A esquerda face à guerra

As causas económicas da guerra
Enquanto que a ciência da política analisou motivações ideológicas, políticas, económicas e até psicológicas para explicar as causas dos conflitos bélicos, o pensamento socialista deu a sua mais interessante contribuição para a compreensão deste fenómeno evidenciando a forte ligação entre o desenvolvimento do capitalismo e a propagação da guerra.

Nos debates da Primeira Internacional (1864-1872), César de Paepe, um dos seus principais dirigentes, formulou aquela que se tornaria a posição clássica do movimento operário sobre este tema, nomeadamente que as guerras são inevitáveis no sistema de produção capitalista. Nas sociedades contemporâneas, não são provocadas pelas ambições do monarca ou de indivíduos singulares, mas são determinadas pelo modelo sócio-económico dominante. O movimento socialista mostrou também qual era a parte da população sob a qual se abatiam, inelutavelmente, as consequências mais nefastas da guerra. No congresso da Internacional em 1868, os delegados votaram uma moção que instava os trabalhadores a lutar pela “abolição definitiva de todas as guerras”, uma vez que seriam eles a pagar – economicamente ou com o seu sangue, quer estivessem entre os vencedores ou entre os vencidos – pelas decisões da sua classe dominante e dos governos que a representam.

A lição de civilidade do movimento operário nascia da convicção de que todas as guerras deveriam ser consideradas “guerras civis”, um embate feroz entre trabalhadores que, no final de contas, não tinha outro resultado que não privá-los dos meios necessários à sua sobrevivência. Era necessário agir com determinação contra qualquer guerra, resistindo ao alistamento e recorrendo à greve. O internacionalismo torna-se assim um dos pontos cardinais da futura sociedade que, com o fim do capitalismo e da rivalidade entre estados burgueses no mercado mundial, eliminaria a principal causa subjacente a qualquer guerra.

Entre os precursores do socialismo, Claude Henri de Saint Simon tinha tomado uma posição vincada não apenas contra a guerra mas também contra o conflito social, considerando ambos como obstáculos ao progresso fundamental da produção industrial. Karl Marx não desenvolveu as suas conceções em nenhum dos seus escritos sobre a guerra – fragmentários e por vezes contraditórios – nem formulou diretrizes sobre a atitude correta para a enfrentar. Quando escolheu entre campos opostos, a sua única constante foi a oposição à Rússia Tsarista que via como o posto avançado da contra-revolução e uma das principais barreiras à emancipação da classe trabalhadora. No Capital (1867) defendeu que a violência era uma força económica, “a parteira de qualquer sociedade velha grávida de uma nova”. Mas não concebia a guerra como um atalho necessário para a transformação da sociedade e dedicou uma parte importante da sua militância política a tentar vincular a classe operária ao princípio da solidariedade internacional. Como também argumentava Friedrich Engels, esta deveria agir de forma determinada nos seus países contra o risco de mitigação da luta de classes que a invenção propagandística de um inimigo externo gerava em cada momento em que irrompia uma guerra. Em várias cartas trocadas com dirigentes do movimento operário, Engels sublinha a força ideológica da cilada do patriotismo e do atraso da revolução proletária que resulta das ondas de chauvinismo. Para além disso, no Anti-Dühring (1878), no seguimento de uma análise dos efeitos do desenvolvimento de armamento cada vez mais letal, declarou que a tarefa do socialismo era “rebentar com o militarismo e todos os exércitos permanentes”.

O tema da guerra era tão importante para Engels que lhe dedicou um dos seus últimos escritos. Em “Pode a Europa desarmar-se” (1893) assinalou que, no velho continente, nos 25 anos anteriores, cada uma das maiores potências tinha tentado suplantar os seus rivais militarmente e em termos de preparativos para a guerra. Isto tinha gerado uma produção de armamentos sem precedentes que aproximava a Europa de “uma guerra de destruição como o mundo nunca tinha conhecido”. Segundo o co-autor do Manifesto do Partido Comunista (1848), “em toda a Europa, o sistema dos exércitos permanentes foi levado a um ponto tão extremo que está condenado a arruinar economicamente os povos, por via das despesas militares, ou a degenerar numa guerra de extermínio”. Na sua análise, Engels não se esquecia de destacar que os exércitos permanentes eram mantidos não apenas por motivos militares mas também com finalidades políticas internas. Era suposto “protegerem não tanto do inimigo externo quanto do inimigo interno”, fortalecendo as forças que deveriam reprimir o proletariado e as lutas operárias. Como eram as classes populares que mais pagavam os custos da guerra, através dos impostos e da massa de soldados que forneciam ao Estado, o movimento operário deveria bater-se por uma “redução homogénea e progressiva do serviço militar” e pelo desarmamento, considerado como a única, efetiva, “garantia da paz”.

