Introdução
Poucos homens estremeceram o mundo como Karl Marx. Sua morte, muito pouco noticiada, foi seguida por um inigualável aumento da sua fama. Em pouco tempo, seu nome era pronunciado tanto pelos trabalhadores de Detroit e Chicago, como pelos primeiros socialistas indianos em Calcutá. Sua imagem estava no congresso dos Bolcheviques em Moscou após a revolução. Seu pensamento inspirou os programas e estatutos de todos os movimentos políticos dos trabalhadores, de toda Europa até Xangai. Suas idéias mudaram irreversivelmente a história, economia e filosofia.
Ainda assim, apesar da consolidação das suas teorias, de tornar-se uma ideologia dominante e uma doutrina de Estado para uma considerável parte da humanidade no século XX e a ampla disseminação dos seus escritos, até hoje ele ainda não possui uma completa e científica edição do seu trabalho. De todos os grandes pensadores, ele é o único com esta sina.
A principal razão para isto reside na freqüente incompletude da obra de Marx. Com a exceção dos artigos de jornais que ele escreveu entre 1848 e 1862, a maioria publicado no New-York Tribune, um dos mais importantes jornais da época, os trabalhos publicados foram relativamente poucos, quando comparados com os trabalhos parcialmente concluídos e a impressionante diversidade das suas pesquisas. Indicativamente, em 1881, quando perguntado por Karl Kautsky sobre uma possível edição completa das suas obras, Marx disse: “Antes de tudo, elas teriam que ser escritas”.
Marx deixou muito mais manuscritos, que publicações. O método extremamente rigoroso e a impiedosa autocrítica, que lhe tornou impossível levar até o fim muitos dos trabalhos começados; as condições de extrema pobreza e o estado de saúde debilitada permanentes; sua indistinta paixão pelo conhecimento que sempre o levava a estudos diversos, tornaram a incompletude a sua fiel companheira e maldição da sua produção intelectual e da sua própria vida.
Marx e Marxismo: incompletude versus sistematização
Após a morte de Marx em 1883, Friedrich Engels foi o primeiro a se dedicar à difícil tarefa – devida à dispersão do material, linguagem obscura e a inteligibilidade da caligrafia – de editar o legado do amigo. Seu trabalho se concentrou na seleção e reconstrução do material original, na publicação de textos não editados ou incompletos e na republicação e tradução dos escritos já conhecidos.
Mesmo se existiram exceções, como no caso das Teses sobre Feuerbach, editado em 1888 como um apêndice ao seu Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Alemã Clássica; a Crítica ao Programa de Gotha, que saiu em 1891, Engels focou-se na edição d’O Capital, do qual apenas o primeiro foi publicado antes da morte de Marx. Esta tarefa que durou mais de uma década, foi realizada com a explícita intenção de realizar “um trabalho conexo e até onde possível completo”. Durante esta atividade no segundo e terceiro volumes do Capital, Engels fez muito além de reconstruir a gênese e desenvolvimento dos manuscritos originais de Marx. Na seleção dos textos, que estavam longe de serem versões definitivas, Engels tentou dar uma uniformidade ao todo, e enviou a cópia dos volumes aos publishers em uma edição completa e em estado definitivo.
Anteriormente, entretanto, Engels já tinha contribuído para o processo de sistematização dos seus escritos. Lançado em 1879, Anti-Dühring, definido por Engels como a “mais ou menos ordenada exposição do método dialético e da visão comunista encabeçada por Marx e eu”, tornou-se um ponto crítico de referência na formação do ‘Marxismo’ como um sistema e a sua diferenciação do eclético socialismo disseminado na época. Do socialismo utópico ao socialismo científico teve importância ainda maior: foi uma re-elaboração, para fins de popularização, de três capítulos do trabalho prévio, publicado em 1880 e que desfrutou de um sucesso comparável ao do Manifesto do Partido Comunista.
Mesmo se existia uma clara diferença entre este tipo de popularização, assumido em polêmica aberta com os atalhos simplistas das sínteses enciclopédicas e adotado pela próxima geração da social-democracia alemã, a opção de Engels pelas ciências naturais, abriu o caminho para a concepção evolucionista do darwinismo social que, logo depois, também seria defendido pelo movimento operário.
Marx, por outro lado, indiscutivelmente crítico e aberto, mesmo se algumas vezes com tentações deterministas, safou-se do clima cultural na Europa no final do século XIX. Como nunca antes, era uma cultura permeada pela popularidade de concepções sistemáticas – sobretudo darwinistas. Em resposta, o recém nascido Marxismo, que tinha se tornado uma ortodoxia nas páginas da revista Die Neue Zeit sob a edição de Kautsky, rapidamente adaptou-se a este modelo.
Um fator decisivo que ajudou a consolidar esta transformação do trabalho de Marx pode ser identificado nas modalidades que acompanharam a sua difusão. Panfletos de síntese e pequenos compêndios eram privilegiados, como demonstrado pelas reduzidas tiragens das edições dos seus textos nesta época. Além disto, alguns dos seus trabalhos não interessavam para uso político e a primeira edição dos seus escritos foi publicada com revisões pelos editores. Esta prática resultante da incerteza do legado de Marx, foi crescentemente combinada com a censura de alguns dos seus trabalhos. A forma de manual, um importante meio para a exportação mundial do pensamento do Marx, certamente representou um muito eficaz instrumento de propaganda, mas isto também levou a consideráveis alterações na sua concepção original. A circulação desta complexa e incompleta obra no seu choque com o positivismo, para responder às necessidades práticas do partido proletário, refletiu um empobrecimento teórico e uma versão vulgarizada do material original.
