóia, restituído no Piemonte após a derrota de Napoleão Bonaparte. O segundo foi História mundial para o povo alemão (1844- 1857), de Friedrich Schlosser (1776-1861), o qual, publicado em Frankfurt, em 18 volumes, conhece grande sucesso e uma divulgação notável. Tendo como base essas duas obras, Marx preencheu quatro cadernos. Os resumos, alguns interca- lados de brevíssimos comentários críticos, foram compostos em alemão, inglês e francês10.
No primeiro desses cadernos, ele classi cou, em ordem cronológica e por um total de 143 páginas, alguns dos maiores eventos transcorridos de 91 a.C. a 1370. Marx iniciou pela história da Roma antiga, para em seguida abordar a queda do Império romano, a importância histórica de Carlos Magno (742-814), o papel de Bizâncio, as Repúblicas marítimas italianas, o desenvolvimento do feudalismo, as Cruzadas e uma descrição dos califados de Bagdá e Mossul. No segundo ca- derno, de 145 páginas e com anotações que vão de 1308 a 1469, os principais te- mas tratados foram os progressos econômicos ocorridos na Itália11 e a situação política e econômica alemã entre os séculos XIV e XV; enquanto no terceiro, nas 141 páginas relativas à época 1470-1580, Marx ocupou-se do choque entre França e Espanha, da República orentina no tempo de Girolamo Savonarola (1452-1498) e da Reforma protestante de Martinho Lutero (1483-1546). Por m, no quarto ca- derno, de 117 páginas, ele resumiu a grande quantidade de con itos religiosos ocorridos na Europa de 1577 a 164812.
Junto aos quatro cadernos contendo excertos das obras de Botta e de Sch- losser, Marx redigiu ainda outro com as mesmas características; acredita-se que seja contemporâneo aos primeiros e inerente à mesma pesquisa. Nesse caderno, tendo como base o texto História da República de Florença (1875), de Gino Cap- poni (1792-1876), ele ampliou as informações sobre o período 1135-1433, e ex- traiu novas notas relativas á época 449-1485, tendo como baliza História do povo inglês (1877), de Jonh Green (1837-1883). O estado inconstante de sua saúde não lhe permitiu ir mais longe; suas anotações pararam nas crônicas da paz de Vest- fália, em 1648, mais precisamente na assinatura dos tratados que puseram m à Guerra dos Trinta Anos.
Quando suas condições de saúde melhoraram, tornou-se necessário fazer tudo o que fosse possível para “evitar o risco de recaídas”13. Acompanhado da – lha Eleanor, em 29 de dezembro de 1881, Marx transfere-se para Ventnor, uma tranquila localidade da ilha de Wight, próxima à qual já havia ido outras vezes no passado. Foi-lhe aconselhado retornar para o “clima quente e o ar seco”, com a esperança que ambos contribuíssem para seu “completo restabelecimento”14. Antes de partir, escreveu à lha Jenny: “minha querida menina, o melhor favor que me pode fazer é cuidar de si mesma. Espero viver ainda belos dias junto a você e cumprir dignamente com minhas funções de avô”15.
Em Ventnor, Marx passa as duas primeiras semanas de 1882. Para poder passear, sem muitas preocupações. E ser “menos dependente dos caprichos do clima”, foi obrigado a usar, “em caso de necessidade”, um respirador, cujo uso ele comparou ao de “uma focinheira”16. Mesmo em circunstâncias tão difíceis, Marx nunca renunciou à sua ironia e, com a lha Laura, comentou que o grande des- taque com que, na Alemanha, os jornais burgueses anunciaram sua “morte, ou, em todo caso, sua inevitável aproximação” o havia “divertido muito”17.
Nos dias que passaram juntos, a convivência entre pai e lha foi bastante complicada. Eleanor, oprimida pelo peso das suas questões existenciais penden- tes, ainda era profundamente inquieta, não conseguia dormir e era atormentada pelo temor de que suas crises nervosas pudessem, de novo, piorar dramatica- mente. Não obstante o enorme amor que mantinham um pelo outro, naqueles dias a comunicação entre ambos foi muito difícil – o primeiro, “zangado e an- sioso”, e a segunda, “antipática e desgostosa”18.
As péssimas condições físicas de Marx e os problemas de relacionamento com a lha não lhe impediram de continuar a acompanhar os principais acon- tecimentos da atualidade política. Em consequência de um discurso realizado pelo chanceler alemão diante do parlamento, em que não pudera ignorar a gran- de descon ança com que os trabalhadores haviam acolhido as propostas do governo19, ele escreve a Friedrich Engels: “considero uma grande vitória, não apenas diretamente para a Alemanha, mas em geral também para o exterior, que Bismarck haja admitido diante do Reichstag que os operários alemães pratica- mente não dão a mínima para o seu socialismo de Estado”20.
Após o retorno a Londres, a bronquite, agora crônica, obrigou-o, com o seus familiares, a consultar o doutor Donkin, por um longo tempo, sobre a esco- lha de qual poderia ser o clima mais favorável para a recuperação das suas con- dições. Para conseguir uma cura completa, impunha-se a estadia em um local quente. A ilha de Wight não havia funcionado. Gibraltar devia ser descartada pos- to que, para entrar lá, Marx deveria apresentar um passaporte e, apátrida que era, não possuía nenhum. O império de Bismarck estava coberto de neve e, para ele, sempre proibido; já a Itália não se podia tomar em consideração, pois, como a r- mou Engels, “a primeira prescrição para os convalescentes é a de evitar as perse- guições da polícia”21.
Com o apoio do doutor Donkin e de Paul Lafargue, genro de Marx, Engels convenceu este último a dirigir-se para Argel, a qual gozava, à época, de boa re- putação entre aqueles que, na Inglaterra, para fugir do rigor dos meses mais frios do ano, podiam se permitir um refúgio (Cf. Badia, 1997, p. 17). Como depois re- cordou a lha Eleanor, o empurrão para Marx empreender esta insólita peregri- nação foi sua antiga obsessão: completar O Capital. Ela escreve, de fato:
Seu estado geral piorava continuamente. Se tivesse sido mais egoísta, teria simplesmente deixado que as coisas andassem como queriam. Todavia, para ele havia uma coisa que estava acima de tudo: a devoção à causa. Ele procurou levar a cabo a sua grande obra e por isso con- cordou, ainda mais uma vez, em fazer uma viagem para car são22.
Marx partiu em 9 de fevereiro e, no caminho para o Mediterrâneo, parou em Argenteuil, onde morava a lha Jenny. A partir do momento em que seu es- tado de saúde não melhorava em nada, apenas uma semana depois decide partir sozinho para Marselha, tendo convencido Eleanor que não seria necessário que ela o acompanhasse. De fato, comentou com Engels que: “por nada no mundo queria que a menina pensasse estar sendo imolada no altar da família como ‘enfermeira’”23.
Após ter atravessado toda a França de trem, chegou à capital da Provence em 17 de fevereiro. Marx comprou imediatamente a passagem no primeiro navio partindo para a África24 e no dia seguinte, em uma ventosa tarde de inverno, põe- -se em la com outros viajantes que esperavam embarcar no cais de Marselha. Consigo havia um par de malas, nas quais carregava roupas quentes, medica- mentos e alguns livros. O navio a vapor Said zarpou às cinco da tarde para Argel25, onde Marx cou por 72 dias, o único período de sua vida que passou longe da Europa.
2. Argel e as re exões sobre o mundo árabe
Marx chega à África em 20 de fevereiro, após uma tempestuosa travessia de 34 horas. No dia seguinte, escreve a Engels que seu “ corpus delicti desembarcou em Argel congelado até a medula”.