A falha face à prova dos factos
Bem cedo, de argumento teórico analisado em tempo de paz, a luta contra o militarismo passa a tornar-se um problema político premente. O movimento operário teve de se confrontar com situações reais nas quais os seus representantes se opuseram inicialmente a qualquer apoio à guerra. No conflito Franco-Prussiano de 1870 (que precedeu a Comuna de Paris), os deputados Social Democratas Wilhelm Liebknecht e August Bebel condenaram os objetivos anexacionistas da Alemanha de Bismarck e votaram contra os créditos de guerra. A sua decisão de “rejeitar a lei que atribuía fundos adicionais para continuar a guerra” valeu a cada um deles uma pena de prisão de dois anos por alta traição mas ajudou a mostrar à classe operária uma via alternativa ao aumento do vórtice do conflito.

Com a expansão imperialista por parte das principais potências europeias, a controvérsia sobre a guerra assume um peso mais relevante no debate da Segunda Internacional (1889-1916). No seu congresso de fundação foi aprovada uma moção que apresentava a paz como “a pré-condição indispensável a qualquer emancipação dos trabalhadores”. Troçava-se da suposta paz política da burguesia que era caracterizada como “paz armada” e, em 1895, Jean Jaurès, o líder do Partido Socialista Francês (SFIO), pronunciou um discurso no parlamento no qual famosamente resumiu as apreensões da esquerda: “a vossa sociedade violenta e caótica mesmo quando quer paz, mesmo quando num estado de aparente repouso, carrega em si a guerra como a nuvem carrega a tempestade”.

À medida que a Weltpolitik – a política agressiva da Alemanha Imperial para aumentar o seu poder na arena internacional – mudava o quadro geopolítico, os princípios anti-militaristas consolidaram-se no movimento operário e influenciaram a discussão sobre os conflitos armados. A guerra deixava de ser apenas uma ocasião propícia para o desenvolvimento de oportunidades revolucionárias que acelerariam a derrocada do sistema (uma tese presente na Esquerda desde os tempos da “revolução sem revolução” de Maximilien Robespierre). Era agora vista como um perigo por causa das suas consequências nefastas para o proletariado na forma de fome, miséria e desemprego. Era uma ameaça grave para as forças progressistas e, como escreveu Karl Kautsky em A Revolução Social (1902), em caso de guerra estas “seriam fortemente sobrecarregadas com tarefas adicionais” que as afastariam e não aproximariam da vitória final.

A resolução Sobre o militarismo e os Conflitos Internacionais, adotada pela Segunda Internacional no Congresso de Estugarda em 1907, recapitulava todos os pontos chave que se tinham tornado na herança comum do movimento dos trabalhadores. Entre estas teses estavam: o voto contra os orçamentos que aumentassem despesas militares, antipatia face a exércitos permanentes e preferência por um sistema de milícias populares e apoio ao plano para criar tribunais de arbitragem para resolução pacífica de conflitos internacionais. Excluiu-se o recurso a greves gerais contra todo o tipo de guerras que tinha sido proposto por Gustave Hervé, uma vez que a maioria dos presentes considerou isto demasiado radical e maniqueísta. A resolução terminava com uma emenda esboçada por Rosa Luxemburgo, Vladimir Lenine e Yulii Martov que afirmava que “caso irrompa uma guerra […] é dever [dos socialistas] intervir a favor de um fim rápido e fazer tudo o que esteja ao seu alcance para usar a crise económica e política causada pela guerra para agitar a as massas e assim acelerar a queda do domínio da classe capitalista”. Como isto não obrigava o Partido Social Democrata da Alemanha (SPD) a fazer qualquer alteração da sua linha política, os seus representantes votaram também a favor desta parte. O texto, assim emendado, foi o último documento sobre a guerra a garantir um apoio unânime na Segunda Internacional.