Da evolução deste processo uma doutrina esquemática tomou forma, uma interpretação evolucionista elementar embebida em determinismo econômico: o marxismo do período da segunda internacional (1889-1914). Guiado por uma firme, embora ingênua convicção da linearidade do progresso da história, e assim, da inevitável substituição do capitalismo pelo socialismo, demonstrou ser incapaz de aprender os desenvolvimentos atuais, e romper os necessários elos com a práxis revolucionária. Isto produziu uma espécie de fatalidade silenciosa, que deu estabilidade para a ordem existente.
A teoria da crise [Zusammenbruchstheorie] ou a tese do eminente fim da sociedade burguesa-capitalista, que encontrou sua mais favorável expressão na crise da grande depressão que se desdobrou nos vinte anos após 1873, foi proclamada como a essência fundamental do socialismo científico. As afirmações de Marx, mirando na delimitação dos princípios dinâmicos do capitalismo e mais amplamente, em descrever as tendências de seu desenvolvimento no seu interior, foram transformadas em leis históricas universais, das quais era possível deduzir o curso dos eventos, mesmo os detalhes particulares.
A idéia de um capitalismo contraditório agonizante, autonomamente destinado a colapsar, estava também presente no marco teórico da primeira plataforma inteiramente ‘marxista’ de um partido político, The Eurfurt Programme de 1891 e no comentário de Kautsky, que anunciava como “desenvolvimentos econômicos inexoráveis levariam à bancarrota do modo capitalista de produção com a necessidade de uma lei da natureza. A criação de uma nova forma de sociedade que substituirá a atual não é mais algo desejável, se tornou inevitável. Isto era a mais clara e mais significante representação dos limites intrínsecos da concepção da época, bem como da sua enorme distância do homem que a inspirou.
Mesmo Eduard Bernstein, que concebeu o socialismo como uma possibilidade, e assim assinalou a descontinuidade com as interpretações que eram dominantes no período, lia Marx de modo igualmente artificial, que não se diferenciava dos outros escritos da época e contribuiu para a difusão de uma imagem dele, como forma do amplamente difundido Debate Bernstein, que era igualmente falso e instrumental.
O marxismo russo, que no século XX teve um papel fundamental na popularização do pensamento de Marx, seguiu esta trajetória de sistematização e vulgarização com ainda maior rigidez. De fato, para o seu pioneiro mais importante, George Plekanov, “Marxismo é uma concepção de mundo completa” permeada por um reducionismo monista segundo o qual as transformações superestruturais na sociedade ocorrem simultaneamente com modificações econômicas. Apesar dos duros conflitos ideológicos destes anos, muitas características dos elementos teóricos da Segunda Internacional foram mantidos por aqueles que definiriam a matriz cultural da Terceira Internacional. Esta continuidade estava clara no Theory of Historical Materialism de Nikolai Bukharin, publicado em 1921, segundo a qual “na natureza e sociedade há uma regularidade exata, uma lei natural permanente. A determinação desta lei natural é a primeira tarefa da ciência”. O produto deste determinismo social, completamente concentrado no desenvolvimento das forças produtivas, gerou um doutrina segundo a qual “a multiplicidade de causas que fazem suas ações sentidas pela sociedade não contradizem no mínimo a existência de uma única lei da evolução social”.
Com a construção do maxismo-leninismo, o processo de alteração do pensamento tomou sua manifestação definitiva. Privado de sua função como um guia para ação, a teoria se tornou uma justificação a posteriori. O ponto sem volta, foi atingido com ‘Diamat’ (Dialekticeskij materializm), “o ponto de vista do partido marxista-leninista”. O panfleto de Stalin de 1938, Materialismo Dialético e Materialismo Histórico, que teve uma vasta distribuição, fixou os elementos essenciais desta doutrina: o fenômeno da vida coletiva é regulado por “leis necessárias ao desenvolvimento social”, “perfeitamente reconhecíveis” e “a história da sociedade aparece como um inevitável desenvolvimento da sociedade e o estudo da história se torna uma ciência”. Isto “significa que a ciência da história da sociedade, apesar de toda complexidade do fenômeno da vida social, pode tornar-se uma ciência, tão exata como, por exemplo, a biologia, capaz de utilizar as leis do desenvolvimento da sociedade para fazer seu uso prático” e que, consequentemente, a tarefa do partido proletário é guiar suas atividades por estas leis. Hoje é evidente como a confusão com os conceitos de “científico” e “ciência” atingiram o seu ápice. A cientificidade do método de Marx, baseada em um escrupuloso e coerente marco teórico, foi substituída por metodologias das ciências naturais, nos quais a contradição não estava presente. Finalmente, a superstição na objetividade das leis históricas, de acordo com as quais elas operavam como leis da natureza independentemente da vontade do homem, foi abonada.
Depois deste catecismo ideológico, o mais rígido dogmatismo conseguiu disseminar-se. A ortodoxia marxista-leninista impôs um inflexível monismo que também produziu efeitos perversos nos escritos de Marx. Inquestionavelmente, com a Revolução Soviética o marxismo desfrutou de um momento significativo de expansão e circulação para localidades e classes sociais, que até então, não tinha incidência. Entretanto, novamente a circulação de textos baseou-se muito mais manuais do partido, guias e antologias ‘marxistas’ sobre vários temas, que nos textos de Marx. Mais além, enquanto a censura de alguns textos aumentou, outros eram cortados e manipulados: por exemplo, como práticas de indução em citações deliberadamente reunidas. Estes usos foram resultado de um previsível fim e eles foram tratados da mesma maneira que o bandido Procusto reservava às suas vítimas: se eram muito logos, eram amputados, se muito curtos, alongados.