Ele hospedou-se no Hôtel-Pension Victoria, na zona do Mustapha superior. Seu quarto, situado em uma posição ideal, com vista para o porto de um lado e com as montanhas da Cabília como horizonte do outro, gozava de um “panorama fabuloso”, oferecendo-lhe a oportunidade de apreciar o “maravilhoso mélange entre Europa e África”26.
A única pessoa que conhecia a identidade daquele senhor poliglota, recém- -chegado à cidade, era Albert Fermé (?), um juiz de paz, seguidor de Charles Fourier (1772-1837), que chegou a Argel em 1870, após um período de encarcera- mento devido à sua oposição ao Segundo Império francês. Foi a única verdadeira companhia de Marx, servindo-lhe de guia em suas excursões e respondendo às suas curiosidades sobre aquele mundo novo.
Infelizmente, com o passar dos dias, a saúde de Marx não melhorou absolu- tamente. Ele continuou a ser perseguido pela bronquite e por uma tosse incessante, que lhe provocava insônia. Conjuntamente, o clima excepcionalmente frio, chu- voso e úmido no qual estava envolvida Argel favoreceu um ataque de pleurite. Sobre a cidade abateu-se o pior inverno dos últimos dez anos e Marx escreveu a Engels: “a única diferença entre a vestimenta que uso em Argel e a da ilha de Wight é que substituí meu casaco de rinoceronte por um casaco mais leve”. Ele chegou mesmo a considerar a hipótese de se deslocar 400 km mais para o sul, em Biskra, um vilarejo localizado às portas do Saara, mas as péssimas condições fí- sicas dissuadiram-no de enfrentar uma viajem tão desconfortável. Começara, portanto, um longo período de complicados tratamentos.
Marx foi levado para tratamento ao melhor médico de Argel, o doutor Char- les Stéphann (1840-1906), que lhe prescreveu arseniato de sódio durante o dia e uma mistura de xarope e opiáceos à base de codeína para poder repousar à noite. Estes também o forçaram a reduzir os esforços físicos ao mínimo e de não de- senvolver “qualquer tipo de trabalho intelectual, exceto uma ou outra leitura de distração”. Apesar disso, em 6 de março a tosse tornou-se ainda mais violenta, provocando-lhe sucessivas hemorragias. Marx foi, portanto, proibido de sair do hotel e mesmo de conversar: “agora paz, solidão e silêncio são para mim um de- ver cívico”. Pelo menos, escreveu a Engels, entre os remédios “o doutor Stéphann, como o meu querido doutor Donkin [de Londres], não se esqueceu do conhaque”.
A terapia mais dolorosa consistiu num ciclo de dez injeções. Marx con- seguiu realizá-la graças à ajuda de outro paciente que, afortunadamente, era um jovem farmacêutico. Por meio de numerosas aplicações de colódio sobre o peito e as costas e com a sucessiva incisão das bexigas que se criaram, o senhor Casthelaz conseguiu drenar, um pouco de cada vez, o líquido em excesso nos pulmões.
Reduzido a condições penosas, Marx começou a se lamentar pela eleição de tal viagem. Ao genro Lafargue, queixou-se da falta de sorte, posto que “desde a [sua] partida de Marselha”, na Costa Azul, o outro destino que havia conside- rado para passar o inverno, “o tempo estava magní co”27. Na segunda metade de março, con denciou à lha Jenny: “com esta expedição, insana e mal pensada, voltei exatamente ao mesmo estado de saúde no qual me encontrava quando parti [de Londres]”. Marx lhe confessou também de ter alimentado dúvidas sobre aquela jornada em um lugar tão distante, mas que Engels e Donkin esta- vam in amados de furor africano, mesmo sem possuírem, nem um, nem outro,as informações adequadas28. Na sua opinião, “a coisa certa teria sido informar- -se antes de se aventurar em tal ‘caçada ao ganso selvagem’”29.
Em 20 de março, Marx escreve a Lafargue que o tratamento havia sido tem- porariamente suspenso, pois, tanto sobre o tórax quanto sobre as costas, não lhe havia restado sequer um ponto seco. A visão de seu corpo lhe havia recordado aquela de “uma plantação de melões em miniatura”. O sono, contudo, estava “re- tornando, pouco a pouco”, provocando-lhe um grande alívio: “quem nunca so- freu de insônia não pode entender o bem estar que se experimenta quando o terror das noites sem repouso começa, nalmente, a diminuir”30.
Sua angústia cresce, infelizmente, em consequência da explosão noturna das bolhas, da obrigação de car enfaixado e da proibição absoluta de se coçar. Tendo conhecimento, por meio dos boletins meteorológicos que, subsequente- mente à sua partida, o tempo na França “havia estado magní co” e relembrando a previsão inicial de uma rápida recuperação, Marx comunicou a Engels que “um homem não deveria nunca se iludir com visões demasiado otimistas”31. Infeliz- mente, de fato, “para uma mente sã em um corpo são, havia ainda por fazer”32.
As dores de Marx não concerniam somente ao corpo. Ele se sentia só e à sua lha Jenny escreveu que “nada seria mais encantador do que Argel, sobretudo do que a zona rural nos arredores da cidade […] – considerando estar com boa saú- de –, se tivesse ao meu redor todos os que me são caros, especialmente os netos. […] Seria como em As mil e uma noites” 33. Em uma carta seguinte, ele lhe con – denciou que gostaria de ter assistido ao encantamento de Johnny, o mais velho deles, “diante dos mouros, dos árabes, dos negros, em resumo, desta Babel, e dos costumes (em sua maior parte poéticos) deste mundo oriental, mesclado com o ‘civilizado’ francês e com o entediante britânico”34.
A Engels, companheiro com o qual dividia tudo, revelou ter “profundos ata- ques de melancolia, similares aos do grande Dom Quixote”. Seu pensamento voltava-se sempre para a perda de sua companheira: “você sabe que poucas pes- soas são mais avessas do que eu à ostentação de sentimentos; todavia, seria uma mentira não admitir que o meu pensamento está preponderantemente absorvido na recordação da minha mulher, uma parte tão grande da melhor parte da minha vida!”35. Para distraí-lo da dor do luto havia, contudo, o espetáculo da natureza ao seu redor. Ele a rmou nunca car “cansado de olhar o mar em frente à [sua] varanda” e de estar encantado pelo “maravilhoso clarão da lua sobre a baía”36.
Marx estava muito a ito também devido ao forçado distanciamento de qualquer atividade intelectual diligente. Desde o início de sua peregrinação, sempre foi consciente de que aquela jornada envolveria “uma enorme perda de tempo”, mas terminara por aceitar as circunstâncias após haver compreendido que a “maldita doença [… estava] dani ca[ndo] também a mente do enfermo”37.
Escreve a Jenny que, em Argel, a realização de “qualquer trabalho estava fora de questão, até mesmo a correção de O Capital” para a terceira edição alemã. Sobre a situação política da época, limitou-se a ler apenas notícias telegrá cas de um modesto jornal local, Le Petit Colon, e do único jornal operário que lhe che- gava do velho continente, L’Égalité, sobre o qual sublinhou, com o costumeiro sarcasmo, que aquilo “não podia ser considerado um jornal”.
As suas cartas da primavera de 1882 mostram o quanto ele era “ansioso de voltar a ser ativo e de abandonar esta estúpida pro ssão de inválido”38, para po- der dar m àquele tipo de “existência inútil, vazia e, ainda por cima, dispendiosa!”39. A Lafargue disse, mais tarde, estar empenhadíssimo em não fazer nada para sen- tir-se imbecil40. Deste testemunho parece transparecer também o temor de não se imaginar mais apto a retornar à sua existência habitual.
