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O Pensamento Vivo do Velho Marx

Entrevista de Romaric Godin e Juarez Guimarâes com Marcello Musto, autor de “Os últimos anos de Karl Marx” (Les Dernières Années de Karl Marx: une biographie intellectuelle 1881-1883), uma biografia intelectual do velho Marx, entre 1881 e 1883, que permite redescobrir um pensador em constante movimento, mais aberto à diversidade do mundo do que se poderia imaginar.

Professor de sociologia na York University, em Toronto, no Canadá, Marcello Musto é um dos pesquisadores mais importantes nos estudos contemporáneos sobre Marx. Este italiano de 47 anos tem se dedicado há anos à pesquisa sobre os últimos anos do pensador de Tréveris, com um estudo sistemático e aprofundado dos escritos publicados na ediçâo completa em alemao que ainda está em andamento, a famosa “MEGA” (Marx-Engels Gesamtausgabe, obras completas de Marx e Engels publicadas em Berlim).

A MEGA publicou os textos de cadernos e esboços escritos entre 1875 e 1883, primeiro em 1985 e mais tarde em 1999, bem como diversos textos de leituras sobre várias ciências naturais, como biologia, mineralogia e agronomia, em 2011. No entanto, esses textos foram amplamente ignorados pelos pesquisadores marxistas.

Para Marcello Musto, esses escritos revelam um Marx em constante atividade intelectual, que corrige, modifica, esclarece e desenvolve suas ideias à luz de novos conceitos, novos interesses e da evoluçao da historia. Essa realidade permite retratar um Marx finalmente mais histórico do que o que conhecíamos — ou seja, mais marxista —, mas também um Marx mais aberto e complexo do que a imagem difundida pela narrativa oficial construida anos após sua morte.

Em um livro publicado pela primeira vez em inglés em 2020 (traduzido sob o título “O velho Marx. Uma biografía de seus últimos anos (1881-1883)” pela Boitempo Editora, 2018), Marcello Musto narra os dois últimos anos da vida do pensador. Uma vida dividida entre dramas familiares, saúde frágil, viagens e estudos intensos que o levaram a preencher dezenas de páginas de cadernos.

O Marx descrito aqui está longe da imagem que o Ocidente herdou ao longo da historia do movimento comunista. Ele é um homem em constante ebuliçao intelectual, que reflete sobre a contribuiçâo das culturas extraeuropeias, o surgimento do poder americano e as questóes ecológicas, entre outras.

Marcello Musto escreveu uma biografia intelectual mais ampla de Marx (Karl Marx: Biografía intelectual e política (1857-1883), Expressao Popular, 2023), e uma introduçao aos textos da Primeira Internacional (Trabalhadores Uni-vos! Antologia Política da I Internacional, Boitempo Editorial/ Editora Fundaçâo Perseu Abramo, 2014). Em 2023, foi editado no Brasil o livro organizado por ele, “O Renascimento de Marx. Principais conceitos e novas interpretaçôes (pela Editora Autonomia Literária), que reúne ensaios de 22 dos mais importantes marxistas contemporáneos que relêm e atualizam as contribuées de Marx para pensar o século XXI. E, no ano passado, organizou os très volumes de “O essencial de Marx e Engels” (Editora Boitempo), os quais contêm ensaios de intelectuais brasileiros, além de uma ampla antologia, com muitos textos inéditos em portugués. Seu trabalho abriu caminho para outras reflexóes, como as do japonés Kohei Saito, e constitui um dos eixos da atual redescoberta de Marx.

Entrevistador: Durante décadas, o debate no pensamento marxista se concentrou no “jovem Marx”, e os últimos anos de Karl Marx foram amplamente esquecidos, mesmo após a publicagao dos novos volumes da MEGA. Como vocé explica isso?

 

Marcello Musto: Durante muito tempo, muitos pesquisadores destacaram os escritos do chamado “jovem Marx”. Como a Segunda Guerra Mundial gerou um profundo sentimento de angùstia resultante das atrocidades do nazismo e do fascismo, o tema da condigao do individuo na sociedade ganhou grande importància, e o interesse filosófico por Marx comegou a crescer em toda a Europa. Esse fenomeno foi particularmente forte na Franga, onde o estudo dos primeiros escritos de Marx (especialmente os Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844 e A Ideología Alema) foi amplamente difundido. Henri Lefebvre afirmou que essa assimilagao foi “o acontecimento filosófico decisivo da época”. Nesse processo bastante diverso, que se estendeu até a década de 1960, muitos autores de diferentes origens culturais e políticas tentaram construir uma síntese filosófica entre marxismo, hegelianismo, existencialismo e pensamento cristao.

Esse debate resultou, em alguns casos, em escritos de baixa qualidade, que distorceram os textos de Marx para alinhá-los as convicgoes políticas dos envolvidos. Raymond Aron ridicularizou justamente a fascinagao de alguns autores pela obscuridade, pelo caráter inacabado e, as vezes, contraditório desses primeiros escritos. Esses textos contém muitas ideias que seriam posteriormente aprimoradas ou até mesmo superadas na obra posterior de Marx. No entanto, é sobretudo em O Capital e em seus rascunhos preliminares, bem como em suas pesquisas dos últimos anos, que estao algumas das reflexoes mais relevantes para a crítica do modo de produgao capitalista nos dias de hoje.

