Marcello Musto – Professor Hobsbawm, Karl Marx voltou ao foco das atenções duas décadas depois de 1989, quando foi apressadamente relegado ao esquecimento. Livre do papel de intrumentum regni que lhe foi atribuído na União Soviética e das amarras do “marxismo-leninismo”, não só tem recebido atenção intelectual pela nova publicação de sua obra, como também tem sido objeto de crescente interesse.
Em 2003, a revista francesa Nouvel Observateur dedicou um número especial a Marx, com um título provocador: “O pensador do terceiro milénio?” Um ano depois, na Alemanha, em uma pesquisa organizada pela companhia de televisão ZDF para estabelecer quem eram os alemães mais importan¬tes de todos os tempos, mais de 500 mil espectadores votaram em Karl Marx, que obteve o terceiro lugar na classificação geral e o primeiro na categoria de “relevância atual”.
Em 2005, 0 semanário alemão Der Spiegel publicou uma matéria especial que tinha como título “Ein Gespenst Kehrt zuruk” (A volta de um espec¬tro), enquanto os ouvintes do programa “In Our Time” da Rádio 4, da BBC, votavam em Marx como o maior filósofo de todos os tempos. Em uma conversa com Jacques Attali, recentemente publicada, você disse que, paradoxalmente, “são os capitalistas, mais que outros, que estão redescobrindo Marx” e falou também de seu assombro ao ouvir da boca do homem de negócios e político liberal, George Soros, a seguinte fra¬se: “Ando lendo Marx e há muitas coisas interessantes no que ele diz”. Ainda que seja débil e mesmo vago, quais são as razões para esse renascimento de Marx? É possível que sua obra seja considerada como de interesse só de especialistas e intelectuais, para ser apresentada em cursos universitários como um grande clássico do pensamento mo¬derno que não deveria ser esquecido? Ou poderá surgir no futuro uma nova “demanda de Marx”, do ponto de vista político?
Eric Hobsbawm – Estamos assistindo, no mundo capitalista, a um indis-cutível renascimento do interesse público por Marx, com exceção, pro-vavelmente, dos novos membros da União Européia, do leste europeu. Este renascimento foi provavelmente acelerado pelo fato de que o 150° aniversário da publicação do Manifesto Comunista coincidiu com uma cri-se económica internacional particularmente dramática em um período de uma veloz globalização do livre-mercado.
Cento e cinquenta anos atrás, ao analisar a “sociedade burguesa”, Marx previu a natureza da economia mundial no início do século XXI. Não é surpreendente que os capitalistas inteligentes, especialmente no setor financeiro globalizado, fiquem impressionados com Marx, já que eles são necessariamente mais conscientes que outros com relação à natureza e às instabilidades da economia capitalista na qual eles atuam.
A maioria da esquerda intelectual já não sabe o que fazer com Marx.
Ela foi desmoralizada pelo colapso do projeto social-democrata na maioria dos Estados do Atlântico Norte, nos anos 1980, e pela conversão massiva dos governos nacionais à ideologia do livre mercado, assim como pelo colapso dos sistemas políticos e económicos que afirmavam ser inspira¬dos por Marx e Lênin. Os assim chamados “novos movimentos sociais”, como o feminismo, tampouco tiveram uma conexão lógica com o anti- capitalismo (ainda que, individualmente, muitos de seus membros pos¬sam estar alinhados com esta perspectiva) ou questionaram a crença no progresso sem fim do controle humano sobre a natureza comparti¬lhada tanto pelo capitalismo como pelo socialismo tradicional. Ao mesmo tempo, o “proletariado”, dividido e diminuído, deixou de ser convincente como agente histórico da transformação social postulada por Marx.
Devemos levar em conta também que, desde 1968, os mais proeminen¬tes movimentos radicais preferiram a ação direta não necessariamente baseada em muitas leituras e análises teóricas. Naturalmente, isso não significa que Marx tenha deixado de ser considerado um grande clássico e pensador, embora por razões políticas, especialmente em países como França e Itália, que já tiveram poderosos Partidos Comunistas, tenha havido uma apaixonada ofensiva intelectual contra Marx e as análises marxistas, que provavelmente atingiu seu ápice nos anos 1980 e 1990. Há sinais agora de que o processo retomará seu curso.