A progressiva pressão de todos esses acontecimentos desfavoráveis im- pediu Marx de compreender, a fundo, a realidade argelina; muito menos, como Engels esperava, foi-lhe possível estudar as características da “propriedade co- munal entre os árabes”41. Ele já se interessava, ao longo dos estudos de história da propriedade fundiária e das sociedades pré-capitalistas, realizados a partir de 1879, sobre a questão da terra na Argélia durante a dominação francesa. Marx copiara, em um de seus cadernos de resumos, algumas partes sobre a importância da propriedade comunal antes da chegada dos colonizadores franceses, assim como as transformações introduzidas por estes, do texto do historiador russo Maksim Kovalevskij, A propriedade comunal da terra: causas, desenvolvimento de consequências de sua decomposição:
a constituição da propriedade privada da terra (aos olhos dos bur- gueses franceses) é uma condição necessária para qualquer progresso nas esferas política e social. A posterior manutenção da propriedade comunal “como forma que suporta as tendências comunistas nas mentes” [Debatidos na Assembleia Nacional, 1873] é perigosa seja para a colônia, seja para a pátria. A distribuição da propriedade entre os clãs é encorajada, até mesmo prescrita; antes de tudo, como meio para enfraquecer as tribos subjugadas que, todavia, estão permanen- temente sob o impulso da revolta e, em segundo lugar, como único modo para uma posterior transferência da propriedade fundiária das mãos dos nativos para as dos colonizadores. Esta mesma política foi posta em prática pelos franceses sob todos os regimes […]. O objetivo é sempre o mesmo: a destruição da propriedade coletiva dos indígenas e a sua transformação em um objeto de livre compra e venda, o que signi ca tonar mais simples a passagem nal nas mãos dos coloniza- dores franceses42. (Marx, 1975, p. 405)
O projeto de lei sobre a situação argelina, apresentado no parlamento pelo deputado da esquerda republicana Jules Warnier (1826-1899) e aprovado em 1873, tinha como objetivo “a expropriação da terra das população nativas por parte dos colonizadores europeus e dos especuladores”. A desfaçatez dos fran- ceses chegou ao “furto explícito”, isto é, à transformação em “propriedade do go- verno” de todas as terras não cultivadas que haviam permanecido sob o uso comum dos indígenas. Tal processo estava determinado a produzir outro impor- tante resultado: anular o risco de resistência das populações locais. Sempre por meio das palavras de Kovalevsky, Marx sublinhou em suas anotações que:
O estabelecimento da propriedade privada e a grilagem dos coloniza- dores europeus […] tornar-se-á o mais potente meio para acelerar o processo de dissolução da união dos clãs. […] A expropriação dos ára- bes demandada pela lei [servia]: I) à obtenção de maior quantidade de terra possível para os franceses; e II) à destruição dos vínculos na- turais dos árabes com a terra, desmantelando, assim, a última força de união dos clãs e, portanto, dissolvida esta, qualquer perigo de re- belião. (ibidem, pp. 408, 411-412)
Este tipo de “individualização da propriedade da terra” teria trazido, por- tanto, não apenas um enorme benefício econômico para os invasores, mas também favorecido um “objetivo político […]: desorganizar as bases daquela so- ciedade” (ibidem, p. 412).
Precisamente em 22 de fevereiro de 1882, no jornal argelino L’Akhbar, foi publicada uma matéria que documentava as injustiças do sistema que tinha sido criado. Naquela época, qualquer cidadão francês poderia adquirir, em teoria, sem deixar seu país, uma concessão de mais de 100 hectares de terra argelina, a qual podia, posteriormente, revender, por 40 mil francos para um nativo. Em média, os colonos revendiam qualquer punhado de terra, adquirido por 20 a 30 francos, a 300 francos43.
Devido à sua terrível saúde, entretanto, Marx não estava em condições de retornar a tais questões, nem lhe foi indicado esse texto. De qualquer forma, sua permanente sede de conhecimento não arrefeceu mesmo na presença das cir- cunstâncias mais adversas. Depois de haver explorado a zona limítrofe ao seu hotel, onde estava em curso uma vasta obra de reconstrução de casas, ele notou que “embora os operários encarregados desta obra sejam homens sadios e na- turais do local, após os primeiros três dias de trabalho já se encontram abatidos pela febre. Parte de seu salário é, portanto, destinada à dose diária de quinino, fornecida a eles pelos empreendedores”44.
Entre as observações mais interessantes que conseguiu resumir nas 16 cartas redigidas às margens meridionais do Mediterrâneo45, algumas também formuladas à luz de uma visão ainda em parte colonial, destacam-se aquelas sobre as relações sociais entre os muçulmanos.
Após ter cado profundamente impressionado com o porte dos árabes – a propósito da qual escreve: “mesmo o mais pobre dos mouros supera o maior co- mediante europeu ‘art de se draper’ dans son cap [na arte de cobrir-se com seu manto] e de manter uma compostura natural, elegante e digna”46 – e com a mis- tura existente entre suas classes sociais, na metade de abril, Marx contou à lha Laura que havia visto alguns árabes jogando cartas, “vestidos de forma preten- siosa, quase opulenta”, com outros que trajavam “camisas surradas e rasgadas”. Para um “verdadeiro muçulmano”, ele comentou:
a riqueza e a pobreza não tornam os lhos de Maomé uns diferentes dos outros. A absoluta igualdade em suas relações sociais não é in- uenciada por aquelas. Pelo contrário, só são notadas pelos deso- nestos. No que se refere ao ódio pelos cristãos e a esperança em uma vitória de nitiva sobre os in éis, seus políticos consideram, com razão, esse sentimento e essa prática de absoluta igualdade (não de riqueza e renda, mas da pessoa) como uma garantia para manter vivo um e não abandonar a outra. Ambos, no entanto, sem um movimento revolucionário, caminham para a ruína47.
Marx também cou maravilhado com a escassíssima presença do Estado:
em nenhuma outra cidade sede do governo central, existe um tal lais sezfaire, laisserpasser. A polícia está reduzida ao mínimo necessário; uma insolência pública nunca vista. Na origem de tudo isso está o ele- mento mourisco. De fato, os muçulmanos não conhecem a subor- dinação. Não são “súditos”, nem “dirigidos”; nenhuma autoridade, salvo em questões políticas, mas parece que os europeus não enten- deram isso48.
Destes últimos, Marx atacou, com desdém, os violentos abusos de poder, os repetidos atos de provocação e, não menos importante, “a despudorada arro- gância, a presunção e a obsessão de se vingarem como Moloch” diante de qualquer ato de rebelião da população local, sublinhando, além do mais, que relativamente aos danos produzidos pelas grandes potências na história das ocupações coloniais, “os britânicos e holandeses supera[va]m em muito os fran- ceses”. No que concerne a Argel, ele relatou a Engels que, durante sua carreira de juiz, o amigo Fermé havia, regularmente, “visto aplicarem uma espécie de tortura […], por parte da ‘polícia’ […], para forçar os árabes a confessarem”, exatamente “como fazem os ingleses na Índia”, adiciona. Estes lhe haviam contado que
Se, por exemplo, um bando de árabes perpetra qualquer atrocidade, normalmente com o objetivo de roubar, e no passar do tempo os ver- dadeiros autores são devidamente presos, condenados e executados, para a família de colonizadores atingida isso não basta como pu- nição. Essa espera que ao menos uma meia dúzia de árabes inocen- tes venha a ser um pouco “maltratada”. […] Quando um colonizador estabelece-se para viver, ou mesmo apenas transita por motivos de negócios, entre as “raças inferiores”, em geral considera-se ainda mais intocável do que Guilherme I, o belo49.