Por muito tempo, foi ignorada a existencia de manuscritos que reuniam as pesquisas dos últimos anos de vida de Marx, especialmente aquelas realizadas no início da década de 1880, e isso impediu o reconhecimento dos importantes avangos que ele fez nesse período. É por isso que todos os seus biógrafos dedicaram tao poucas páginas a sua atividade após o fracasso da Primeira Internacional (a Associagao Internacional dos Trabalhadores – AIT) em 1872. Pensaram, erroneamente, que Marx havia abandonado a ideia de completar sua obra e nao examinaram os arquivos para verificar o que ele realmente fez nesse período (embora a existencia desses textos fosse evidente por meio de sua correspondencia).

Além disso, a maioria desses materiais é difícil de compreender. Sao principalmente esbogos de ideias incluídos em cadernos que Marx preencheu com trechos de livros que estava lendo e com reflexoes inspiradas por essas leituras.

Mas se há algumas justificativas para essas escolhas no passado, os novos materiais disponíveis na MEGA hoje, e o crescente volume de literatura secundária sobre o “Marx tardio” desde a década de 197o, deveriam ter revertido essa tendencia. No entanto, a extensa biografia de Gareth Stedman Jones, Karl Marx: Greatness and Illusion (Penguin, 2016), que examina todo o período de 1872-1883 como um breve epílogo, dedicando tres capítulos e 150 páginas ao período de 1845-49, é apenas um exemplo de pesquisa inadequada. Sem falar no deplorável livro de Jonathan Sperber, Karl Marx: Uma vida do Sáculo XIX (traduzido para o portugués pela Amarilys Editora em 2014), que simplesmente ignora os últimos textos de Marx.

 

Entrevistador: Com que objetivo vocé realizou essa pesquisa sobre o fim da vida de Marx?

 

Marcello Musto: Uma das principais razoes para minha pesquisa é me opor as más interpretagoes de Marx, como um autor eurocéntrico, economicista e que reduziria tudo as oposigoes de classes — interpretagoes que estao na moda hoje. Nao é preciso dizer que aqueles que defendem essa tese nunca leram Marx ou ainda estao apegados as interpretagoes mecanicistas que prevaleciam nos manuais marxistas-leninistas que leram na juventude.

Marx realizou extensas pesquisas sobre as sociedades nao europeias e sempre se manifestou inequivocamente contra os estragos do colonialismo. Essas consideragoes sao absolutamente evidentes para qualquer pessoa que tenha lido Marx, apesar do ceticismo de certos círculos académicos que o descrevem como um estrangeiro ao pensamento decolonial e o associam a um pensador liberal. Por exemplo, quando Marx escreveu sobre a dominagao británica na Índia (depois dos escritos jornalísticos da década de 1850, ele voltou ao tema em 1881), afirmou que os colonizadores ingleses só haviam sido capazes de “destruir a agricultura indígena e duplicar o número e a intensidade das fomes”.

Nos seus últimos anos, Marx acreditava que o desenvolvimento do capitalismo em todos os lugares nao era uma condigao para a revolugao: ela também poderia comegar fora da Europa. A “ductilidade” [capacidade de se adaptar sem quebrar – ed.] teórica de Marx é muito diferente das posigoes de alguns de seus discípulos e contribui para a nova onda de interesse por suas teorias, desde o Brasil até a Ásia.

 

Entrevistador: A impressaci que temos ao ler seus textos é a de um intenso trabalho intelectual durante esse período. Mas isso nao resultou nem na publicagao nem na redagao do segundo livro de O Capital. Como explicar essa incapacidade de Marx em finalizar sua obra?

 

Marcello Musto: A constante má saúde de Marx, somada às suas preocupagóes cotidianas, teve um papel significativo na sua incapacidade de finalizar parte da pesquisa realizada durante seus últimos anos. Mas também é importante destacar que seu rigoroso método e sua autocrítica implacável aumentaram as dificuldades para concluir muito do que havia empreendido.

Isso já ocorria quando ele era mais jovem, quando deixou muitos de seus manuscritos inacabados, e voltou a se repetir no final de sua vida. Sua paixao pelo conhecimento permaneceu intacta ao longo do tempo e sempre o levou a novos estudos. Por essa razao, no final da década de 1870, ele iniciou uma nova pesquisa sobre bancos e comércio e, até o inicio de 1881, escreveu novas versóes de diferentes partes do volume 2 de O Capital, especialmente com relagao a um estudo que havia feito considerando que as representagóes monetárias eram apenas uma simples cobertura do conteúdo real das relagóes monetárias.

Um exemplo semelhante sao os estudos que ele realizou sobre agronomia, geologia e propriedade da terra na Rùssia e nos Estados Unidos. Ele os realizou para reescrever completamente a segao sobre a renda da terra no volume 3 de O Capital, já que Marx nao estava satisfeito com o que havia escrito anteriormente. Finalmente, outras dificuldades acompanharam o trabalho de revisao do volume I, como demonstra o tempo que Marx levou para revisar a tradugao francesa de Joseph Roy, publicada entre 1872 e 1875.