Concluindo, a relação entre a disseminação e a não-esquematização do pensamento, entre a sua popularização e a necessidade de não empobrecê-lo teoricamente, é sem dúvida muito difícil de perceber, especialmente o crítico e deliberadamente não-sistemático pensamento de Marx. De todos os modos, nada pior poderia acontecer com ele. Distorcido por diferentes perspectivas para se tornar uma função das necessidades da política contingencial, ela foi assimilado por elas e desprezado por causa delas. De crítica, sua teoria foi utilizada como salmos de algum tipo de bíblia e desta exegese nasceu o mais impensável paradoxo.
Longe de atentarem-se aos seus avisos contra “escrever receitas […] para os cozinheiros (cook-shops) do futuro” , ele foi transformado no pai ilegítimo de um novo sistema social. Uma crítica muito rigorosa e nunca complacente com suas conclusões, ele tornou-se a fonte do mais obstinado doutrinismo. Crédulo na concepção materialista da história, ele foi mais afastado do seu contexto histórico, do que qualquer outro autor. De estar certo que “a emancipação da classe trabalhadora tem que ser pelo próprio trabalho dos trabalhadores”, ele foi aprisionado em uma ideologia que via a primazia de uma vanguarda política e a preponderância no seu papel como proponentes de uma consciência de classe e líderes da revolução. Um defensor da idéia que a condição fundamental para a maturação das capacidades humanas era a redução da jornada de trabalho, ele foi assimilado à crença produtivista de Stakhanovism. Convencido da necessidade da abolição do Estado, ele se encontrou identificado como o seu defensor. Interessado como poucos outros pensadores em desenvolvimento livre da individualidade dos homens, argumentando contra a burguesia que esconde as disparidades sociais atrás da igualdade no direito, que “ao invés de sermos iguais, nós deveríamos se desiguais”, ele foi acomodado em uma concepção que neutralizou a riqueza da dimensão coletiva da vida social na indistinção da homogeneização. A incompletude original da obra crítica de Marx foi sujeitada à pressão da sistematização dos sucessores, que produziram, inexoravelmente, a desnaturalização do seu pensamento.
A odisséia da publicação das obras de Marx e Engels
“Foram os escritos de Marx e Engles […] alguma vez lidos na sua totalidade por alguém além do grupo de amigos próximos e discípulos dos autores?”, perguntou Antonio Labriola em 1897, se referindo ao que era conhecido então dos trabalhos deles. Suas conclusões foram inequívocas: “lendo todos os escritos dos fundadores do socialismo científico parece ter sido até agora um privilégio dos iniciados”; “o materialismo histórico” tem sido propagado “por meio de uma infinidade de equívocos, confusões, alterações grotescas, estranhamente disfarçadas e intervenções não reveladas”. Como foi demonstrado pela pesquisa histórica, a convicção que Marx e Engels foram realmente lidos foi fruto de um mito.
Ao contrário, muitos dos seus textos eram raros ou difíceis de achar mesmo na língua original. A proposta do acadêmico italiano de dar vida à “completa e crítica edição de todos os escritos de Marx e Engels” era imperativa. Para Labriola, não era preciso nem compilações nem antologias, ou o esboço de um testamentum juxta canonem receptum. Ao invés, “toda a atividade política e científica, toda a produção literária, mesmo que ocasional, dos dois fundadores do socialismo crítico, teria que estar à disposição dos leitores […] porque eles falam diretamente a quem quer que tenha o desejo de lê-los”. Mais de um século depois do seu desejo, este projeto ainda não foi realizado.
O executor natural desta opera omnia, não poderia ser outro que o Sozialdemokratische Partei Deutschlands (Partido Socialdemocrata Alemão), detentor do Nachlaß e cujos membros tiveram a maior competência teórica e política. Todavia, conflitos políticos dentro da social democracia não apenas impediram a publicação da vasta maioria dos trabalhos não publicados de Marx, mas causaram a dispersão dos manuscritos, comprometendo qualquer tentativa de uma edição sistemática. Inacreditavelmente, o partido alemão não o catalogou, tratando o legado literário deles com a máxima negligência. Nenhum dos seus teóricos listou as obras ou dedicou-se a levantar as correspondências, numerosas e extremamente dispersas, apesar do fato que isto era certamente uma fonte de informação muito útil de esclarecimentos, se de se continuação dos escritos.
A primeira publicação trabalhos completos, a Marx Engels Gesamtausgabe (MEGA), ocorreu apenas nos anos 20, como iniciativa de David Borisovič Ryazanov, diretor do Instituto Marx-Engels de Moscou. Esta iniciativa naufragou, devido às turbulentas ações do movimento operário internacional, que frequentemente estabelecia obstáculos, ao invés de favorecer a publicação dos trabalhos. Os expurgos stalinistas na União Soviética, que também afetaram os acadêmicos que trabalharam neste projeto e o surgimento do nazismo na Alemanha, levaram ao precoce interrupção da publicação. Tal era a produção contraditória de uma ideologia inflexível que tirou sua inspiração de um autor cujos trabalhos ainda eram em parte inexplorados. A consolidação do marxismo e sua cristalização em um dogmático corpus, precedeu o conhecimento dos textos que seriam necessários para conhecer a formação e evolução do pensamento de Marx. Os primeiros trabalhos, de fato, foram publicados somente na MEGA em 1927, a Crítica a filosofia do direito de Hegel, e em 1932 os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 e A Ideologia Alemã. Como já ocorrido com o segundo e terceiro livros d’O Capital eles foram publicados em edições nas quais eles apareciam como trabalhos completos; uma escolha que posteriormente se demonstraria a fonte de numerosas confusões interpretativas.