Marx voltou ao assunto em outra circunstância, quando quis relatar a Engels sobre uma brutalidade perpetrada pelas autoridades francesas nos de- bates sobre um “pobre árabe, matador de aluguel”. Antes de ser executado, des- cobriu-se que ele não teria sido “fuzilado, mas guilhotinado! E isso contra os acordos! Contra qualquer promessa […], apesar de ter sido acordada outra coisa”. Ademais:
seus pais esperavam a entrega do corpo e da cabeça, como os france- ses sempre haviam permitido até agora, de forma a poder remendar a segunda ao primeiro e sepultar, portanto, “o todo”. Mas este não! Cho- ro, gritos e maldições; pela primeira vez, as autoridades haviam recu- sado, negado! Se o corpo chega ao paraíso agora, Maomé questionará: “onde deixou a cabeça?”; ou então: “o que aconteceu para a cabeça estar separada do corpo?” [Dirá] “não é digno do paraíso. Vá-se com aqueles cães dos cristãos!”. , assim, os pais choram e se desesperam50.
Ao lado dessas observações sociais e políticas, suas cartas incluíam tam- bém relatos de costumes. À sua lha Laura, narra uma breve história que o havia divertido muito, dado a pessoa prática que era:
Sobre as águas turbulentas de um rio, encontra-se um comandante que espera, com seu pequeno barco. Chega um lósofo, que deseja chegar à outra margem, e sobe a bordo. Eis o diálogo que se segue: Filósofo: Barqueiro, você sabe História?
Barqueiro: Não!
Filósofo: Então perdeu a metade da sua vida. E ainda o lósofo: E estudou matemática? Barqueiro: Não! Filósofo: Então perdeu mais da metade da sua vida.
Essas palavras apenas haviam acabado de sair da boca do lósofo e o vento virou o barco e ambos, barqueiro e lósofo, viram-se lançados à agua.
Então o barqueiro disse: Você sabe nadar?
Filósofo: Não!
E o barqueiro: Então perdeu a vida inteira51.
Marx comentou jocosamente: “isto lhe dará uma ideia básica sobre as coi- sas árabes”52.
Após outros dois meses de sofrimentos, as condições de Marx melhoram e o retorno para França torna-se nalmente possível. Antes de partir, compartilha com Engels uma última surpresa: “devido ao sol, tirei a barba de profeta e a pe- ruca que tinha na cabeça, mas – posto que, segundo minhas lhas, estou melhor assim – tirei uma fotogra a antes de sacri car os cabelos a um barbeiro argelino”53. Foi nesta circunstância, portanto, que foi tirada sua última instantânea. A ima- gem é completamente diferente do per l rígido de tantas estátuas erigidas nas praças das capitais do “socialismo real”, isto é, da qual o poder escolheu, por- tanto, para representa-lo. Seus bigodes, à maneira de suas ideias, não haviam perdido a cor da juventude, e seu rosto, apesar das grandes amarguras da vida, apresentava-se ainda benevolente, modesto e sorridente54.
3. Um republicano no principado
Mais uma vez, Marx encontrou-se atormentado pelo tempo ruim. Durante os “últimos dias africanos55, sua saúde foi posta à prova com a chegada do vento siroco, e também a viagem a Marselha, onde desembarcou em 5 de maio, dia de seu sexagésimo quarto aniversário, foi particularmente turbulenta. Como re- velou à lha Eleanor, a travessia ocorreu em péssimas condições meteoroló- gicas: “uma violenta tempestade transformou minha cabine […] em um autên- tico túnel de vento”. Chegado ao destino, o navio a vapor não atracou no píer, e os passageiros foram transportados em barcas à doca, “para depois passar, com satisfação adicional deles, várias horas em uma fria e ventosa aduana-purgatório, antes de retomar a viagem para Nice”. Estas atribulações extras foram deletérias para Marx, visto que, como escreve com seu habitual sarcasmo, “estragaram no- vamente minha máquina” e o obrigaram, apenas desembarcado em Monte Carlo, a voltar “às mãos de um Asclépio”56.
A pessoa a quem con ou seu tratamento foi o doutor Kunemann (1828-?), um ótimo médico originário da Alsácia, especialista em enfermidades pulmo- nares57. Infelizmente, descobriu que a bronquite tornara-se crônica e, para terror de Marx, “a pleurite havia voltado”58. Os deslocamentos haviam se revelado, mais uma vez, deletérios, e Marx comentou com Engels, utilizando, como soía fazer, referências literárias: “o ‘destino’ revelou-se com horrível coerência, quase como nas tragédias [… de Amandus] Müllner” (1774-1829), o dramaturgo alemão em cujas obras esse elemento exerce um papel determinante na existência humana. Fez-se indispensável, então, uma nova série de quatro tratamentos vesicantes, realizados entre 9 e 30 de maio.
Devendo, necessariamente, recuperar-se para poder novamente partir, Marx passa três semanas no principado de Mônaco. Suas descrições do ambiente que o circundava mesclam grande espírito de observação e crítica social. Ele comparou Monte Carlo a Gérolstein, o minúsculo Estado imaginário onde o com- positor Jacques Offenbach (1819-1880) ambientara a ópera La GranDuchessa di Gérolstein.
Durante sua estada, Marx foi muitas vezes à sala de leitura do famoso Cas- sino, que oferecia uma boa seleção jornais internacionais, e relatou a Engels que seus “companheiros de refeição no Hôtel de Russie” e, mais em geral, o público que se encontrava na cidade, “estavam amis interessados no que acontece nas salas de jogo do cassino”. As cartas desse período alternam a observação anedó- tica sobre os diálogos de algumas pessoas que conheceu – como “um lho, muito intratável, da Grã Bretanha” que estava “acerbo e nervoso” porque havia “perdido um discreto número de dobrões de ouro e absolutamente decidido a ‘afanar’ qualquer um” – com comentários sardônicos: “não compreende[u] que a deusa da Fortuna não se deixa intimidar nem mesmo pela vilania britânica”59.
O retrato mais incisivo daquela realidade, que ele tanto estranhava, ofereceu à lha Eleanor, em uma carta escrita pouco antes de partir:
À mesa de refeições e nos cafés, fala-se e sussurra-se quase exclusiva- mente a respeito das mesas da roleta e do Trente et quarante. Ocasio- nalmente alguém vence alguma coisa, como os 100 francos ganhos por uma jovem senhora, mulher de um diplomata russo […], que, pelo contrário, perdeu seis mil; às vezes um ou outro não tem mais dinheiro para a viagem de volta. Outros ainda perdem no jogo imensas fortunas de família. São pouquíssimos os jogadores que conseguem arrebatar uma parte do butim […] e estes são quase exclusivamente os ricos. Aqui não podem entrar nem a razão, nem o cálculo; ninguém pode depositar con ança em favor da sorte com o mínimo de con a- bilidade, a não ser que possua uma considerável soma para arriscar60.
O frenesi que exalava no ar não se con nava aos salões de jogo e ao horário noturno, mas impregnava toda a cidade e o dia inteiro de seus visitantes. Em uma zona adjacente ao cassino, por exemplo, encontrava-se
um quiosque onde, todos os dias, destacava-se um manifesto, não im- presso, mas escrito a mão, assinado com as iniciais do autor. Por 600 francos ofertavam-se, preto no branco, os segredos da ciência para vencer um milhão de francos apostando mil […]. No rastro dessa ar- madilha para tolos registram-se histórias de todo inverossímeis. A maior parte dos jogadores e das jogadoras acredita que nesses jogos de puro azar há algo de cientí co. Os senhores e as senhoras amon- toam-se diante do Café de Paris, ou nos bancos de seu interior, com a cabeça pendida sobre pequenas tabelas impressas, rabiscando e cal- culando, enquanto um explica ao outro o seu “sistema” preferido, o motivo pelo qual é oportuno jogar em “série” etc. Parece que observo internos de um manicômio61.