Uma competição mais intensa entre os estados capitalistas no mercado mundial junto com o surgimento de vários conflitos internacionais tornaram o quadro geral ainda mais alarmante. A publicação do Novo Exército (1911) de Jaurès encorajou a discussão de outro tema central para este período: a distinção entre guerras ofensivas e defensivas e a atitude a ser tomada face às últimas, incluindo nos casos em que a independência de um país estava ameaçada. Para Jaurès, a única tarefa do exército deveria ser defender a nação contra qualquer agressão ofensiva ou qualquer agressor que não aceitasse a resolução das disputas através de mediação. Qualquer ação militar nesta categoria deveria ser considerada legítima. A crítica clarividente de Luxemburgo sobre esta posição assinalava que “fenómenos históricos como as guerras modernas não podem ser medidos com a bitola da ‘justiça’, ou através de um esquema em papel de defesa e agressão”. Do seu ponto de vista, era necessário ter em mente a dificuldade em estabelecer se uma guerra seria realmente ofensiva ou defensiva ou se o Estado que a tivesse desencadeado o tivesse feito deliberadamente para atacar ou tivesse sido forçado a fazê-lo devido aos estratagemas adotados pelo país que se lhe opunha. Pensava assim que a distinção não deveria ser utilizada e criticava ainda e ideia de Jaurès de “nação armada” na base da qual, em última análise, se tendia a alimentar a crescente militarização da sociedade.

À medida em que os anos iam passando, a Segunda Internacional empenhava-se cada vez menos numa política de ação a favor da paz. A sua oposição ao rearmamento e aos preparativos para a guerra era bastante desbotada e uma ala cada vez mais moderada e legalista do SPD trocava o seu apoio aos créditos militares – e até para a expansão colonial – em benefício de ganhar mais liberdades políticas na Alemanha. Líderes importantes e teóricos eminentes como Gustav Noske, Henry Hyndman e Antonio Labriola, foram dos primeiros a chegar a estas posições. Subsequentemente, a maioria dos líderes dos Social Democratas alemães, dos Socialistas franceses, dos Trabalhistas britânicos e de outros reformistas europeus acabou por apoiar a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Este rumo teve consequências desastrosas. Com o argumento de que os “benefícios do progresso” não deveriam ser monopolizados pelos capitalistas, o movimento dos trabalhadores acabou por partilhar os objetivos expansionistas das classes dominantes e caiu no pântano da ideologia nacionalista. A Segunda Internacional mostrou-se completamente impotente face à guerra, falhando num dos seus objetivos principais: a preservação da paz.

Lenine e os outros delegados da Conferência de Zimmerwald (1915) – incluindo Lev Trotsky que esboçou o manifesto final – previam que “durante décadas os gastos militares irão absorver as melhores energias dos povos, minando as melhorias sociais e impedindo qualquer progresso”. A seus olhos, a guerra revelava “a forma nua do capitalismo moderno que se tornou irreconciliável não apenas com os interesses das massas trabalhadoras […] mas até com as condições primeiras da existência humana comum.”

O aviso foi ouvido apenas por uma minoria do movimento dos trabalhadores, assim como o apelo a todos os trabalhadores europeus na Conferência de Kienthal (1916): “os vossos governos e jornais dizem-vos que a guerra deve continuar para matar o militarismo. Enganam-vos! A guerra nunca foi morta com guerra. Na verdade alimenta sentimentos e desejos de vingança. Desta maneira, marcando-vos para o sacrifício, encerram-vos num círculo infernal”. Rompendo finalmente com a abordagem do Congresso de Estugarda, que tinha apelado a tribunais internacionais de arbitragem, o documento final de Kienthal declarava que “as ilusões do pacifismo burguês” não interromperiam a espiral da guerra mas ajudariam a preservar o sistema sócio-económico existente. A única forma de prevenir futuros conflitos militares seria que as massas populares conquistassem o poder político e derrubassem a propriedade capitalista.

Rosa Luxemburgo e Vladimir Lenine contavam-se entre os mais vigorosos opositores à guerra. Luxemburgo aprofundou a compreensão teórica da esquerda e mostrou como o militarismo era a vértebra central do Estado. Demonstrando uma convicção e eficácia que poucos outros líderes comunistas igualavam, argumentava que o slogan “guerra à guerra” deveria tornar-se “a pedra de toque da política da classe trabalhadora”. Como escreveu em A Crise da Social Democracia (1916), também conhecida como O panfleto Junius, a Segunda Internacional tinha implodido porque tinha falhado em “chegar a uma tática e ação comum do proletariado em todos os países”. Daí para diante, o “objetivo central” do proletariado deveria ser assim “lutar contra o imperialismo e prevenir guerras, tanto em tempo de paz como no de guerra”.