Ainda depois, alguns importantes trabalhos preparatórios d´O Capital: em 1993 o rascunho do capítulo 6 de O Capital ‘Resultados do Processo de Produção Direta’ e entre 1939 e 1941 os Fundamentos da Crítica a Economia Política, mais conhecida como Os Grundrisse, que teve circulação muito limitada. Além disto, estes escritos não publicados, como aqueles que seguiram, quando não foram escondidos por medo que poderiam erodir o cânone ideológico dominante, foram acompanhados por uma interpretação funcional às necessidades políticas que, na melhor hipótese, fizeram previsíveis ajustes para predeterminar interpretações e nunca permitiram uma completa reavaliação da obra de Marx.
A primeira edição russa dos trabalhos selecionados foi também terminada na União Soviética entre 1928 e 1947: Sočinenija (Obra Completa). Apensar deste nome, apenas incluiu alguns trabalhos, mas com 28 volumes (em 33 livros) que constituiu a mais completa coleção em termos qualitativos dos dois autores da época. A segunda Sočinenija, apareceu entre 1955 e 1966 em 39 volumes (42 livros). De 1956 a 1968 na República Democrática Alemã, em uma iniciativa do comitê central do SED, 41 volumes em 43 livros do Marx Engels Werke (MEW) foram publicados. Tal edição, entretanto, longe de completa, foi rebaixada por introduções e notas nas quais, seguindo o modelo da edição Soviética, que instruía o leitor segundo a ideologia do marxismo-leninismo.
O projeto de uma ‘segunda’ MEGA, planejado como a fiel reprodução com um extenso aparato crítico de todos os escritos dos pensadores, foi renascida nos anos 1960. Mas estas publicações, que começaram em 1975, foram também interrompidas, então por causa dos eventos de 1989. Em 1990, com o objetivo de continuar a edição o Internationaal Instituut voor Sociale Geschiedenis of Amsterdam e o Karl Marx Haus em Trier formaram a Internationale Marx-Engels-Stiftung (IMES). Após a difícil fase de reorganização, no curso da qual novos princípios editoriais foram aprovados e a editora Akademie Verlag tomou o lugar de Dietz Verlag, a publicação da chamada MEGA 2 começou em 1998.
MEGA2: A redescoberta de um autor mal compreendido
Contrariamente a todas as previsões do seu definitivo esquecimento, nos últimos anos os acadêmicos internacionais voltaram sua atenção a Marx. O valor de seu pensamento foi reafirmado por muitos e seus escritos estão sendo desempoeirados das estantes de bibliotecas da Europa, Estados Unidos e Japão. Um dos mais significativos exemplos da sua redescoberta é precisamente a continuidade da MEGA 2. O projeto completo, no qual acadêmicos de várias disciplinas e países participam, é articulado em quatro seções: A primeira inclui todos os trabalhos, artigos e rascunhos, menos O Capital; o segundo inclui O Capital e seus estudos preliminares começando em 1857; o terceiro é dedicado à correspondência; enquanto o quarto inclui extratos, anotações, entre outros. Dos 114 volumes planejados 53 já foram publicados (13 desde a retomada em 1998), cada um deles consiste em dois livros: o texto mais o aparato crítico, que contém os índices e muitas notas adicionais. As aquisições editoriais da MEGA 2 produziram importantes resultados nas quatro seções. Na primeira, Werke, Artikel und Entwürfe, a pesquisa foi recomeçada com a publicação de dois novos volumes.
O primeiro, ‘Karl Marx-Friedrich Engels, Werke, Artikel, Entwürfe. Januar bis Dezember 1855’, inclui 200 artigos e rascunhos escritos pelos dois autores em 1855 para o New-York Tribune e o Neue Oder-Zeitung de Breslau. Conjuntamente aos mais conhecidos escritos sobre política e diplomacia européia, reflexões sobre a conjuntura econômica interna e a guerra da Criméia, a pesquisa tornou possível adicionar 21 outros textos previamente não atribuídos porque eram publicados anonimamente em jornal americano. O segundo ‘Friedrich Engels, Werke, Artikel, Entwürfe. Oktober 1886 bis Februar 1891’, por outro lado, apresenta parte do trabalho do último Engels. O volume alterna entre projetos e notas. Entre estes está o manuscrito Rolle der Gewalt in der Geschichte, sem as intervenções de Bernstein editou sua primeira publicação, que é dirigido a organizações do movimento operário e prefacia a republicação de escritos e artigos. Entre os últimos, de particular interesse está Die auswärtige Politik des russischen Zarentums, a história de dois séculos de política externa russa que apareceu em Die Neue Zeit, mas que foi suprimido por Stalin em 1934, e Juristen-Sozialismus, escrito com Kautsky, cuja paternidade das partes individuais foi esclarecida pela primeira vez.
Seguindo, de considerável interesse é o primeiro número de Marx-Engels-Jahrbuch, uma nova série publicada pelo IMES, inteiramente dedicado à A Ideologia Alemã. Este livro, antecipando o volume I/5 da MEGA 2, inclui as páginas de Marx e Engels que correspondem ao manuscrito ‘I. Feuerbach’ e ‘II. Sankt Bruno’. Os sete manuscritos que sobreviveram, à “crítica roedora dos ratos” são selecionados como textos independentes e cronologicamente ordenados. Desta edição pode deduzir-se com clareza, o caráter não unitário da obra. Novos e definitivos alicerces são dados para a pesquisa científica para traçar a elaboração teórica de Marx com confiabilidade. A Ideologia Alemã, considerada até agora como uma exaustiva exposição da concepção materialista da história, é agora reconstruída com a sua original fragmentação.