En m, para Marx era evidente que “a base econômica de Mônaco-Gerols- tein é o cassino; se fechasse amanhã, seria o m para Mônaco-Gerolstein!”. Ele a rma que sem a existência desse último, “nem Nice, exclusiva como o mundo de aventureiros que passa[va]m ali os meses do inverno, [teria] continu[ado] a ser uma lugar de moda […]. e com tudo isso, esta casa de jogo para tão infantil em comparação com a Bolsa!”.
Após o último tratamento vesiculante, o doutor Kunemann deu alta a Marx e lhe concedeu a permissão de voltar a viajar, aconselhando-o, contudo, a “ car uns dois dias em Cannes, porque assim o requeria a drenagem das feridas produ- zidas”. Na exclusiva localidade francesa, ele traçou um balanço do período trans- corrido na Costa Azul:
repousei o mês inteiro nesse covil de aventureiros re nados e ociosos. A natureza é esplêndida, mas no que tange ao resto, é um cafundó enfadonho. Não há nenhuma “massa” plebeia, com exceção dos gar- çons do hotel e dos cafés e dos serviçais, que pertencem ao subprole- tariado62.
As condições climáticas mais adversas continuaram a exacerbar-se e vol- tar-se contra ele. Durante os três dias transcorridos em Cannes, a pequena ci- dade foi, excepcionalmente, atingida por “um forte vento (ainda que quente) e redemoinhos de poeira”, dos quais se ocupou “toda a imprensa local da Riviera”. Marx reagiu com autoironia, brincando com Engels: “até a natureza possui certo humor listeu (como – já humoristicamente antecipado no Antigo Testamento – o da serpente que se nutre de lama, ou mesmo como o da dieta de terra dos vermes de Darwin)”.
Por m, na mesma carta, Marx deteve-se na descrição das últimas reco- mendações recebidas do médico: “comer bem e muito, ‘acostumar-se’ mesmo contra a própria natureza; ‘beber algo bom’; distrair-se com viagens […]; pensar o menos possível”. Ele teve de comentar que “seguindo estas ‘instruções’, estou bem no caminho para a estupidez, e não me livrei nem mesmo do catarro brôn- quico”. A modo de consolação, recordou ao amigo que o esperava em Londres que “foi a bronquite que mandou o velho Garibaldi para ‘o eterno repouso’”. De qualquer forma, ele a rmou estar convicto de que, “em uma certa idade, é com- pletamente indiferente para o que é ‘enviado para a eternidade’”63.
Cerca de quatro meses desde sua partida, em 7 de junho, Marx estava ha- bilitado para pegar o trem que, no dia seguinte, levá-lo-ia à casa da lha em Ar- genteuil. Antes de empreender a viagem, solicitou a esta última não se preocupar com sua chegada – “até hoje, sempre reconheci que para mim não há coisa pior do que alguém estar a me esperar na estação” – e de não anunciar seu retorno a nenhum de seus companheiros, nem mesmo a Lafargue. Ele ainda tinha “neces- sidade de tranquilidade absoluta”64 e, como comunicou também a Engels, sentia que era “ainda necessário reduzir ao máximo o trato com as pessoas”65. O gigante estava cansado, sentia estar próximo do m de seu caminho e escreveu a Jenny palavras similares àquelas de todos os comuns mortais: “por ‘tranquilidade’ en- tendo ‘a vida doméstica’, a ‘balbúrdia das crianças’, aquele ‘mundo microscópico’ mais interessante do que o ‘macroscópico’”66.
Logo após a chegada à Argenteuil, Marx comparou sua existência à de um “detent[o] em liberdade condicional”, visto que, como era habitual a esse tipo de prisioneiro, também devia sempre “apresentar-se ao médico mais perto da [sua] próxima temporada turística”67. O médico da casa Longuet, Gustave Dourlen, co- nhecia bem Marx e aconselhou-o a “experimentar, em alguma semana, as águas sulfurosas de Enghien[-les-Bains]”68, uma localidade nos arredores onde poderia consultar o doutor Feugier (?).
O clima, ainda muito instável, não permite o início imediato da cura e con- corre, além disso, para torná-lo bastante doloroso devido a “um reumatismo muscular na altura do quadril”69.
Somente nos primeiros dias de julho, Marx pôde nalmente, com certa re- gularidade, tomar os banhos sulfurosos, tratamento que lhe trouxe um grande benefício. Com o frequente tom sarcástico, assim descreveu, para Engels, as ope- rações a que se submetia repetidamente:
Na sala de inalação, o ar é denso de vapores sulforosos; aqui se perma- nece por 30-40 minutos; a cada cinco minutos, sentados em uma mesa, aspira-se um vapor carregado de um enxofre especial pulveri- zado […]. Todos somos envoltos da cabeça aos pés, como múmias, em uma borracha elástica; depois disso, marcha-se, um atrás do outro, em volta da mesa: cena inocente do inferno dantesco70.
A rotina dos tratamentos termais foi acompanhada do tempo transcorrido com a família da lha, sobretudo com os netos. Na volta de Enghien-les-Bains, após haver repousado, à tarde, ia regularmente fazer “uma caminhada e umas voltas com as crianças, com consequências sobre a audição e a visão (para não falar do intelecto) ainda muito mais nocivas do que aquelas experimentadas com o Hegel da Fenomenologia [do espírito ]”.
Todavia, não obstante os esforços e seu máximo empenho, o catarro bron- quial não havia ainda “dado seu último suspiro” e os médicos sugeriram a Marx prosseguir o tratamento até a metade de agosto. No geral, porém, suas condições estavam melhores e no início do mês até teve um encontro com alguns dirigentes do movimento de trabalhadores parisiense. À reunião, tomaram parte José Mesa (1840-1904), Lafargue, Gabriel Deville (1854-1940) e Jules Guesde (1845-1922), e ele relatou para Engels que, após vários meses, “era a primeira vez que [havia] consentido em uma reunião desse tipo. É sempre o discurso animado, a conversa a ada, que me cansam… post festum”71.
Marx realizou “a última peregrinação na sala de inalação” em 20 de julho do mesmo mês. Na visita de despedida do doutor Feugier, este lhe disse que “o ruído do atrito pleural continua[va] no status quo, circunstância já prevista”. De acordo com o colega Dourlen, ele aconselhou ir ao Lago de Genebra, “de onde chegam notícias meteorológicas favoráveis”, na esperança que “os últimos traços do […] catarro brônquico pudesses desaparecer sozinhos”72.
Desta vez, Marx, não podendo se expor “sozinho aos riscos de uma via- gem”, foi escoltado pela lha Laura, à qual advertiu, comparando-se ironicamente ao ismaelita Rashid ad-Din Sinan (1132/1135–1192), o líder da seita dos Assassinos que assumiu uma função importante à época da Terceira Cruzada, que era seu dever “acompanhar o velho da montanha”73.
Antes de partir, Marx recebeu uma carta de um correspondente parisiense de vários “jornais teutônicos”. Este, que se declarara seu “humilde e devoto servo”, havia lhe pedido uma entrevista, argumentando como motivação “que todos os círculos da ‘sociedade’ alemã estavam ansiosos por receber notícias o ciais sobre [seu] estado de saúde”. Marx relatou a Engels que, “naturalmente, não [havia] res- pondido àquele escriba lambe-botas”74.