Em Socialismo e a Guerra (1915) e em muitos outros escritos durante a Primeira Guerra Mundial, o grande mérito de Lenine foi identificar duas questões fundamentais. A primeira dizia respeito à “falsificação histórica” da burguesia que tentava atribuir um “sentido progressista de libertação nacional” ao que eram na realidade guerras para “pilhar”, travadas com o objetivo único de decidir que beligerantes iriam desta feita oprimir mais povos estrangeiros e aumentar as desigualdades do capitalismo. A segunda era o mascarar das contradições dos social-reformistas – ou “social-chauvinistas” como ele lhes chamava – que em última instância apoiavam as justificações para a guerra apesar de a terem definido como uma atividade “criminosa” nas resoluções adotadas pela Segunda Internacionais. Por detrás da alegação de “defender a pátria” estava o direito que algumas grandes potências se tinham atribuído a si próprias a “pilhar as colónias e oprimir povos estrangeiros”. A guerra não estava a ser travada para salvaguardar a “existência das nações” mas “para defender os privilégios, a dominação, o saque e a violência” de várias “burguesias imperialistas”. Os socialistas que tinham capitulado ao patriotismo tinham substituído a luta de classes por uma reivindicação de “parcelas dos lucros obtidos pelas suas burguesias nacionais através do saque de outros países”. Consequentemente, Lenine era a favor de “guerras defensivas” – não, entenda-se, da defesa nacional dos países europeus à moda de Jaurès, mas das “guerras justas” dos povos “oprimidos e subjugados” que tinham sido “saqueados e privados dos seus direitos” pelas “grandes potências esclavagistas”. A tese mais conhecida deste panfleto – de que os revolucionários deveriam procurar “transformar a guerra imperialista em guerra civil” – implicava que quem queria “uma paz duradoura” deveria travar uma “guerra civil contra os seus governos e burguesia”. Lenine estava convencido de algo que a história mostraria mais tarde ser impreciso: de que qualquer luta de classes consistentemente travada em tempos de guerra levaria “inevitavelmente” a criar um espírito revolucionário entre as massas.

Linhas de demarcação
A Primeira Guerra Mundial produziu divisões não apenas na Segunda Internacional mas também no movimento anarquista. Num artigo publicado pouco depois do desencadear do conflito, Kropotkin escreveu que “a tarefa de qualquer pessoa a quem seja cara a ideia do progresso humano é esmagar a invasão alemã doa Europa Ocidental”. Esta afirmação, vista por muitos como uma desistência dos princípios pelos quais tinha lutado durante toda a sua vida, era uma tentativa de ir além do slogan “greve geral contra a guerra” – que tinha deixado de ser escutado pelas massas trabalhadoras – e de evitar a regressão geral da política europeia que resultaria de uma vitória alemã. Do ponto de vista de Kropotkin, se os anti-militaristas permanecessem inertes iriam ajudar indiretamente os planos de conquista dos invasores e o obstáculo daí resultante seria mais difícil de ultrapassar para quem lutava pela revolução social.

Numa resposta a Kropotkin, o anarquista italiano Enrico Malatesta defendia que, apesar de não ser pacifista e considerar ser legítimo pegar em armas numa guerra de libertação, a guerra mundial não era – como a propaganda burguesa apresentava – uma luta “pelo bem geral contra o inimigo comum” da democracia mas mais um exemplo da subjugação das massas trabalhadoras pela classe dominante. Ele estava consciente de que “uma vitória alemã seria certamente um triunfo do militarismo mas um triunfo dos aliados também significaria um domínio russo-britânico da Europa e Ásia.

No Manifesto de 16 (1916), Kropotkin defendia a necessidade de resistir a um agressor que representa a destruição de todas as esperanças de libertação. A vitória da Tripla Entente contra a Alemanha seria o mal menor e faria menos para minar as liberdades existentes. Por outro lado, Malatesta e os co-signatários do manifesto anti-guerra da Internacional Anarquista (1915) declaravam: “não há nenhuma distinção possível entre guerras ofensivas e defensivas”. Para além disso, acrescentavam que “nenhum dos beligerantes tem qualquer direito para reivindicar a civilização, tal como nenhum deles tem razão em reclamar o direito legítimo à auto-defesa”. A Primeira Guerra Mundial, insistiam, era mais um episódio de um conflito entre capitalistas de várias potências imperialistas que estava a ser travada às custas da classe trabalhadora.

Malatesta, Emma Goldman, Ferdinand Nieuwenhuis e a grande maioria do movimento anarquista estavam convencidos de que seria um erro imperdoável apoiar governos burgueses. Em vez disso, sem mas nem meios mas, mantiveram o slogan “nenhum homem e nem um centavo para o exército” rejeitando firmemente qualquer apoio indireto ao prossecução da guerra.