A pesquisa para a segunda edição da MEGA 2, Das Kapital’ und Vorarbeiten, se concentrou nos anos recentes no segundo e terceiro livros d’O Capital. O volume Karl Marx, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Zweites Buch. Redaktionsmanuskript von Friedrich Engels 1884/1885’ inclui o texto do segundo livro compilado por Engels, com base em sete manuscritos de vários tamanhos escritos por Marx entre 1865 e 1881. Engels, de fato, recebeu muitas versões do segundo livro de Marx, mas não indicações sobre qual deveria ser publicada. Ao contrário, ele encontrou um material “com estilo pouco apurado e cheio de coloquialismos, oferecendo expressões engraçadas e termos técnicos em inglês e francês ou sentenças inteiras e até páginas em inglês. Os pensamentos eram escritos conforme se desenvolviam na cabeça do autor. […] Nas conclusões dos capítulos, devido a ansiedade do autor para iniciar o próximo, sempre haveria apenas algumas frases desconexas para apontar os próximos desenvolvimentos que ficaram incompletos”.
Ainda, Engels teve que tomar determinantes decisões editoriais. As mais recentes descobertas filológicas estimam que esta intervenção fosse cerca de 5.000: uma quantidade muito maior que as que se estimavam. As modificações consistem em edições e exclusões de passagens, modificações na estrutura, inserção de parágrafos, substituição de conceitos, reelaborações de algumas formulações de Marx ou traduções de palavras adaptadas de outras línguas. O texto entregue à gráfica só saiu após estas modificações. Este volume, então, nos permite reconstruir todo o processo de seleção, composição e correção dos manuscritos de Marx, estabelecer quais as mais significativas alterações de Engels e onde ele conseguiu respeitar inteiramente os manuscritos – que, repito, não representam o estado final de sua pesquisa.
A publicação do terceiro livro d’O Capital, ‘Karl Marx, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Dritter Band’, o único volume que Marx não logrou dar forma definitiva, envolveu ainda maior intervenção editorial. Neste prefácio Engels adverte como o texto foi “um primeiro rascunho extremamente incompleto. O início de várias partes foi, como regra, cuidadosamente feito e até recebeu tratamento estatístico. Mas, conforme seguia, o manuscrito ficava mais esquemático e incompleto, bem como, mais desvios a temas paralelos levantados cujos lugares específicos no argumento seriam posteriormente decididos.”. Assim, o intenso trabalho editorial de Engels que lhe tomou boa parte das energias entre 1885 e 1894, produziu a transição de um texto provisional, composto de pensamentos “escritos em statu nascendi” e notas, a outro unitário, com formato de uma teoria econômica nascente concluída e sistemática.
Isto tornou-se aparente no volume ‘Karl Marx-Friedrich Engels, Manuskripte und redaktionelle Texte zum dritten Buch des Kapitals’. Ele contém os últimos seis manuscritos referentes ao terceiro livro d’O Capital, escritos entre 1871 e 1882. Destes, o mais importante é a longa seção sobre “A relação entre a taxa de mais-valia e a taxa de lucro matematicamente desenvolvida” de 1875, bem como os textos adicionados por Engels. Os últimos demonstram com exatidão o caminho tomado para a versão publicada. A posterior confirmação do mérito do livro é o fato que 45 dos 51 textos neste volume eram inéditos. A totalidade da segunda seção, finalmente permitirá uma precisa avaliação crítica dos textos originais deixados por Marx e o valor e limites do trabalho editorial de Engels.
A terceira seção da MEGA 2, Briefwechsel, contém as cartas trocadas entre Marx e Engels, bem como aquelas entre eles e numerosos correspondentes. O número total de cartas destas correspondências é enorme. Mais de 4.000 escritas por Marx e Engels (2.500 entre eles) foram encontradas, bem como, 10.000 endereçadas a eles por terceiros, uma vasta maioria inéditas antes da MEGA 2. Mais além, existe uma forte evidência de outras 6.000 cartas, embora estas não tenham sido preservadas. Quatro novos volumes foram editados o que agora nos permite a releitura de importantes fases da biografia intelectual de Marx pelas cartas daqueles com os quais manteve contato.
O contexto das cartas reunidas em ‘Karl Marx-Friedrich Engels, Briefwechsel Januar 1858 bis August 1859’ é a recessão de 1857. Esta, renova em Marx a esperança de uma retomada do movimento revolucionário, após uma década de refluxo aberta após a derrota de 1848 “A crise tem ficado submersa como a boa velha toupeira” Esta expectativa renovou o vigor da sua produção intelectual e o encorajou a delinear as linhas fundamentais da sua teoria econômica “antes do déluge”, esperada, mas ainda não realizada. Precisamente neste período, Marx escreveu suas últimas notas dos Grundrisse e decidiu publicar seu trabalho em panfletos . O primeiro destes, publicado em junho de 1859, foi intitulado Contribuição a crítica da Economia Política. Pessoalmente, esta fase o marcou pela “profunda miséria”: “Eu não creio que alguém tenha escrito sobre ‘dinheiro’, com tanta falta de dinheiro”. Marx lutou desesperadamente para garantir que a precariedade da sua condição não o impedisse de terminar sua ‘economia’ e declarou: “Eu tenho que perseguir meus objetivos a todo custo e não deixar que a sociedade burguesa me transforme em uma máquina de fazer dinheiro”. Todavia, o segundo panfleto nunca viu a luz do dia e a próxima publicação sobre economia teve que esperar até 1867, o ano no qual ele enviou o primeiro volume d’O Capital para a gráfica.