Além de seus estudos específicos, um grande obstáculo para a conclusao de O Capital foi o fato de que Marx aprofundou seu conhecimento sobre o desenvolvimento económico da Rùssia e dos Estados Unidos. Isso exigiu um esforgo considerável, o que tornou seu objetivo ainda mais difícil de alcangar. A partir de 1878, Marx estudou os relatórios do Escritorio de Estatísticas de Ohio e, pouco depois, voltou sua atengao para a Pensilvània e Massachusetts. Ele planejava acompanhar as dinámicas do modo de produgao capitalista em uma escala mais global nos volumes de O Capital que ainda estavam por escrever. Se a Inglaterra foi o cenário principal do volume I, os Estados Unidos poderiam ter representado um novo campo de observagao que lhe permitiria ampliar seu trabalho.

Ele se concentrou em examinar mais de perto as formas como o modo de produgao capitalista se desenvolvia em diferentes contextos e períodos. Por exemplo, Marx estava particularmente interessado no desenvolvimento das sociedades por agoes e no impacto da construgao de ferrovias na economia. Segundo ele, as ferrovias haviam impulsionado a concentragao de capital de uma forma nunca antes imaginada, especialmente em países onde o capitalismo ainda estava subdesenvolvido.

O mesmo ocorreu com os empréstimos de capital, que se tornaram uma atividade cosmopolita, rapidamente envolvendo o mundo inteiro e criando uma rede de fraudes financeiras e dividas mútuas. Levou tempo para que Marx compreendesse esses fenómenos, e ele estava muito consciente da magnitude da tarefa que tinha pela frente. Ele nao apenas precisava revisar algumas partes de seus manuscritos e melhorar seu conteúdo, mas também enfrentava uma tarefa ainda mais urgente: resolver os problemas teóricos que permaneciam sem solugáo. Somente a energia que ele tinha na década de 1850, quando escreveu os Grundrisse (e os estudos relacionados às teorias da mais-valia), teria permitido que ele realizasse essa nova e gigantesca tarefa que ele pròprio havia se imposto.

Entrevistador: Uma das questoes centráis dos dois anos que voce descreve em seu livro é a da Rùssia e, de forma mais ampia, o vínculo entre capitalismo e socialismo. Com a famosa carta a Véra Zassoulich de 1881, Marx deixa de ser eurocèntrico? E, a partir de entao, Engels nao conseguiu compreender esse movimento dentro do pensamento de Marx?

Marcello Musto: A partir de 1870, após aprender a ler russo, Marx iniciou um estudo sério sobre as mudangas socioeconómicas que estavam ocorrendo na Rùssia. Foi assim que ele conheceu o trabalho de Nikolay Chernyshevsky, figura principal do “populismo” russo (na época, esse termo tinha uma conotagáo de esquerda e anticapitalista). Ao estudar essa obra, Marx descobriu ideias originais sobre a possibilidade de que, em algumas partes do mundo, o desenvolvimento económico pudesse ocorrer sem precisar necessariamente passar pelo modo de produgáo capitalista — e todas as suas terriveis consequencias para a classe trabalhadora na Europa Ocidental.

Chernyshevsky escreveu que nem todos os fenómenos sociais precisavam, necessariamente, seguir todas as etapas lógicas do desenvolvimento social na pràtica. Consequentemente, as características positivas da comuna rural russa (obchtchina) deveriam ser preservadas, mas só poderiam garantir o bem-estar das massas camponesas se fossem inseridas em um contexto produtivo diferente. A obchtchina só poderia contribuir para uma etapa inicial da emancipagáo social se se tornasse o embriáo de uma nova organizagáo social radicalmente diferente. Sem as descobertas científicas e as inovagóes tecnológicas associadas ao surgimento do capitalismo, a obchtchina nunca poderia se transformar em uma experiencia moderna de cooperagáo agricola, um elemento relevante para uma futura sociedade socialista.

Quando Vera Zassoulich perguntou a Marx, em 1881, se a obchtchina estava destinada a desaparecer ou se poderia se transformar em uma forma socialista de produgáo, Marx defendeu um ponto de vista critico sobre o processo de transigáo das formas comunais do passado para o capitalismo. Ele náo acreditava que o capitalismo fosse um passo necessàrio para a Rùssia. Marx náo acreditava que a obchtchina estivesse condenada a seguir o mesmo destino que as terras comunais do mesmo tipo na Europa Ocidental nos séculos anteriores, onde a transformagáo de uma sociedade baseada na propriedade comum para uma sociedade baseada na propriedade privada ocorreu de forma mais ou menos uniforme. Portanto, a acusagáo de eurocentrismo (um dos principais argumentos de quem hoje se opóe ao “retorno de Marx”) nao se sustenta. As interpretagóes unilaterais e superficiais de Marx, como as de Edward Said, foram desmontadas por pesquisas mais rigorosas realizadas nos últimos quinze anos.