Marcello Musto – Marx foi um agudo e incansável investigador que, ao longo de sua vida, percebeu e analisou melhor do que ninguém em seu tempo o desenvolvimento do capitalismo em escala mundial. Ele enten-deu que o nascimento de uma economia internacional globalizada era inerente ao modo capitalista de produção e previu que este processo geraria não somente o crescimento e prosperidade alardeados por po-líticos e teóricos liberais, mas também violentos conflitos, crises econó-micas e injustiça social generalizada. Na última década, vimos a crise financeira do Leste asiático, que começou no verão de 1997; a crise económica argentina de 1999-2002 e, sobretudo, a crise dos emprésti-mos hipotecários que começou nos Estados Unidos em 2006 e agora tornou-se a maior crise financeira do pós-guerra. É correto dizer, então, que o retorno do interesse pela obra de Marx está baseado na crise da sociedade capitalista e na duradoura capacidade de ele ajudar a expli¬car as profundas contradições do mundo atual?
Eric Hobsbawm – Não é possível afirmar se a política da esquerda no futuro será inspirada uma vez mais nas análises de Marx, como ocorreu com os velhos movimentos socialistas e comunistas: isso dependerá do que vai acontecer no mundo capitalista. Isso se aplica não somente a Marx, mas à esquerda considerada como um projeto e uma ideologia política coerente. Uma vez que, como você diz corretamente, a recupe-ração do interesse por Marx está consideravelmente – eu diria, princi-palmente – baseada na atual crise da sociedade capitalista, a perspec- tiva é mais promissora do que foi nos anos 1990. A atual crise financeira mundial, que pode transformar-se em uma grande depressão económi-ca nos Estados Unidos, dramatiza o fracasso da teologia do livre merca-do global descontrolado e obriga, inclusive o governo norte-americano, a escolher ações públicas esquecidas desde os anos 30.
As pressões políticas já estão debilitando o compromisso dos governos neoliberais em torno de uma globalização descontrolada, ilimitada e desregulada. Em alguns casos, como a China, a enorme desigualdade e injustiça, causadas por uma transição geral a uma economia de livre mercado, já colocam problemas importantes para a estabilidade social e geram dúvidas nos altos escalões de governo. É claro que qualquer “retorno a Marx” será essencialmente um retorno à análise de Marx sobre o capitalismo e seu lugar na evolução histórica da humanidade – incluindo, sobretudo, suas análises sobre a instabilidade essencial do desenvolvimento capitalista que funciona através de crises económicas periódicas auto-geradas com dimensões políticas e sociais. Nenhum marxista poderia acreditar que, como argumentaram os ideólogos neoliberais em 1989, o capitalismo liberal havia triunfado para sempre, que a história tinha chegado ao fim ou que qualquer sistema de rela¬ções humanas possa jamais ser definitivo.
Marcello Musto – Você não acha que, se as forças políticas e intelectu¬ais da esquerda internacional, que se questionam sobre o que poderia ser o socialismo deste novo século, renunciarem às idéias de Marx, es¬tarão perdendo um guia fundamental para o exame e a transformação da realidade atual?
Eric Hobsbawm – Nenhum socialista pode renunciar às idéias de Marx, na medida em que sua crença em que o capitalismo deve ser sucedido por outra forma de sociedade está baseada, não na esperança ou na vontade, mas em uma análise séria do desenvolvimento histórico, parti-cularmente da era capitalista. Sua previsão de que o capitalismo seria substituído por um sistema administrado ou planejado socialmente pa-rece razoável, ainda que certamente ele tenha subestimado os elemen-tos de mercado que sobreviveriam em algum sistema pós-capitalista.
Uma vez que Marx, deliberadamente, absteve-se de especular acerca do futuro, não pode ser responsabilizado pelas formas específicas em que as economias “socialistas” foram organizadas sob o chamado “so-cialismo realmente existente”. Quanto aos objetivos do socialismo, Marx não foi o único pensador que queria uma sociedade sem exploração e alienação, em que os seres humanos pudessem realizar plenamente suas potencialidades, mas foi o que expressou essa idéia com maior força, e suas palavras mantêm seu poder de inspiração.
Contudo, Marx não regressará como uma inspiração política para a es-querda até que seja entendido que seus escritos não devem ser trata-dos como programas políticos, autoritários ou não, mas como guia para se compreender a forma de Marx analisar a natureza do desenvolvimen-to capitalista. Tampouco podemos ou devemos esquecer que ele não conseguiu realizar uma apresentação bem planejada, coerente e com-pleta de suas idéias, apesar das tentativas de Engels e outros de cons¬truir, a partir dos manuscritos de Marx, um volume II e III de O Capital.