Os volumes ‘Karl Marx-Friedrich Engels, Briefwechsel September 1859 bis Mai 1860’ e ‘Karl Marx-Friedrich Engels, Briefwechsel Juni 1860 bis Dezember 1861’ contêm a correspondência relacionada ao tortuoso tema da publicação do Herr Vogt e a acalorada controvérsia entre Vogt e Marx. Em 1859, Karl Vogt acusou Marx de ter instigado uma conspiração contra ele, bem como de ser o líder de um grupo que vivia de chantagear aqueles que participaram nos levantes de 1848. Assim, para defender a sua reputação, Marx foi obrigado a se defender. Isto foi logrado graças a um enérgico intercâmbio de correspondência com militantes, com os quais ele teve relações políticas depois de 1848, com o propósito de obter dele todos os possíveis documentos sobre Vogt. O resultado foi um polêmico panfleto de 200 páginas: Herr Vogt. Assuntos pessoais neste período, não iam bem. Além dos desanimadores problemas financeiros – no final de 1861 Marx disse “se este [ano] for igual ao que passou, de minha parte, eu prefiro o inferno – haviam também aqueles costumeiros de saúde, os últimos causados pelos primeiros. Durante algumas semanas, por exemplo, ele parou de trabalhar: “a única ocupação que posso conservar para a tranqüilidade da alma é a matemática”, uma das grandes paixões da sua vida.
Novamente no início de 1861, sua condição agravou-se por uma inflamação no fígado e ele escreveu para Engels: “Estou sofrendo como Jô, embora não de temor a Deus”. Faminto por leitura novamente ele se refugiou na cultura: “para mitigar o profundo mau humor causado pela situação, incerto em todos os sentidos, estou lendo Tucídides. Pelo menos estes antigos sempre permanecem novos”. De todos os modos, em agosto de 1861 ele retomou seus trabalhos com afinco. Ale junho de 1863, ele preencheu 23 cadernos, que incluíam as Teorias sobre a Mais-Valia. Os 5 primeiros, que tratam da transformação do dinheiro em capital, foram ignorados por 100 anos e publicados apenas em 1973 em russo e em 1976 na língua original.
O tema principal de ‘Karl Marx-Friedrich Engels, Briefwechsel Oktober 1864 bis Dezember 1865’ é a atividade política de Marx na Associação Internacional de Operários, fundada em Londres em 28 de setembro de 1864. As cartas documentam as ações de Marx no período inicial da organização, durante o qual ele rapidamente conquistou o papel de liderança e sua tentativa de combinar estas tarefas públicas, que ele assumiu novamente como prioritárias após 16 anos, com o trabalho científico. Entre as questões que eram debatidas estava o funcionamento da organização dos sindicatos, importância que ele enfatizava, enquanto ao mesmo tempo, ia contra Lassalle e sua proposta de formar cooperativas financiadas pelo Estado prussiano: “a classe trabalhadora é revolucionária ou não é nada”; a polêmica contra Owenite John Weston, que resultou em um conjunto de artigos reunidos postumamente em 1898 com o nome de Valor, Preço e Lucro; considerações sobre a Guerra Civil dos Estados Unidos; e o panfleto de Engels sobre A questão militar a Prússia e o Partido Operário Alemão.
As novidades da histórica edição crítica são também notáveis na quarta seção, Exzerpte, Notizen, Marginalien. Este contém numerosos resumos e notas de estudos de Marx, que constituem um significante testemunho do seu colossal trabalho. Desde seus anos na universidade, ele adotou o hábito de compilar cadernos de anotações com extratos de livros que ele leu, frequentemente os fragmentando com reflexões com as quais eles o propeliam a fazer. O Nachlaß de Marx contém aproximadamente 200 cadernos de resumos. Estes são essenciais para o conhecimento e compreensão da gênese da sua teoria e de partes do que ele não teve chances de desenvolver como queria.
Os extratos preservados, que vão de 1838 a 1882, são escritos em oito línguas – Alemão, Grego antigo, Latim, Francês, Inglês, Italiano, Espanhol e Russo – e abarcam um amplo leque de disciplinas. Foram tirados de textos de filosofia, arte, religião, política, direito, literatura, história, economia-política, relações internacionais, tecnologia, matemática, fisiologia, geologia, mineralogia, agronomia, etnologia, química e física, bem como artigos de jornais e revistas, informes parlamentares, estatísticas, relatórios e publicações de órgãos governamentais – entre estes estão os famosos “Livros Azuis”, em particular os Relatórios dos inspetores de fábricas, que continha investigações da maior importância para seus estudos.
Esta imensa fonte de conhecimento, em grande parte ainda não publicada, foi o nascedouro da teoria crítica de Marx. A quarta seção da MEGA 2, planejada em 32 volumes, proverá acesso a isto pela primeira vez. Quatro volumes foram recentemente publicados. ‘Karl Marx, Exzerpte und Notizen Sommer 1844 bis Anfang 1847’ contém oito extratos de cadernos, compilados por Marx entre o verão de 1844 e dezembro de 1845. Os dois primeiros são de sua estada em Paris e vieram logo após os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. Os outros seis foram escritos no ano seguinte em Bruxelas, após sua expulsão de Paris e na Inglaterra, onde ele permaneceu entre julho e agosto. Nestes cadernos estão os traços da aproximação de Marx com a economia política e o processo de formação da sai primeira elaboração de teoria econômica. Isto emerge claramente dos extratos de manuais de economia política de Storch e Rossi, como nos tirados de Boisguillebert, Lauderdale, Sismondi e em relação à maquinaria e técnicas de manufatura, de Baggage e Ure. Com parando estes cadernos com os escritos do período, publicados e inéditos, evidencia-se a inegável influência destes escritos no desenvolvimento das suas idéias. A totalidade das notas, com a reconstrução histórica da sua maturação, mostra o progresso e a complexidade do seu pensamento crítico durante este intenso período de trabalho.