A primeira etapa da viagem, empreendida apenas durante as horas diurnas a m de “evitar qualquer motivo para recaída”75, foi Lausanne. Marx chega com um resfriado, contraído após seu encontro, ocorrido antes da partida, com Joseph Roy (1830-1916), o tradutor de O Capital na língua francesa. A despeito das previ- sões favoráveis dos boletins do tempo, foi acolhido por um clima “úmido e rela- tivamente frio”. Assim relata a Engels: “minha primeira pergunta ao garçom foi: desde quando chove aqui? Resposta: tem estado chuvoso apenas nos dois últimos dias (portanto, desde o momento da minha partida de Paris). Que estranho!”76.
O destino nal da viagem foi a cidadezinha de Vevey, situada na margem nordeste do Lago de Genebra. Marx escreveu a Engels que “continu[ava] a tossir”, mas que, ao mesmo tempo, tudo procedia bem: “vivemos como no país da Cocanha”77. Sua companhia lhe fazia muita falta e tento convencer o amigo para que pudesse juntar-se a ele desde Londres. Engels, porém, estava, antes de tudo, preocupado com a gestão de todos os problemas práticos, a m de continuar a garantir a Marx, no momento, os recorrentes tratamentos: “ caria extremamente contente em partir para encontrá-lo, mas se me acontece qualquer coisa, ainda que temporariamente, seria um verdadeiro pandemônio para todas as nossas questões nanceiras”78. Marx compreende e expressa, mais uma vez, sua gratidão: “o altruísmo que mostra nas minhas lutas é incrível e, frequentemente, envergo- nho-me em silêncio”79.
Após o retorno à casa de Laura, em Paris, ocorrido no m do mês, Marx dirigiu-se novamente ao médico para obter “a permissão de atravessar o Canal da Mancha”80. Este último o considerou “muito melhor [e …] e perto de me livrar deste obstinado catarro”. Para tanto, impôs-lhe não permanecer “em Londres por mais de 15 dias ou, somente se o tempo estiver ótimo, três semanas. […] A tem- porada de inverno [… deveria] começar, em tempo, na ilha de Wight”. De qualquer forma, ironizou, dizendo ao amigo que o esperava na Inglaterra, “se o governo francês fosse informado de minha presença aqui, provavelmente me mandaria embora mesmo sem a permissão do doutor Dourlen”81.
lha Laura que sua “tosse [era] ainda cansativa” 82 e que devia tentar “livra-se de tudo, antes de voltar a estar perfeitamente e ciente”. A chegada do outono trouxe umidade e névoa. O doutor Donkin, onde havia voltado para tratamento, reco- mendou-lhe transferir-se novamente para a ilha de Wight. Antes de partir, passou um dia inteiro com Engels – que escreve a Lafargue: “esteve aqui para almoçar comigo, à noite jantamos todos na casa dele e depois camos bebendo rum até uma da manhã”83 – e, em 30 de outubro, retornou para Ventnor.
Pouco após sua chegada, entretanto, Marx piorou novamente, desta vez por causa de um reumatismo “perto da velha área da minha recorrente pleurite”84. Foi obrigado, assim, a ver um novo médico, o doutor James Williamson, que lhe prescreveu uma medicação a base de “quinino […], mor na e clorofórmio”85. Ademais, a m de que seus “passeios ao ar livre” não sofressem o in uxo “da os- cilação da temperatura, [fui] obrigado, de novo, a carregar nas costas o respi- rador, para utilizar em caso de necessidade”.
Em tais condições e após um “longo período de ofuscamento intelectual”86, Marx acredita ser impossível voltar a se dedicar à preparação da terceira edição alemã de O Capital e, de fato, em 10 de novembro, escreve à lha Eleanor, que foi ao seu encontro, depois de poucos dias, com o neto Johnny: “dadas as circuns- tâncias, ainda não comecei a trabalhar seriamente, mas tenho me ocupado com uma coisa ou outra como uma forma de preparação”87. Nesse período, retomou os estudos de antropologia e transcreveu algumas das páginas mais interessantes do livro As origens da civilização e a condição primitiva do homem [1870], de John Lubbock (1834-1913).
Engels o atualizava constantemente sobre a situação em Londres: “em sua casa está tudo bem, mas a cerveja é ruim em todos os lugares; é boa apenas aquela alemã no West End”88, mas Marx não pôde dar-lhe em troca notícias posi- tivas. A tosse aumentara e manifestara-se também uma fastidiosa rouquidão. Por isso, foi novamente “condenado a permanecer recluso”, impossibilitado de deixar seu quarto, como lamentou com o amigo, “até que passe a in amação”89.
Em 14 de dezembro, escreve à lha Laura que “há cerca de duas semanas, devido a um catarro traqueal, estava obrigado à prisão domiciliar”. Também acres- centa que vivia “como um eremita: não vejo ninguém, salvo as visitas do doutor Williamson”90, o qual, por causa do tempo “muito úmido e chuvoso”, não havia permitido sair “até que faça um belo dia”91.
Apesar de todas as adversidades, Marx não desistiu, o quanto lhe foi pos- sível, de comentar os acontecimentos mais atuais e as posições dos dirigentes do movimento de trabalhadores. Disse que estava “exausto” de alguns deles pelo uso de “uma certa […] fraseologia ultrarrevolucionária que sempre considerei ‘vazia’; uma especialidade que os nossos fariam bem em abandonar em favor dos chamados anarquistas, que, na verdade, são os pilares da ordem existente, não os criadores da desordem”92.
Da mesma forma, não poupou aqueles que não se mostravam capazes de conservar uma posição de classe autônoma e advertiu sobre a imperiosa neces- sidade, por parte dos trabalhadores, de oporem-se às instituições e à retórica do Estado. Quando, de fato, o presidente do Congresso das cooperativas e deputado Joseph Cowen – que Marx considerava “o melhor entre os parlamentares ingle- ses” – justi cou a invasão do Egito pela Inglaterra93, ele revelou à lha Eleanor sua mais completa desaprovação.
Em primeiro lugar, lançou-se contra o governo: “que beleza! Não poderia haver um exemplo mais descarado de hipocrisia cristã do que essa ‘conquista’ do Egito, uma ocupação em pleno tempo de paz!”. Ademais, mirou Cowen, que, em um discurso público, realizado em 8 de janeiro de 1883 em Newcastle, expressara sua admiração por “esta ‘ação heroica’, [pelo] ‘esplendor da […] parada militar’” e “tinha um sorri[so], complacente, diante da encantadora cena de todos aqueles postos militares ofensivos, forti cados entre o Atlântico e o Oceano Índico e, além disso, de um império ‘afro-britânico’, que se estendia do delta do Nilo à re- gião do Cabo”. Era o “estilo inglês”, caracterizado pelo respeito pelos “interesses da ‘pátria’”.
Para Marx, em questões de política externa, Cowen não passava do típico exemplo daqueles “pobres burgueses britânicos que, arruinando-se, assumem sempre maiores ‘responsabilidades’ para realizar sua missão histórica, ainda que reivindicando, em vão, contra ela”94. Ele interessou-se fortemente também pelo aspecto econômico do acontecimento, como demonstram as oito páginas de ex- certos que transcreveu da matéria Egyptian Finance, de Michael George Mulhall (1836-1900), publicado na edição de outubro da revista londrina The Contemporary Review 95.