Quanto a Engels, acredito que, no final de sua vida, ele se tornou excessivamente passivo na aceitagáo do curso da história (e caiu na ilusáo de sua suposta tendencia progressista). A dúvida de Marx foi substituida pela convicgáo de que, mesmo em um pais como a Rùssia, o capitalismo era um passo indispensável no desenvolvimento económico. É claro que a Rússia estava mudando muito e rapidamente. Afinal, foi também por isso que Marx foi muito cauteloso em sua resposta a Zassoulitch e decidiu publicar apenas uma pequeña parte dessa carta. Nao é preciso dizer que a Rùssia do inicio da década de 1880 nao pode ser comparada ao que ela se tornou na época de Lenin.

Entrevistador: Em seu último livro, o pesquisador japonés Kohei Saito, que também o cita, defende a ideia de um “corte epistemológico” na obra de Marx após a publicaçâo, em 1867, do volume I de O Capital. Um corte que mudaria completamente sua visâo do socialismo. Vocé concorda com essa ideia?

Marcello Musto: Nâo, eu discordó. Sempre fui cético em relaçâo às interpretaçôes à la Louis Althusser, nas quais os imaginários “cortes” dividiriam a obra de Marx em várias partes. Nâo existem dois ou très Marx, mas sim um único autor — muito rigoroso e autocrítico — que desenvolve constantemente suas ideias. A abertura teórica do “último” Marx, que o leva a considerar outros caminhos para o socialismo, nâo deve ser confundida com uma mudança drástica em relaçâo aos seus escritos anteriores.

No passado, autores como Haruki Wada, Enrique Dussel e outros defenderam uma leitura supostamente “terceiromundista” do último Marx, sugerindo até que, a partir de determinado momento, para ele, o sujeito revolucionário deixou de ser o trabalhador fabril para se tornar as massas camponesas e periféricas.

Marx certamente estava mais atento às especificidades históricas e às divergências no desenvolvimento económico e político em diferentes contextos nacionais e sociais, e é por isso que ele continua sendo muito útil para compreender o chamado “Sul Global”. No entanto, as ideias de Marx sempre estiveram em total oposiçâo às de pessoas como Alexander Herzen [1812-1870, outro pensador populista russo que defendia um socialismo baseado em pequenas comunas independentes formadas por individuos livres unidos pelo panslavismo — ed.], para citar apenas um exemplo. A possibilidade de uma revoluçâo na Rússia nâo poderia se inscrever no panslavismo, levando em conta tanto as formas necessárias de conquista do poder político quanto as condiçôes indispensáveis para o nascimento de uma sociedade pós- capitalista.

 

Entrevistador: Parece-nos fundamental esta sua recusa em relaçâo às teses da ruptura na evoluçâo do pensamento de Marx, aquela que opôe a obra dita científica de “O Capital” às suas obras de juventude ou ainda aquelas que ressaltam o humanismo nos primeiros trabalhos de Marx como se “O Capital” nâo revelasse também explícitamente uma crítica radical de inspiraçâo humanista à dinámica do capitalismo. Esta recusa lhe levaria a pensar em uma unidade de sentido na obra de Marx em meio a um processo continuo de elaboraçâo e aprofundamento de seus conceitos críticos do capitalismo?

 

Marcello Musto: Trata-se da velha polémica ligada ao bem-sucedido livro Pour Marx, de Louis Althusser, e ao conceito, por ele tomado do filósofo francés Gaston Bachelard, de rupture épistémologique (ruptura epistemológica). Mesmo após as numerosas críticas recebidas, Althusser permaneceu convicto da existència de “dois Marx”, o Marx jovem-filosófico e o Marx maduro-científico. No artigo Resposta a John Lewis, publicado em 1972 na revista inglesa Marxism Today, ele admitiu alguns erros contidos em Pour Marx, mas reafirmou a ideia de que a elaboraçâo teórica de Marx havia sido dividida por um ponto de separaçâo:

‘Se se considera o conjunto da obra de Marx, nao há dúvida de que existe uma “ruptura” ou um “corte” a partir de 1845. O pròprio Marx o diz. […] Toda a obra de Marx demonstra isso. […] A “ruptura epistemológica” é um ponto sem retorno. […] É verdade que ele utiliza o termo alienarlo em várias ocasioes. Mas tudo isso desaparece completamente nos últimos textos de Marx e em Lenin: completamente’.

Na realidade, a alienagáo constituiu, nao só nos Manuscritos económico-filosóficos de 1844, mas também em O Capital e em seus manuscritos preparatórios, um importante conceito teórico para descrever criticamente as características do trabalho e das relagoes sociais na realidade economico-produtiva capitalista. Além disso, ao contràrio do que afirmou Althusser, Marx nunca escreveu, nem insinuou, a presenga de qualquer “ruptura” dentro de sua obra. Muito menos é pensável estabelecer uma espécie de continuidade teórica e política entre o pensamento de Marx e o de Lenin, como avangado pelo filósofo francés, e usar como prova da suposta “ruptura epistemológica” de Marx a falta de tratamento do tema da alienagáo por Lenin.

O cerne da questáo náo é negar as enormes transformagóes ocorridas no pensamento de Marx (o mesmo pode ser dito para muitos outros autores) ao longo de sua maturagáo e após a chegada à economia política, mas, sim, ter teorizado a existéncia de uma cisáo rígida, como consequéncia da qual os Manuscritos económico-filosóficos de 1844 e os outros escritos anteriores a A Ideologia Alema foram considerados estranhos ao marxismo e náo parte integrante do seu desenvolvimento.