Como os Grundrisse mostram, mesmo que tivesse sido completado, O capital formaria apenas uma parte do próprio plano original, talvez ex-cessivamente pretensioso, de Marx. Por outro lado, Marx não voltará a ser inspiração da esquerda até que a tendência frequente entre ativistas radicais, de transformar anti-capitalismo em anti-globalização, seja aban-donada. A globalização existe e, salvo um colapso da sociedade huma¬na, é irreversível. Marx reconheceu isso como um fato e, como um internacionalista, deu-lhe as boas-vindas, em princípio. O que ele criti¬cou e 0 que nós devemos criticar é o tipo de globalização produzida pelo capitalismo.
Marcello Musto – Um dos escritos de Marx que suscitaram o maior inte-resse entre os novos leitores e comentadores são os Grundrisse. Escri-tos entre 1857 e 1858, os Grundrisse são o primeiro rascunho da crítica da economia política de Marx e, portanto, também o trabalho inicial pre-paratório do Capital, contendo numerosas reflexões sobre temas que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte de sua criação inacabada. Por que, em sua opinião, estes manuscritos da obra de Marx continuam provocando mais debate que qualquer outro texto, apesar do fato de ele tê-los escrito somente para resumir os fundamentos de sua crítica da economia política? Qual é a razão de seu apelo permanente?
Eric Hobsbawm – Do meu ponto de vista, os Grundrisse provocaram um impacto internacional tão grande na cena marxista intelectual por duas razões relacionadas. Eles permaneceram virtualmente não publicados antes dos anos 50 e, como você diz, contendo uma massa de reflexões sobre assuntos que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte. Não fizeram parte do largamente dogmatizado corpus do marxismo or-todoxo no mundo do socialismo soviético. Mas não podiam simplesmen¬te ser descartados pelo marxismo soviético. Puderam, portanto, ser usados por marxistas que queriam criticar ortodoxamente ou ampliar o alcance da análise marxista mediante o apelo a um texto que não podia ser acusado de herético ou anti-marxista. Assim, as edições dos anos 70 e 80, antes da queda do Muro de Berlim, continuaram provocando debate, fundamentalmente porque nestes escritos Marx coloca proble¬mas importantes que não foram considerados no Capital, como, por exem¬plo, as questões assinaladas em meu prefácio ao volume de ensaios que você organizou [Karl Marx’s Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later, editado por M. Musto, Londres-Nova York, Routledge, 2008],
Marcello Musto – No prefácio deste livro, escrito por vários especialistas internacionais para comemorar o 150° aniversário de sua composi¬ção, você escreveu: “Talvez este seja o momento correto para retornar ao estudo dos Grundrisse, menos constrangidos pelas considerações temporais das políticas de esquerda entre a denúncia de Stalin, feita por Nikita Khruschev, e a queda de Mikhail Gorbachev”. Além disso, para destacar o enorme valor deste texto, você diz que os Grundrisse “tra-zem análise e compreensão, por exemplo, da tecnologia, o que leva o tratamento de Marx do capitalismo para além do século XIX, para a era de uma sociedade onde a produção não requer já mão-de-obra massiva, para a era da automatização, do potencial de tempo livre e das trans-formações do fenômeno da alienação sob tais circunstâncias. Este é o único texto que vai, de alguma maneira, além dos próprios indícios do futuro comunista apontados por Marx na Ideologia Alemã. Em poucas palavras, esse texto tem sido descrito corretamente como o pensamen¬to de Marx em toda sua riqueza”. Assim, qual poderia ser o resultado da releitura dos Grundrisse hoje?
Eric Hobsbawm – Não há, provavelmente, mais do que um punhado de editores e tradutores que tenham tido um pleno conhecimento desta grande e notoriamente difícil massa de textos. Mas uma releitura ou leitura deles hoje pode ajudar-nos a repensar Marx: a distinguir o geral na análise do capitalismo de Marx daquilo que foi específico da situação da sociedade burguesa na metade do século XIX. Não podemos prever que conclusões podem surgir desta análise. Provavelmente, somente podemos dizer que certamente não levarão a acordos unânimes.
Marcello Musto – Para terminar, uma pergunta. Por que é importante ler Marx hoje?
Eric Hobsbawm – Para qualquer interessado nas idéias, seja um estu-dante universitário ou não, é patentemente claro que Marx é e perma-necerá sendo uma das grandes mentes filosóficas, um dos grandes ana-listas económicos do século XIX e, em sua máxima expressão, um mes-tre de uma prosa apaixonada. Também é importante ler Marx porque o mundo no qual vivemos hoje não pode ser entendido sem que se leve em conta a influência que os escritos deste homem tiveram sobre o século XX. E, finalmente, deveria ser lido porque, como ele mesmo es-creveu, o mundo não pode ser transformado de maneira efetiva se não for entendido. Marx permanece sendo um soberbo pensador para a com¬preensão do mundo e dos problemas que devemos enfrentar.
Marcello
Musto