Até o m da vida, portanto, Marx criticou, com zelo in exível, as nações que sempre considerara as principais responsáveis pelo reacionarismo na Euro- pa: Reino Unido e Rússia. A esta última dedicou grande atenção e, mesmo no outono de 1882, como demonstram dois dos últimos cadernos de notas redi- gidos por ele, interessou-se por todas as transformações ali ocorridas96. Em par- ticular, Marx estudou algumas obras recém-publicadas, nas quais eram analisa- das as novas relações socioeconômicas surgidas após a reforma agrária de 1861, por meio da qual a servidão foi abolida. Entre os livros que sumariou, estavam Os camponeses à época da imperatriz Catarina II [1881], de Vasilii Semevskii (1848- 1916), O artel na Rússia [1881], de Andrej Isaev (1851-1924), A propriedade co munal rural na província de Arcanjo [1882], de Gerard Minejko (1832-1888) e O futuro do capitalismo na Rússia [1882], de Vasilij Voronkov (1847-1918); além de trabalhos mais datados, como A questão camponesa à época de Alessandro II [1862], de Aleksandr Skrebickij (1827-1915), e Na periferia e na capital [1870], de Fedor Elenev (1827-1902), que assinara sua obra sob o pseudônimo de Skaldin97.
Naquele período, alguns artigos, surgidos em São Petersburgo, relatavam “a grande disseminação das [su]as teorias naquele país”. Ele cou vivamente con- tente, uma vez que, como disse à lha: “em nenhum outro lugar meu sucesso me dá tanto prazer. Dá-me a satisfação de golpear uma potência que, junto com a Inglaterra, é o verdadeiro baluarte da velha sociedade”98.
Alhures, sua crítica não poupava ninguém. Na França, por exemplo, depois do nascimento do Partido Operário, ocorrida em setembro de 1882, Marx lan- çou-se contra os maridos de suas lhas mais velhas, os quais designou para Engels, em um surto de ira: Longuet é o último proudhoniano e Lafargue é o úl- timo bakuninista; que vão ao inferno!”99. Da mesma maneira, desancou várias vezes aqueles que se declaravam seguidores de suas ideias sem conhecê-las e em relação a esses proferiu com ironia e presença de espírito: “tudo o que sei é que não sou marxista”100.
Marx não pôde seguir de perto o desenvolvimento do movimento proletário europeu, nem continuar com sua obra cientí ca. Se bem houvesse tentado, de todas as maneiras e com todas as forças, se restabelecer para retomar o trabalho e tivesse pedido à lha Eleanor, que foi encontrá-lo no r éveillon, para levar con- sigo alguns livros: “traga-me a Fisiologia, aquela de [ Johannes] Ranke [… e] tam- bém aquele horrível livreto de [Edward] Freeman (1823-1892) ( A história da Eu ropa) [1876], uma vez que substitui, para mim, a tabela cronológica”101, a instabilidade de sua saúde e a apreensão pelo estado físico da lha Jenny – nova- mente agravado após o nascimento da última lha – contribuíram para deixá-lo em condições desesperadas.
Em 6 de janeiro, reportou ao doutor Williamson, que, apenas se levantou, “foi pego, de surpresa, por uma tosse espasmódica que me fez debater-me e lutar contra o sufocamento”. Marx não tinha dúvidas acerca da verdadeira natureza de seu súbito adoecimento. Na tarde anterior, recebera uma carta com notícias ter- ríveis sobre a saúde de sua lha primogênita: “eu estava a par da gravidade de sua doença, mas não estava preparado para o comunicado de que entrara em uma fase crítica”102. Também a Engels confessou que correra “risco de sufocar-me” e que, “no momento, a excitação nervosa” o atingia “até o pescoço”103. À lha Elea- nor conta:
creio que seja consequência de uma crise nervosa, de medo pela pe- quena Jenny! […] Eu teria me precipitado imediatamente para Ar- genteuil, mas, assim, teria apenas imputado à pequena o peso de um hóspede doente! Ninguém, na verdade, pode me garantir que a viagem
100 Esta a rmação encontra-se na carta de 2-3 de novembro de 1882 de Friedrich Engels a Eduard Bernstein, com o qual, referindo-se às escaramuças trocadas entre Marx e Lafargue, lamentou-se com estas palavras: “a isso que na França dá-se o nome de ‘marxismo’ é, na realidade, um produto muito particular” (p. 279). Essas foram repetidas em uma carta de 7 de setembro de 1890, publicada seis dias depois, endereçada à redação do Sozialdemokrat, cf. F. Engels (1963, p. 69) e em outras duas cartas privadas: a Conrad Schmidt, de 5 de agosto de 1890, e a Paul Lafargue, de 27 de agosto de 1890, cf. Marx & Engels (1991, pp. 465 e 478). A frase é trazida à tona de modo errado por Karl Kautsky, que sustenta que Marx a tivesse utilizado nos confrontos com este último, cf. B. Kautsky (1955, p. 90). Foi empregada, por m, pelo tradutor de O Capital para o russo, German Lopatin, em uma carta para Marija Nikolaevna Ošanina, de 20 de setembro de 1883: “recorda-se quando eu di- zia que o próprio Marx nunca foi marxista? Engels contou que, durante a luta de Brousse, Malone e companhia contra os outros, Marx disse uma vez, rindo: “Posso dizer apenas uma coisa: que não sou marxista!” (Enzensberger, 1977, p. 456). A propósito, cf. M. Rubel (1981, pp. 60-61).
Deste modo, mais uma vez, para Marx teve início um período de “longo con namento em casa”105, durante o qual, à “tosse quase perene, […] já bastante cansativa”, foram adicionadas “crises de vômito cotidianas”, que tornaram a si- tuação quase insustentável. Todavia, a perspectiva de uma recuperação não pa- recia completamente extinta. Lamentou-se com Eleanor que seu estado insu- portável o impedia “quase sempre de trabalhar”, mas lhe revelou também que “o médico acredita – ainda acredita e isso é signi cativo! – conseguir me libertar deste tormento […]. Quem viver, verá”106.
Infelizmente, um novo acontecimento dramático pôs m às última espe- ranças de recuperação. Em 11 de janeiro, antes de completar trinta e nove anos, Jenny faleceu de câncer na vesícula. Após a partida da mulher, Marx tinha, assim, de enfrentar também a perda de uma de suas amadíssimas lhas. A notícia caiu, como uma bomba, sobre um homem já gravemente doente e marcado por uma vida de di culdades. A narração destes momentos, realizada sucessivamente por Eleanor, testemunha, de modo dramático, as penosas circunstâncias:
Recebemos uma carta do Mouro […], na qual ele dizia que a saúde de Jenny nalmente melhorava e que nós – Helene [Demuth] e eu – não devíamos nos preocupar. Recebemos o telegrama que anunciava a morte de Jenny apenas uma hora depois dessa carta. Parti imediata- mente para Ventnor. Vi muitos momentos tristes, mas nenhum como aquele. Sentia levar para meu pai sua sentença de morte. Durante as longas horas daquela viagem angustiante, continuei a torturar o meu cérebro, pensando em como lhe comunicar a notícia. Não precisei, porém, dizer nada; minha sionomia me traiu. O Mouro disse subita- mente: “nossa pequena Jenny morreu!” – e ele queria que eu partisse imediatamente para Paris, para ajudar a cuidar das crianças. Queria car com ele, mas não aceitou objeções. Não estava em Ventnor nem há meia hora e já retomava, com o coração triste e confrangido, o ca- minho para Londres, para partir, então, imediatamente para Paris. Pelo bem das crianças, z o que desejava o Mouro107.
Em 13 de janeiro, então, Marx também pôs-se rapidamente a caminho para retornar para casa. Antes de deixar a ilha de Wight, comunicou o motivo de sua partida repentina para o doutor Williamson – “a fatal notícia da morte da minha lha mais velha” –, adicionando à despedida: “encontro um pouco de alívio em uma horrível dor de cabeça. A dor física é o único ‘torpor’ da dor mental”108. Essas foram suas últimas palavras deixadas em papel.
5. Saída de cena
A reconstrução das últimas semanas de vida de Marx foi possível graças aos testemunhos feitos por membros de sua família e, sobretudo, à correspondência de Engels.