 

Entrevistador: Qual pode ser a importancia da descoberta dos últimos anos de Marx para o legado de seu pensamento nos dias de hoje? Por que, mesmo inacabado, ele ainda é um pensamento crucial para compreender nosso tempo?

Marcello Musto: Durante esse período, Marx aprofundou muitas outras questoes que, no passado, foram subestimadas ou até ignoradas pelos pesquisadores, mas que sao de importáncia crucial para a agenda política atual.

A importáncia que Marx atribuiu a questáo ecológica está no centro de alguns dos principais estudos dedicados á sua obra nas últimas duas décadas. Em diversas ocasioes, ele denunciou o fato de que a expansáo do modo de produgáo capitalista náo apenas intensificava a exploragáo da classe trabalhadora, mas também promovia o saque dos recursos naturais. Em O Capital, Marx observa que, quando o proletariado estabelecer um modo de produgáo comunista, a propriedade privada do planeta por indivíduos parecerá táo absurda quanto a propriedade privada de seres humanos por outros seres humanos.

Marx também se interessou muito pela questáo da migragáo e, entre suas últimas anotagoes, há escritos sobre o pogrom ocorrido em Sao Francisco em 1877 contra imigrantes chineses. Marx enfrentou os demagogos antichineses que afirmavam que os imigrantes “iriam matar de fome os proletários brancos” e se opós áqueles que tentavam impor posigoes xenófobas á classe trabalhadora. Pelo contrário, Marx demonstrou que o deslocamento forgado do trabalho, promovido pelo capitalismo, era um elemento essencial da exploragáo burguesa e que a chave para combaté-lo estava na solidariedade de classe entre os trabalhadores, independentemente de suas origens e sem distingáo entre trabalho local e “importado”.

Poderia continuar com muitos outros exemplos sobre a crítica ao nacionalismo, a liberdade individual na esfera económica e também a emancipagáo de género.

Marx ainda tem muito a nos ensinar, e a última fase de sua vida intelectual nos ajuda a compreender o quanto ele é indispensável para repensar uma alternativa ao capitalismo — algo que é ainda mais urgente hoje do que na sua época.

 

Entrevistador: Como interpretar este inacabamento de “O Capital”, no sentido da recusa tanto á sua leitura dogmática como a sua denegagao enquanto uma obra crítica de uma sociedade capitalista histórica, típica do século XIX, e que já ficou para trás? Quais seriam, na sua opiniao, em um sentido geral, as principais linhas de atualizagao desta obra que continua sendo certamente uma referencia fundamental da crítica ao capitalismo enquanto civilizagao?

Marcello Musto: O Capital tornou-se um projeto teórico tao grande que pode ser considerado quase impossível para um único ser humano. O espirito crítico com o qual Marx compós sua obra-prima revela o quao distante ele estava do autor dogmático que muitos de seus adversários e autoproclamados discípulos apresentaram ao mundo. Embora tenha permanecido inacabada, aqueles que hoje desejam utilizar conceitos teóricos essenciais para a crítica ao modo de produgao capitalista ainda nao podem prescindir da leitura de O Capital de Marx.

 

Entrevistador: Em um apéndice do seu livro O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) [Boitempo, 2018] está documentada a participaçâo decisiva de Marx na redaçâo do Programa da Federaçâo do Partido dos Trabalhadores Socialistas da França, junto a Paul Lafargue. Nele se defende que a classe trabalhadora devia lutar contra todo tipo de discriminaçâo, particular a racial e a de género, e dedicar-se a por fim à subordinaçâo das mulheres em relaçâo aos homens. Como esta crítica à dominaçâo patriarcal, em sua opiniâo, aparece na obra de Marx?

 

Marcello Musto: Nao é verdade, como se lê frequentemente, que Marx fosse indiferente a esse tema. Embora, em algumas ocasiòes – como, por exemplo, em relaçâo ao trabalho feminino nas fábricas – tenha manifestado uma visâo da sociedade pròpria das ideias de sua época, Marx e Engels aprenderam, desde jovens, com os livros dos primeiros socialistas franceses, em particular de Charles Fourier, que “o nivel de emancipaçâo geral de uma sociedade depende do nivel de emancipaçâo das mulheres”. A atençâo deles a essa questào pode ser observada em vários escritos, entre os quais se destacam os Manuscritos económico-filosóficos de Marx de 1844, A Ideologia Alemâ de Marx e Engels, Os Principios do Comunismo de Engels e O Manifesto Comunista de Marx e Engels.