As atitudes face à guerra também suscitaram debate no movimento feminista. A necessidade das mulheres de substituir os homens que tinham sido alistados nos empregos que já tinham há muito deixado de ser monopólio masculino – para muitas com salário menor e em condições de sobre-exploração – encorajou a disseminação da ideologia chauvinista numa parte considerável do recém-nascido movimento sufragista. Algumas das suas líderes foram ao ponto de fazer abaixo-assinados pelo alistamento de mulheres nas forças armadas. A exposição da duplicidade dos governos – que, evocando que o inimigo está às nossas portas, usavam a guerra para fazer recuar reformas sociais fundamentais – foi um dos mais importantes feitos das mulheres que eram líderes comunistas então. Clara Zetkin, Alexandra Kollontai, Sylvia Pankhurst e, claro, Rosa Luxemburgo estavam entre as primeiras a enveredar lúcida e corajosamente pelo caminho que mostraria a sucessivas gerações como a luta contra o militarismo era essencial à luta contra o patriarcado. Depois, a rejeição da guerra tornou-se parte distintiva do Dia Internacional das Mulheres e a oposição aos orçamentos de guerra no deflagrar de qualquer novo conflito era parte proeminente de muitas das plataformas do movimento feminista internacional.

O fim não justifica os meios e os meios errados prejudicam o fim
A divisão profunda entre revolucionários e reformistas, que aumentou depois do nascimento da União Soviética e do crescimento do dogmatismo ideológico nos anos 1920 e 1930, impedia qualquer aliança contra o militarismo entre a Internacional Comunista (1919-1943) e os partidos socialistas e social-democratas europeus. Tendo apoiado a guerra, os partidos que faziam parte da Internacional Socialista e Trabalhista (1923-1940) tinham perdido todo o crédito aos olhos dos comunistas. A ideia leninista de “transformar a guerra imperialista em guerra civil” ainda era apreciada em Moscovo, onde os dirigentes políticos e teóricos pensavam que um “novo 1914” seria inevitável. Assim, de ambos os lados, o discurso era mais dedicado ao que fazer se uma nova guerra começasse do que o que fazer para prevenir uma guerra de começar. Os slogans e declarações de princípio diferiam substancialmente do que era esperado que acontecesse e do que se transformava em ação política. Entre as vozes críticas no campo comunista estava a de Nikolai Bukharin, defensor do slogan “luta pela paz” e um dos mais convictos de que esta era “uma das questões chave do mundo contemporâneo”; e a de Georgi Dimitrov que defendia que nem todas as grandes potências eram responsáveis na mesma medida pela ameaça da guerra e que favorecia uma aproximação aos partidos socialistas para construir uma ampla frente popular contra esta. Mas estas visões contrastavam com a litania da ortodoxia soviética que, longe de atualizar a análise teórica, repetia que o perigo da guerra estava inscrito, sem quaisquer distinções, em todos os poderes imperialistas.

Os pontos de vista de Mao Zedong sobre este tema eram bastante diferente. À cabeça do movimento de libertação contra a invasão japonesa escreveu, em Sobre a Guerra Prolongada (1938), que as “guerras justas” nas quais os comunistas deveriam participar ativamente são dotadas de um poder tremendo que pode transformar muitas coisas ou abrir caminho para a sua transformação”. A estratégia proposta por Mao era, assim, “opor à guerra injusta a guerra justa” e além disso “continuar a guerra até que o seu objetivo político seja alcançado”. Os argumentos para a “omnipotência da guerra revolucionária” voltam a ser apresentados em Problemas da Guerra e Estratégia (1938), onde argumenta que “apenas com as armas pode o mundo inteiro ser transformado” e que a “tomada do poder pela via armada, a resolução da questão através da guerra, é a questão central e a forma mais elevada de revolução”.

Na Europa, o escalar da violência na frente nazi-fascista, internamente mas também no estrangeiro, e o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) criaram um cenário ainda mais nefasto do que a guerra de 1914-18. Depois das tropas de Hitler terem atacado a União Soviética em 1941, a Grande Guerra Patriótica que culminou com a derrota do nazismo tornou-se num elemento tão central da unidade nacional russa que sobreviveu à queda do muro de Berlim e permaneceu até aos nossos dias.