Em uma carta deste endereçada a Eduard Bernstein, apreende-se que, após o retorno de Ventnor, Marx esteve “con nado em casa devido a uma bronquite, até o momento afortunadamente leve”109. Em fevereiro, Engels contou, sempre a Bernstein – convertido, naquele período, no dirigente do Partido Socialdemo- crata alemão com quem ele mais assiduamente trocava notícias – que “há três semanas está tão rouco, que consegue falar pouco”110.
Em 16 de janeiro, Engels escreve a Laura Lafargue: “ultimamente, [Marx] passou noites insones muito duras, que lhe privaram do apetite intelectual, tanto que começou a ler catálogos de editoras em vez de romances 111. Nesse ínterim, no dia seguinte, relata à mesma “um bom sinal […:] pôs de lado o catálogo e vol- tou a Frédéric Soulié” (1800-1847), um dos mais populares escritores na França, que havia previsto a revolução de 1848. Todavia, a apreensão continuava altís- sima, “posto que, enquanto precisa curar os problemas mais urgentes, ou seja, os órgãos da respiração, e a cada tanto deve tomar um sonífero, termina por des- cuidar do resto, como, por exemplo, seu estômago”112. Ainda que Marx procu- rasse se alimentar o máximo possível, frequentemente preferia apenas meio litro de leite, bebida que, no passado, não teria apreciado nunca, à qual adicionava rum ou brandy. Para mantê-lo aquecido, eram-lhe preparados escalda-pés de mostarda.
Ao m do mês, Engels atualizou Bernstein mais uma vez: “Marx ainda não está apto para trabalhar, permanece em casa […] e lê romances franceses. Seu caso parece muito complicado”113. Na semana seguinte, Engels escreve a Bebel, explicando-lhe que “a saúde de M[arx] não mostra a melhora que deveria”114. Em 10 de março, por m, Engels comunicou a Laura logo após uma avaliação clínica do doutor Donkin: “visitou o Mouro e cou feliz em dizer que seu veredito estava muito mais favorável do que aquele de duas semanas atrás. Disse que o Mouro não piorou em nada, antes, talvez, melhorado”. Adicionou, porém, que estava “muito fraco, porque (tinha) di culdade de engolir”, e tinham que “obrigá-lo a comer e beber”115.
Os eventos rapidamente desandaram para o pior. O de nhamento do corpo de Marx foi velocíssimo e a isso se somou, por m, um abscesso pulmonar. Engels começou a se preocupar houvesse verdadeiramente chegado o momento nal para o amigo de toda uma existência: “todas as manhãs, nas últimas seis semanas, quando virava a esquina, experimentava um medo mortal de que as persianas estivessem abaixadas”. Este temor tornou-se realidade às 14h45 de 14 de março de 1883.
O relato de Engels mais completo e pleno das palavras mais comoventes sobre o que aconteceu no último dia de vida de Marx foi dirigido a Sorge, o com- panheiro que foi secretário da Associação Internacional dos Trabalhadores, após a transferência do Conselho Geral nos Estados Unidos da América, em 1872. A este relatou:
Cheguei às 14h30, a hora que ele preferia para a visita cotidiana. A casa estava em prantos, diziam que parecia estar perto do m. […] Constatou-se uma pequena hemorragia, seguida de sum súbito co- lapso. Nossa brava e velha Lenchen, que tratou dele como nem mesmo uma mãe cuidaria do próprio lho, dirigiu-se para ao andar de cima e em seguida voltou para baixo. Disse que havia dormido e que eu podia subir. Quando entramos, ele jazia adormecido na cama, mas para nun- ca mais levantar-se. Não havia mais pulso, nem respiração. Em dois minutos expirara, serenamente e sem dor.
Engels compreendeu imediatamente, mesmo no imenso desconforto da perda de seu mais querido amigo, que, diante de suas irreversíveis condições de saúde, a Marx foi reservada uma morte serena. Comentou com Sorge:
Todos os eventos que ocorrem por causas naturais carregam em si a própria consolação, ainda que possam ser terríveis. Foi assim tam- bém nesse caso. Talvez, a competência dos médicos lhe pudesse ter assegurado ainda um ano de existência vegetativa; a vida de um ser impotente, que, devido ao triunfo da medicina, não morre de um só golpe, mas sucumbe pouco a pouco. Todavia, nosso Marx não o teria suportado nunca. Viver com todos aqueles trabalhos incompletos diante de si, ansiando, como Tântalo, por dar-lhes m sem poder fa- zê-lo, teria sido mil vezes mais amargo do que a doce morte que o surpreendeu. “A morte não é uma desgraça para aquele que morre, mas para os que cam”116, costuma dizer, citando Epicuro. E ver este homem genial vegetar como uma ruína pela glória maior da medicina e para o escárnio dos listeus que ele, quando estava com todas as suas forças, tantas vezes criticara… não, mil vezes melhor assim as coisas como ocorreram. Mil vezes melhor que, depois de amanhã, o levare- mos para a tumba onde repousa sua mulher. Depois de tudo o que aconteceu anteriormente, daquilo que nem mesmo os médicos sa- biam mais do que, para mim não poderia ser uma escolha117.
Seja como for. A humanidade agora tem uma mente a menos, a mais importante de que poderia se gabar hoje em dia. O movimento prole- tário prossegue o seu próprio caminho, mas lhe veio a faltar seu ponto central, aquele para o qual, automaticamente, voltavam-se franceses, russos, americanos e alemães nos momentos decisivos, a m de re- ceber aquele conselho claro e irrefutável que somente o gênio e o completo conhecimento de causa poderiam lhes oferecer. Os reacio- nários locais, os pequenos luminares e, talvez, também os impostores acharão que têm as mãos livres. A vitória nal está assegurada, mas os caminhos tortuosos, as derrotas temporárias e locais – já antes ine- vitáveis – aumentarão mais do que nunca118. Bem, teremos que dar início a ela. Caso contrário, que estamos fazendo? E, de qualquer for- ma, estamos muito longe de perder nossa coragem119.
Foi precisamente o que aconteceu. Tantos outros, após a morte de Marx, levantaram suas bandeiras. Da América Latina ao Extremo Oriente, nas sedes sindicais mais pobres da periferia ou nas aulas magnas das universidades mais prestigiadas, dezenas e dezenas de milhões de trabalhadoras e trabalhadores e de jovens estudantes leram seus escritos. Trazem a consciência de sua condição de oprimidos e formularam, com o tempo, inspirações para promover novas re- voltas, organizando greves movimentos sociais e partidos políticos. Lutaram pelo pão e pelas rosas, contra a injustiça e pela liberdade e, assim fazendo, deram plena execução às teorias de Marx.
No curso deste longo processo – durante o qual, Marx foi estudado a fundo, transformado em ícone, embalsamado em manuais de regime, mal interpretado, censurado, declarado morto e, de tempos em tempos, redescoberto –, alguns dis- torceram suas ideias com doutrinas e práticas que, em vida, ele teria combatido irredutivelmente. Outros, por seu turno, enriqueceram-no, atualizaram-no e co- locaram em evidência problemas e contradições, com espírito crítico similar ao que ele sempre empregou, e que ele teria apreciado.
Aqueles que hoje voltam a folhear as páginas de seus textos, ou os que se empenham em sua leitura pela primeira vez, não podem car menos do que fas- cinados por sua capacidade explicativa da análise econômica-social de Marx e cativados pela mensagem que transpira, incessantemente, de toda a sua obra: organizar a luta para pôr m ao modo de produção burguês e pela completa emancipação das trabalhadoras e dos trabalhadores, de todo o mundo, do domí- nio do capital.
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