No Programa Eleitoral dos Trabalhadores Socialistas, redigido em 1880 com Jules Guesde e Paul Lafargue, encontra-se claramente argumentado que a classe trabalhadora deveria lutar contra todo tipo de discriminaçâo e empenhar-se para por fim à subordinaçâo das mulheres em relaçâo aos homens: “a emancipaçâo da classe produtiva é a de todos os seres humanos, sem distinçâo de sexo e de raça”. Além disso, anunciava-se que o proletariado lutava pela “igualdade de salàrio para o mesmo trabalho entre trabalhadores de ambos os sexos”. Nâo obstante, foi Jenny von Westphalen quem, em uma carta a Wilhelm Liebknecht de 1872, representou a condiçâo feminina da época – e explicou como as diferenças de gènero pesavam também na batalha pelo socialismo – melhor do que o marido Marx e o amigo Engels: “A nós mulheres cabe a parte mais dura, porque a mais mesquinha. O homem se tempera na luta contra o mundo exterior, se tempera cara a cara com os inimigos, enquanto nòs – sejam os inim igos até uma legiâo – temos que ficar fechadas em casa a remendar meias. Isso nâo afasta as preocupaçôes e as pequenas misérias cotidianas consomem, lentamente, mas de maneira implacável, a força e a alegria de viver”.

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Ruan de Sousa Gabriel, O Globo

Em 20 de outubro de 2008, no início da maior crise financeira desde a Grande Depressão, o jornal londrino The Times, insuspeito de esquerdismo, noticiou um espectro que se supunha exorcizado desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, voltava a rondar o mundo: Karl Marx. “O Capital”, dizia a reportagem, “que na última década vinha sendo usado principalmente como peso de porta”, fora reabilitado por leitores que buscavam entender a raiz da crise. Quase duas décadas depois, os efeitos da debacle econômica ainda não passaram — e nem o interesse nas ideias do velho Marx. Tanto é que uma tradução do “Capital” produzida na Guerra Fria acaba de retornar às estantes do país.

No dia 5 de maio (aniversário de Marx), a editora Ubu relançou a célebre tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe, publicada em 1983 na coleção “Os economistas”, da Abril Cultural. Totalmente revisada, a nova edição inclui as modificações de Marx na tradução francesa, de 1875, até agora inéditas no Brasil. Ele incorporou observações críticas ao texto, acrescentou material histórico e estatístico, reposicionou parágrafos e capítulos inteiros, indicando que sua reflexão estava longe de encerrada. O primeiro volume do “Capital” foi publicado em 1867. O segundo e o terceiro foram editados por Friedrich Engels em 1885 e 1894, após a morte de seu parceiro intelectual.

Para José Paulo Netto, autor de “Karl Marx: uma biografia” (Boitempo) “O Capital” é, por excelência, “uma obra inconclusa”:

— “O capital” permanecerá inacabado enquanto seu objeto de análise, o modo de produção capitalista, não se esgotar historicamente. É isso que define um clássico, ele não cessar de provocar, de estimular — insiste o professor emérito da UFRJ.

E “O capital” é um clássico que não interessa apenas a quem sonha com a superação do capitalismo, diz Fernando Rugitsky, professor de economia da Universidade do Oeste da Inglaterra. Até o austríaco Joseph Schumpeter, crítico da intervenção estatal na economia, foi um grande leitor e intérprete do Marx.

— “O capital” contém tensões internas e ambiguidades que convidam a múltiplas leituras. É uma obra que buscou desvendar a dinâmica de uma sociedade que se organiza em torno da troca de mercadorias e que ganha atualidade à medida que a mercantilização avança sobre diferentes esferas da vida — afirma Rugitsky, que escreveu um texto introdutório à nova edição.

Fundadora da Boitempo, Ivana Jinkings relata que a procura pela “Coleção Marx-Engels” cresceu na pandemia. Ao todo, os 36 volumes da coleção já bateram quase meio milhão de cópias vendidas (incluindo e-books). Em dezembro, a editora publicou “O essencial de Marx e Engels”, seleção do “best of” da dupla (“Manifesto comunista”, “Teses sobre Feuerbach”, feita pelo sociólogo italiano Marcello Musto. Ainda este ano, a editora publica o primeiro volume de “Teorias do mais-valor”, obra considerada uma espécie de continuação do “Capital”.

— A Boitempo nasceu há 30 anos com a ideia de publicar clássicos nunca lançados no Brasil ou fora de catálogo. A tradução do “Manifesto comunista”, em 1998, deu início a uma mudança de rota. Notamos a enorme carência da obra de Marx e Engels nas livrarias. Hoje celebramos o crescente interesse nessa obra por parte do público e das editoras — afirma Jinkings. — Para nós, publicar Marx e Engels é também um projeto social e político.

De fato, nem sempre houve tanta fatura de marxismo nas livrarias. Nascido em 1947, em Juiz de Fora, José Paulo Netto recorda-se das antologias da editora Vitória, ligada ao Partido Comunista, que traziam traduções de segunda mão de textos de Marx e Engels. Quem se dispunha a desbravar “O capital” e não sabia alemão recorria a traduções francesas ou à do Fondo de Cultura Económica do México, assinada por Wenceslao Roces, intelectual exilado da Guerra Civil Espanhola.

A primeira tradução nacional do “Capital”, de Reginaldo Sant’Anna, foi publicada entre 1968 e 1974. Em 1983, saiu a de Flávio R. Kothe e Regis Barbosa, coordenada e revisada por Paul Singer, que fixou o vocabulário marxista brasileiro. De 2013 a 2017, a Boitempo lançou a tradução de Rubens Enderle, que inovou ao substituir “mais-valia” por “mais-valor”, expressão mais próxima do alemão “Mehrwert”.