Com a divisão do mundo em dois blocos no pós-guerra, Estaline ensinava que a tarefa principal do movimento comunista internacional era a salvaguarda da União Soviética. A criação de uma zona tampão de oito países na Europa de Leste (sete depois da saída da Jugoslávia) era um pilar central da sua política. No mesmo período, a doutrina Truman marcava o advento de um novo tipo de guerra: a Guerra Fria. Do seu apoio às forças anti-comunistas na Grécia, ao Plano Marshall (1948) e à criação da NATO (1949), os Estados Unidos da América contribuíram para evitar o avanço das forças progressistas na Europa Ocidental. A União Soviética respondeu com o Pacto de Varsóvia (1955). Esta configuração conduziu a uma enorme corrida ao armamento que, apesar da memória fresca de Hiroshima e Nagasaki, também envolveu a proliferação dos testes de armas nucleares.

A partir de 1961, sob a liderança de Nikita Khrushchev, a União Soviética enveredou por um novo rumo político que ficou conhecido como a “coexistência pacífica”. Desta feita, com o ênfase na não interferência e no respeito da soberania nacional, bem como da cooperação económica com os países capitalistas, era suposto evitar-se o perigo de uma terceira guerra mundial (que a crise dos mísseis cubanos mostrou, em 1962, ser uma possibilidade) e apoiar o argumento de que a guerra não era inevitável. Contudo, esta tentativa de cooperação construtiva estava orientada apenas para os EUA, não para os países do “socialismo realmente existente”. Em 1956, a União Soviética tinha já esmagado a revolta na Hungria e os Partidos Comunistas da Europa Ocidental não tinham condenado, pelo contrário tinham até justificado, a intervenção militar em nome do bloco socialista. Palmiro Togliatti, o secretário do Partido Comunista Italiano, por exemplo declarou: “ficamos do nosso lado mesmo quando este comete erros”. A maior parte daqueles que partilhavam esta posição lamentaram-na amargamente nos anos posteriores quando perceberam os efeitos devastadores da operação soviética. Acontecimentos semelhantes ocorreram no auge da coexistência pacífica, em 1968, na Checoslováquia.

Confrontado com exigências de democratização e de descentralização económica durante a Primavera de Praga, o Politburo do Partido Comunista da União Soviética decidiu unanimemente enviar meio milhão de soldados e milhares de tanques. No congresso do Partido Operário Unificado polaco, em 1968, Leonid Brezhnev explicou a ação indicando aquilo que chamou a “soberania limitada” dos países do Pacto de Varsóvia: “quando forças que são hostis ao socialismo tentam virar o caminho de alguns países socialistas para o capitalismo, torna-se não apenas um problema do país em questão mas um problema comum e a preocupação de todos os países socialistas”.

De acordo com esta lógica anti-democrática, a definição do que era ou não “socialismo” recaía naturalmente na decisão arbitrária dos líderes soviéticos. Mas desta vez as críticas à esquerda foram mais diretas e até representaram a maioria. Apesar da reprovação da ação soviética ter sido exprimida não apenas pelos movimentos da Nova Esquerda mas por uma maioria dos partidos comunistas, incluindo o chinês, os russos não retiraram mas empreenderam um processo a que chamaram “normalização”. A União Soviética continuou a canalizar uma parte considerável dos seus recursos económicos para gastos militares e isto ajudou a reforçar a cultura autoritária na sociedade. Desta forma, perdeu de vez a boa vontade do movimento pela paz que se tinha tornado ainda maior devido às mobilizações extraordinárias contra a guerra no Vietname.

Uma das mais importantes guerras da próxima década começou com a invasão soviética do Afeganistão. Em 1979, o Exército Vermelho tornou-se mais uma vez um instrumento decisivo da política externa de Moscovo, que continuava a reclamar o direito de intervir naquilo que descrevia como a sua “zona de segurança”. A malfadada decisão transformou-se numa aventura esgotante que se prolongou por mais de dez anos, causando um grande número de mortes e criando milhões de refugiados. Nesta ocasião, o movimento comunista internacional foi muito menos reticente do que tinha sido em relação às invasões soviéticas da Hungria e da Checoslováquia. Contudo, esta nova guerra revelava ainda mais claramente à opinião pública internacional o fosso entre o “socialismo realmente existente” e uma política alternativa baseada na paz e na oposição ao militarismo.

Tomadas no seu conjunto, estas intervenções militares não apenas foram no sentido contrário à redução geral de armamento mas serviram para desacreditar e enfraquecer globalmente o socialismo. A União Soviética foi sendo cada vez mais vista como um poder imperial que agia de formas não muito diferentes daquelas dos Estados Unidos, que, desde o início da Guerra Fria, tinha, de forma mais ou menos secreta, apoiado secretamente golpes de Estado e ajudado a derrubar governos democraticamente eleitos em mais de vinte países em todo o mundo. Por último, as “guerras socialistas”, em 1977-1979, entre Camboja e Vietname e China e Vietname, com o pano de fundo do conflito sino-soviético, dissiparam a vantagem que a ideologia “marxista-leninista” (já distante dos fundamentos originais lançados por Marx e Engels) tinha ao atribuir a guerra exclusivamente aos desequilíbrios económicos do capitalismo.