O volume ‘Karl Marx-Friedrich Engels, Exzerpte und Notizen September 1853 bis Januar 1855’ contém nove longos cadernos de extratos, compilados por Marx essencialmente durante 1854. Eles foram escritos no mesmo período no qual ele publicou uma importante série de artigos do New-York Tribune: aqueles sobre ‘Lord Palmerston’ entre outubro e dezembro de 1853 e reflexões sobre “A Espanha Revolucionária” entre julho e agosto de 1854, enquanto os textos sobre a guerra da Criméia – quase todos escritos por Engels – saíram em 1856. Quatro destes cadernos contém anotações sobre a história da diplomacia tomados principalmente, dos textos dos historiadores Famin e Francis, do advogado e diplomata alemão von Martens, pelo político ‘Tory’ Urquhart, bem como das “Correspondências relativas aos temas do Levante” e “Os debates políticos de Hansard”. Os outros cinco, foram tomados de Chateubriand, do escritor espanhol de Jovellanos, do general espanhol San Miguel, do seu amigo interiorano de Marliani e de muitos outros autores dedicados exclusivamente à Espanha e demonstram a intensidade que Marx examinou sua história social e política e a cultura. Mais além, as notas do Essai sur l’histoire de la formation et des progrès du Tiers État de Augustin Thierry despertam interesse particular. Todas estas notas são muito importantes porque elas revelam as fontes de onde Marx retirou e nos permite entender o modo como ele utilizava estas leituras para escrever seus artigos.
O grande interesse de Marx sobre as ciências naturais, quase completamente desconhecido, aparece no volume ‘Karl Marx-Friedrich Engels, Naturwissenschaftliche Exzerpte und Notizen. Mitte 1877 bis Anfang 1883’. Este volume apresenta notas de química orgânica e inorgânica do período 1877 – 1883, que nos permitem descobrir mais aspectos do seu trabalho. Isto é muito importante, porque estas pesquisas ajudam a desacreditar a falsa lenda, recontada em numerosas biografias suas, que tentam mostrá-lo como desistente dos próprios estudos nas últimas décadas da sua vida e que sua curiosidade intelectual estava completamente satisfeita. As notas publicadas contém fórmula químicas, estratos dos livro de química de Meyer, Roscoe, e Schorlemmer, e também notas sobre física, fisiologia e geologia – disciplinas que passaram por importantes desenvolvimentos científicos no último quarto do século XIX, e sobre os quais Marx queria manter-se informado. Estes estudos constituem um dos menos explorados campos de pesquisa sobre Marx e, como não estão diretamente conectados com a excussão do trabalho n’O Capital, eles trazem questões não respondidas sobre as razões para este interesse.
Se os manuscritos de Marx, antes de serem publicados, conheceram numerosos altos e baixos, os livros que Marx e Engels possuíam sofreram sina ainda pior. Depois da morte de Engels, as duas bibliotecas que obtiveram seus livros com interessantes anotações e marcas foram ignoradas e em parte dispersadas e apenas subsequentemente reconstruída e catalogada com dificuldade. O volume ‘Karl Marx-Friedrich Engels, Die Bibliotheken von Karl Marx und Friedrich Engels’ , é fruto de 75 anos de pesquisa. Consiste em um index de 1.450 livros em 2.100 volumes – ou dois terços dos possuídos por Marx e Engels – que incluem notas de todas as páginas dos volumes nos quais havia anotações.
É uma publicação em andamento que será integrada a MEGA 2 e é completada pelo index dos livros não disponíveis hoje (o número recuperado é de 2.100 em 3.200 volumes), com indicações presentes em 40.000 páginas de 830 textos e a publicação dos comentários sobre as leituras nas margens dos volumes. Como muitos que tiveram contato próximo com Marx notaram, ele não considerava os livros objetos de luxo, mas instrumentos de trabalho. Ele os tratava mal, dobrava as páginas e os sublinhava. “Eles são meus escravos e têm que me obedecer” , ele disse sobre seus livros. Por outro lado, dedicava toda a devoção, ao ponto de se definir como “um máquina condenada a devorar livros para expeli-los, em uma forma modificada, no lixo da história”.
Para conhecer algumas de suas leituras – nunca deve-se esquecer que sua biblioteca é apenas uma parte do seu incansável trabalho conduzido por décadas no Museu Britânico em Londres – bem como, os seus comentários em relação a esta, constituem uma preciosa fonte de reconstituição da sua pesquisa. Isto também ajuda a refutar a falsa interpretação marxista-leninista, que tem frequentemente apresentado seu pensamento como o fruto de um repentino raio, que na realidade, uma elaboração cheia de elementos teóricos derivados de seus predecessores e contemporâneos.
Finalmente, alguém deveria ter perguntado: que novo Marx emerge da nova edição histórico-crítica? Certamente, um Marx diferente daquele aceito por um longo período por muitos seguidores e opositores. Os tortuosos processos de disseminação de seus escritos e a ausência de uma edição completa delas, juntamente à sua fundamental incompletude, o infame trabalho de seus sucessores, as tendenciosas leituras, e as mais numerosas falhas para lê-lo, são causas fundamentais para o grande paradoxo: Karl Marx é um autor incompreendido, a vítima de uma profunda e frequentemente confusão. Ao invés do rígido perfil que era encontrado em muitas praças de regimes não-liberais na Europa oriental, o representando como o caminho ao futuro com uma convicção dogmática, hoje pode-se reconhecer um autor que deixou uma grande parte do seu trabalho incompleto para dedicar-se , até a sua morte, a outros estudos que verificariam a validade de suas teses. Da redescoberta de seu trabalho ressurge a riqueza de uma problemática e pensamento polimorfo, que forma um rico horizonte para o futuro Marx Forschung.