— Mais-valia, na verdade, vem da tradução francesa “plus-value”. Discutimos se devíamos mudar para “mais-valor” e o Singer argumento que mais-valia já era um conceito estabelecido. Eu achava que devia ser “valor a mais”, uma solução mais próxima da lógica do português. — diz Kothe, que é professor aposentado de estética da UnB.

A tradução agora recuperada pela Ubu se beneficiou das discussões travadas nos míticos seminários do “Capital” organizados a partir de 1958 por jovens intelectuais da USP, como José Arthur Giannotti, Roberto Schwarz e Paul Singer. Em “Lugar periférico, ideias modernas”, o sociólogo Fabio Mascaro Querido analisa o impacto da recepção paulista da obra de Marx no pensamento crítico brasileiro.

Os seminários na USP, diz Querido, são um exemplo do que Max Weber, um dos pais da sociologia, chamou de “paradoxo das consequências”. Embora o grupo tenha optado por uma leitura “científica” do “Capital”, que não estivesse explicitamente comprometida com a intervenção no presente (como faziam intelectuais ligados ao Partido Comunista ou ao nacional-desenvolvimentismo), jovens sociólogos como FHC e Octavio Ianni incorporaram o marxismo às suas pesquisas sobre a sociedade brasileira.

— Assim surgiu o que Roberto Schwarz chamou de “nova intuição do Brasil”, uma interpretação influenciada pelo marxismo que marcou profundamente a vida intelectual e, a partir dos anos 1980, a política do país. — afirma o professor da Unicamp, lembrando que esses debates influenciaram até mesmo a criação dos dois partidos que dominaram a política nacional após a redemocratização, o PT e o PSDB.

Na mesma época em que o Brasil encerrava a ditadura, o comunismo cambaleava na Europa e o marxismo caía em descrédito. Após um momento de “perplexidade”, diz José Paulo Netto, a esquerda apostou “na revitalização de textos clássicos de Marx e Engels” e discussões sobre a cultura. Intelectuais feministas, como Silvia Federici e Nancy Fraser, também chamaram o alemão para conversar (e o criticaram por desconsiderar a importância do trabalho doméstico), lembra Fernando Rugitsky. E a crise de 2008 trouxesse o “Capital” de volta à discussão econômica.

— Qualquer crítica à ordem social vigente tem que começar pela crítica da economia política, e ninguém fez isso melhor que Marx. Sem ele, não é possível pensar soluções efetivas às questões contemporâneas. Do contrário, nosso papo pode até ser radical, mas a prática não será — provoca Netto.

Rugitsky recomenda a leitura do “Capital” tanto a quem se esforça para entender decisões supostamente erráticas de Donald Trump quanto a jovens angustiados com a crise climática e que não veem perspectivas de futuro.

— A obsessão de Marx foi mostrar que as sociedades humanas são sempre produtos históricos. Por maiores que sejam os desafios do presente, é bom lembrar que nosso modelo de sociedade, que foi criado num certo período, se transformou de diferentes maneiras (muito bem descritas no “Capital”, aliás) e dificilmente durará para sempre. Seu destino está em aberto.

Karl Marx em seu tempo

1818: Nasce em Trier, na atual Alemanha.
1842: Conhece Friedrich Engels na redação da Gazeta Renana, jornal de Colônia para o qual escrevia.
1843: Casa-se com Jenny von Westphalen e redige sua “Crítica da filosofia do Direito de Hegel”.
1848: Em parceria com Engels, publica “O manifesto comunista”.
1849: Expulso da Alemanha e da França, muda-se com a família para Londres. A ajuda de Engels alivia suas dificuldades financeiras.
1867: Publica o primeiro volume do “Capital”.
1883: Morre, em Londres, deixando incompleto o projeto do “Capital”. O segundo e o terceiro volumes são editados por Engels em 1885 e 1894.

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Álvaro Cortina, El Español

En el entorno familiar, a Karl Marx se le llamaba el Moro y Old Nick, es decir, Diablo. El especialista Marcello Musto (Nápoles, 1976), catedrático en sociología en Toronto, ha contado, con nutrido rigor de notas al pie, los últimos tres años de quien escribió El capital. Realmente, 1881, 1882 y 1883 no fueron años dichosos para él.

El desarrollo de la Asociación Internacional de los Trabajadores y las reediciones y traducciones de su citada obra magna en el curso de la década anterior le habían otorgado una cierta notoriedad al apátrida alemán afincado en Londres norte, pero no se había impuesto aún en prestigio sobre otros intelectuales socialistas o revolucionarios del tiempo, como Lassalle, Louis-Auguste Blanqui, Proudhon o Bakunin.

En el entorno familiar, a Karl Marx se le llamaba el Moro y Old Nick, es decir, Diablo. El especialista Marcello Musto (Nápoles, 1976), catedrático en sociología en Toronto, ha contado, con nutrido rigor de notas al pie, los últimos tres años de quien escribió El capital. Realmente, 1881, 1882 y 1883 no fueron años dichosos para él.

El desarrollo de la Asociación Internacional de los Trabajadores y las reediciones y traducciones de su citada obra magna en el curso de la década anterior le habían otorgado una cierta notoriedad al apátrida alemán afincado en Londres norte, pero no se había impuesto aún en prestigio sobre otros intelectuales socialistas o revolucionarios del tiempo, como Lassalle, Louis-Auguste Blanqui, Proudhon o Bakunin.