Ser de esquerda é ser contra a guerra
O fim da Guerra Fria não diminuiu a quantidade de interferência nos assuntos de outros países nem aumentou o espaço de liberdade para que os povos escolham o regime político sob o qual vivem. As inúmeras guerras – mesmo sem mandato das Nações Unidas e definidas, absurdamente, como “humanitárias” – desencadeadas pelos EUA nos últimos 25 anos, às quais devem ser somadas novas formas de conflito, sanções ilegais, condicionamento político, económico e mediático, demonstram que a divisão bipolar do mundo entre duas super-potências não foi substituída pela era de liberdade e progresso prometida pelo mantra neoliberal da “Nova Ordem Mundial”.

Neste contexto, muitas forças políticas que antes reivindicavam valores de esquerda aderiram a várias guerras. Do Kosovo, ao Iraque e ao Afeganistão – para mencionar apenas as principais guerras travadas pela Nato desde a queda do Muro de Berlim – estas forças deram o seu apoio às intervenções armadas e tornaram-se cada vez menos diferenciáveis da direita.

A guerra entre a Rússia e a Ucrânia fez a esquerda enfrentar outra vez o dilema de como reagir quando a soberania de um país está sob ataque. Não condenar a invasão russa da Ucrânia é um erro político da parte do governo da Venezuela e faz com que denúncias de possíveis futuros atos de agressão cometidos pelos Estados Unidos surjam como menos credíveis. É verdade que, como Marx escreveu a Ferdinand Lassalle em 1860, “na política externa, há pouco a ser ganho no uso de palavras de ordem como “reacionário” e “revolucionário” – e de que o que “é subjetivamente reacionário [pode vir a provar-se] objetivamente revolucionário na política externa”. Mas as forças de esquerda deveriam ter aprendido do século XX que as alianças com o “inimigo do meu inimigo” conduzem frequentemente a acordos contra-produtivos, especialmente quando como, tal como acontece na nossa época, a frente progressista é politicamente fraca e teoricamente confusa e lhe falta o apoio de mobilizações de massas.

Lembrando as palavras de Lenine em A Revolução Socialista e o Direito das Nações à Auto-determinação: “o facto de que a luta de libertação nacional contra um poder imperialista possa, sob certas circunstâncias, ser utilizada por outra “Grande” potência com os seus interesses igualmente imperialistas não deveria pesar na indução da Social Democracia para renunciar ao seu reconhecimento do direito das nações à autodeterminação”. Para além dos interesses geopolíticos e das intrigas que estão habitualmente em jogo, as forças da esquerda apoiaram historicamente o princípio da auto-determinação nacional e defenderam o direito dos estados individuais de estabelecerem as suas fronteiras com base na vontade expressa da população. A esquerda lutou contra guerras e “anexações” porque estava consciente que estas levavam a conflitos dramáticos entre os trabalhadores das nações dominante e dominada, criando as condições para os últimos se unirem com a sua burguesia e passarem a considerar os primeiros como seus inimigos. Em Resultados da Discussão sobre Auto-determinação (1916), Lenine escreveu: “se a revolução socialista fosse vitoriosa em Petrogrado, Berlim e Varsóvia, o governo socialista polaco, tal como os governos socialistas russo e alemão renunciariam à retenção pela força, digamos, dos ucranianos nas fronteiras do estado polaco”. Porquê sugerir, então, que algo diferente deve ser concedido ao governo nacionalista liderado por Vladimir Putin?

Po outro lado, muitos na esquerda cederam à tentação de se tornar – direta ou indiretamente – co-beligerantes, alimentando uma nova union sacrée (expressão cunhada em 1914, apenas para saudar a abjuração das forças da esquerda francesa que, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, decidiram apoiar as escolhas bélicas do governo). Tal posição atualmente serve cada vez mais para desvanecer a distinção entre atlanticismo e pacifismo. A história mostra que, quando não se opõem à guerra, as forças progressistas perdem uma parte essencial da sua razão de existir e acabam por engolir a ideologia do campo oposto. Isto acontece quando partidos de Esquerda fazem da sua presença no governo forma fundamental de medir a sua ação política – como os Comunistas Italianos fizeram ao apoiar as intervenções da Nato no Kosovo e no Afeganistão ou a maioria atual do Unidas Podemos, que juntou a sua voz ao coro unânime de todo o arco parlamentar espanhol a favor do envio de armas para o exército ucraniano. Uma conduta subalterna que no passado já foi muitas vezes punida, incluindo nas eleições quando a ocasião se propiciar.