Marx, aquele ‘cachorro morto’
Devido aos conflitos teóricos e eventos políticos, o interesse na obra de Marx nunca foi contínuo e, desde o começo, ele tem experimentado momentos de indiscutível declínio. Da ‘crise do marxismo’ à dissolução da Segunda Internacional, das discussões sobre os limites da teoria da mais-valia à tragédia do comunismo soviético, as críticas às idéias de Marx sempre pareceram exceder o seu horizonte conceitual. Sempre houve, entretanto um ‘retorno a Marx’. Um novo apelo em referência aos desenvolvimentos do seu trabalho e da crítica a economia política às formulações sobre alienação ou as brilhantes páginas de polêmicas políticas, continuam a exercer irresistível fascinação para os seguidores e opositores. Todavia, no fim do século, tendo sido unanimemente declarada desaparecida, de repente Marx reaparece no palco da história.
Livre da repugnante função de instrumentum regni, ao qual foi consignado no passado, e das correntes do marxismo-leninismo do qual ele é certamente separado, a obra de Marx tem sido direcionada a novos campos do conhecimento e lida novamente em todos os cantos do mundo. O inteiro desvelamento deste precioso legado teórico, afastado dos presunçosos proprietários e modos de uso reducionistas, se tornou novamente possível. Entretanto, se Marx não é identificado com a rígida esfinge do ‘socialismo real’ do século XX, ele poderia ser igualmente mal compreendido no sentido que o seu legado político e teórico poderia ser confinado a um passado que não tem mais contribuição aos conflitos correntes, a circunscrever o seu pensamento a um clássico mumificado que não tem relevância hoje ou confinado á especialização acadêmica.
A retomada do interesse em Marx vai muito além de restritos círculos de acadêmicos, como também de importantes pesquisas filológicas, dedicadas a demonstrar a sua diversidade no que se refere ao grande número de intérpretes. A redescoberta de Marx está baseada na sua persistente capacidade de explicar o presente: ele continua um instrumento indispensável para entendê-lo e ser capaz de transformá-lo.
Confrontados com a crise da sociedade capitalista e as profundas contradições que a permeiam, há um retorno ao autor deixado de lado muito rapidamente após 1989. Desde erupção da crise financeira nos Estados Unidos, jornais, revistas e reportagens televisivas e radiofônicas, continuamente discutem Marx, como sendo o mais importante pensador de nosso tempo. Quando ele formulou suas teorias, o capitalismo existia somente nos Estados unidos e Europa – e, excluindo-se a Inglaterra, e outros poucos centros produtivos, havia muita diferença da sua forma atual. Mesmo assim, ele antecipou sua expansão global e a disseminação do trabalho assalariado que posteriormente incluiriam todo o planeta. E precisamente hoje, quando o capitalismo conseguiu um extraordinário desenvolvimento em extensão e intensidade, algumas das análises de Marx estão se revelando ainda mais acuradas que no seu próprio tempo. É suficiente mencionar a importância da acumulação pelas finanças e sistema de crédito, que explicitadas no volume 3 d’O Capital ou as crises de um capitalismo, no qual tendo esgotado sua expansão geográfica, é cada vez mais vítima de suas próprias contradições. Marx parece essencial atualmente e após anos de pensamento único, manifestos pós-modernos uni-ideológicos, teorias superficiais da globalização, solenes discursos sobre o ‘fim da história’ e a obsessão com idéias biopolíticas vazias, o valor da sua teoria está novamente se tornando cada ver mais mundialmente reconhecido.
Além disto, a literatura sobre Marx, que desapareceu há 15 anos, demonstra sinais de ressurgimento em muitos países e, juntamente com o florescimento de novos estudos, existem muitos panfletos escritos em diferentes linguagens com títulos como Por que ler Marx hoje? Um consenso análogo é desfrutado por revistas abertas a discussão de Marx e os vários marxismos, bem como há agora conferências internacionais, cursos universitários e seminários dedicados a este autor. Finalmente, mesmo se timidamente e frequentemente em formas confusas – da América Latina á Europa, passando pelo movimento alter-mundialista – uma nova demanda está sendo registrada em termos políticos.
O que resta de Marx hoje? Qual a utilidade de seu pensamento hoje para a luta pela emancipação da humanidade? Que parte do seu trabalho é mais fértil para estimular a crítica ao presente? Como se poderia ir ‘além de Marx, com Marx’? Estas são algumas das questões que recebem respostas nada unânimes. Se a retomada contemporânea de Marx tem uma certeza, ela consiste precisamente na descontinuidade a respeito ao passado que foi caracterizado pela ortodoxia monolítica que dominou e condicionou profundamente a interpretação deste filósofo. Mesmo marcado pelos limites evidentes e o risco do sincretismo, um período chegou caracterizado por muitos Marxs, de fato, após uma Era de dogmatismo, não poderia ser diferente. A tarefa de responder a estes problemas está então com a pesquisa, teórica e prática, de uma nova geração de acadêmicos e ativistas políticos.
Entre os Marxs que continuam indispensáveis, ao menos dois podem ser identificados. O crítico ao modo capitalista de produção: o analítico, perceptivo, e incansável pesquisador que intuiu e analisou seu desenvolvimento em escala global e descreveu a sociedade burguesa melhor que mingúem. Este é o pensador que recusou conceber o capitalismo e o regime da propriedade privada, como cenários imutáveis para a natureza humana e quem ainda oferece sugestões para quem quer construir alternativas a economia, política e sociedade neoliberal. O outro Marx a quem a maior atenção deve ser prestada, é o teórico do socialismo: o autor que repudiou a idéia de socialismo de Estado, propagada então por Lassalle e Rodbertus; o pensador que entendeu o socialismo como a transformação possível das relações de produção e não como uma variedade de suaves paliativos para o problema da sociedade.
Sem Marx, nós vamos ficar condenados à apatia crítica e parece que a causa da emancipação humana precisa continuar a usá-lo, como a crise financeira internacional recente demonstrou. Este ‘espectro’ está destinado a rondar o mundo e estremecer a humanidade por um bom tempo.
Marcello
Musto