Bonaparte não é democracia
Em 1853-1856, Marx escreveu uma série de artigos brilhantes para o New-York Daily Tribune que continham muitos paralelos interessantes e úteis com a atualidade. Em 1853, falando do grande monarca moscovita do século XV – aquele considerado como o unificador da Rússia e que abriu caminho para a sua autocracia – Marx afirmou: “apenas temos de substituir uma série de nomes e datas por outros e torna-se claro que as políticas de Ivan III (…) e as da Rússia de hoje não são apenas semelhantes, mas idênticas”. No ano a seguir, contudo, em oposição aos democratas liberais que exaltavam a coligação anti-russa, escreveu: “é um erro descrever a guerra contra a Rússia como uma guerra entre a liberdade e o despotismo. Para além do facto de que, se tal fosse o caso, a liberdade seria por um momento representada por um Bonaparte, todo o objetivo declarado da guerra é a manutenção dos tratados de Viena – esses mesmos tratados que anulam a liberdade e a independência das nações”. Se substituirmos Bonaparte pelos Estados Unidos da América e os tratados de Viena pela Nato, essas observações parecem escritas para hoje.

O pensamento daqueles que se opõem tanto ao nacionalismo russo quanto ao ucraniano, tal como à expansão da Nato, não mostra indecisão política ou ambiguidade teórica. Nas últimas semanas, vários peritos têm avançado com explicações para as raízes do conflito (que de forma alguma servem para reduzir a barbárie da invasão russa) e a posição de quem propõe uma política de não-alinhamento é maneira mais eficaz de acabar com a guerra tão cedo quanto possível e assegurar o número de vítimas mais baixo possível. Não é uma questão de agir como “belas almas” encharcadas de idealismo abstrato, as quais Hegel achava incapazes de abordar a realidade real das contradições terrenas. Pelo contrário: a ideia é dar realidade ao único antídoto verdadeiro para uma expansão ilimitada da guerra. Não há fim para as vozes que pedem mais recrutamentos ou para aquelas que, como o Alto Representante da União Europeia para Relações Exteriores e Política de Segurança, pensam que é tarefa da Europa fornecer aos ucranianos “as armas necessárias para a guerra”. Mas, em contraste com essas posições, é necessário buscar uma atividade diplomática incessante com base em dois pontos firmes: a desescalada e a neutralidade da Ucrânia independente.

Apesar do aumento do apoio à Nato após as jogadas russas, é necessário trabalhar mais afincadamente para garantir que a opinião pública não veja a maior e mais agressiva máquina de guerra do mundo – a Nato – como a solução para os problemas de segurança global. Deve-se mostrar que é uma organização perigosa e ineficaz, que, no seu impulso de expansão e dominação unipolar, serve para alimentar as tensões que levam à guerra no mundo.

Em O Socialismo e a Guerra, Lenine argumentava que os marxistas divergem dos pacifistas e dos anarquistas porque “consideram historicamente necessário (do ponto de vista do materialismo dialético de Marx) estudar cada guerra em separado”. Na continuação disto alegava que “na história houve muitas guerras que, apesar de todos os horrores, atrocidades, angústia e sofrimento que inevitavelmente acompanham todas as guerras, foram progressistas, i.e., beneficiaram o desenvolvimento da humanidade”, se isto terá sido verdade no passado, seria limitado repeti-lo simplesmente nas sociedades contemporâneas nas quais as armas de destruição massiva se espalham continuamente. Raramente as guerras – que não devem ser confundidas com as revoluções – tiveram o efeito democratizante que alguns teóricos do socialismo esperaram. Efetivamente, provaram ser muitas vezes a pior forma de tentar fazer uma revolução, tanto por causa do custo em vidas humanas quanto por causa da destruição das forças produtivas que implicam. É uma lição que também a esquerda moderada nunca deveria esquecer.

Para a esquerda, a guerra não pode ser “a continuação da política por outros meios”, para citar a famosa frase de Clausewitz. Na verdade, apenas certifica o falhanço da política. Se a esquerda quiser ser hegemónica e mostrar-se capaz de usar a história para as tarefas contemporâneas precisa inscrever indelevelmente nas suas faixas as palavras de ordem: “antimilitarismo” e “Não à guerra!”

 

Traduzido por Carlos Carujo