En Inglaterra, Marx “seguía siendo casi desconocido” (p. 122). En Los últimos años de Karl Marx, Musto facilita pormenores de las lecturas, viajes (sur de Francia, Montecarlo, isla de Wight, Argelia, Suiza) de este tiempo. También recuerda tres tragedias que golpearon al genio demónico, entonces emergente y declinante a partes iguales: la muerte de su esposa, de su hija y la suya propia. Pero el objeto último del trabajo es eminentemente filosófico.

El empeño principal del volumen es mostrar que Marx fue un filósofo crítico, más que dispuesto a revisar sus propias doctrinas. Según Musto, el marxismo ha olvidado, en muchas ocasiones, este espíritu. Según el exégeta, el Marx final fue un autor más empírico que apriorista.

Libros esenciales de y sobre Marx
¿Qué escribe el socialista “científico”, el políglota polímata, en este período?Los apuntes etnológicos,Los manuscritos matemáticos,Notas sobre la reforma de 1861 y sobre el consiguiente desarrollo en Rusia, el “Prólogo” a la edición rusa del Manifiesto del partido comunista, una cronología comentada de la historia universal e innumerables cartas dirigidas, entre muchos otros, a su mítico amigo y colaborador Engels.

Pues bien, según Musto (p. 116), ni la Segunda Internacional ni el mismísimo Engels (por no hablar de intérpretes posteriores) discurrieron siempre según los estrictos parámetros demarcados por Marx tras su muerte por colapso cardiaco, provocado por tuberculosis pulmonar, el 14 de marzo de 1883.

“Es sintomático que Marx nunca diera por concluido El Capital. Según Musto, no deberíamos dar carpetazo hoy a estos asuntos”

Las dos ideas principales que es preciso mencionar aquí son el fatalismo economicista y paradigma eurocéntrico. Ambas van ligadas: Marx las terminó cuestionando. Tomando como modelo las historias económicas de naciones como Inglaterra, Alemania o Francia, el joven Marx había diseñado una serie de leyes de desarrollo civilizatorio en una serie de estadios (Fase 1, Fase 2…), en la línea de las inquietudes de su siglo. Así pues, sólo advendría el movimiento final de la sinfonía (supresión de clases), tras el desarrollo del capitalismo industrial y maquinista.

Ahora bien, al parecer, el Marx posterior no creyó en la “aceptación pasiva del rumbo de la historia” (Ibid.). Más aún: “Rechazó las rígidas representaciones que ligaban los cambios sociales solamente a las transformaciones económicas.

Por el contrario, defendió las especificidades de las condiciones históricas, las múltiples posibilidades que ofrecía el paso del tiempo y el protagonismo de la intervención del hombre a la hora de modificar las condiciones existentes y hacer realidad el cambio” (p. 58).

Así, tras leer ingentes masas de papel escrito sobre historia de la propiedad, advirtió que la realidad positiva era todavía más compleja que sus teorías. ¿Nos resistiremos a recordar que, según la sabiduría popular, más sabe el Diablo por viejo que por Diablo? Es sintomático, sostiene Musto, que Marx nunca diera por concluido El capital. Según él, de ninguna manera deberíamos dar carpetazo a estos asuntos en el siglo XXI.

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The Theoretical Revolutions of the Young Marx

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Por que Karl Marx continuou retrabalhando no Capital

Não importa quantas décadas se passem desde que O Capital de Karl Marx foi publicado pela primeira vez, nem mesmo o quanto essa obra seja descartada como desatualizada, ela retorna repetidamente ao centro do debate. Com veneráveis 158 anos de idade (foi publicada pela primeira vez em 14 de setembro de 1867), a “crítica da economia política” tem todas as virtudes dos grandes clássicos: estimula novos pensamentos a cada releitura e é capaz de ilustrar aspectos cruciais de nosso presente e de nosso passado.

Um grande mérito d’O Capital é que ele nos ajuda a colocar os desenvolvimentos do momento atual em uma perspectiva histórica adequada. O famoso escritor italiano Ítalo Calvino disse que uma das razões pelas quais um clássico é um clássico é que ele nos ajuda a “relegar os acontecimentos atuais ao nível do ruído de fundo”. Tais trabalhos apontam para questões essenciais que não podem ser contornadas, a fim de compreendê-las adequadamente e encontrar um caminho através delas. É por isso que os clássicos sempre despertam o interesse de novas gerações de leitores. Permanecem indispensáveis, apesar da passagem do tempo.

Isso é exatamente o que podemos dizer d’O Capital, 158 anos após ser publicado pela primeira vez. De fato, tornou-se ainda mais poderoso à medida que o capitalismo se espalha para todos os cantos do planeta — e se expande para todas as esferas de nossa existência.

Depois que a crise econômica eclodiu em 2007–8, a redescoberta do magnum opus de Marx foi uma necessidade real — quase uma espécie de resposta emergencial ao que estava acontecendo. Se a grande obra de Marx tivesse sido esquecida após a queda do Muro de Berlim, ela forneceria chaves ainda válidas para entender as verdadeiras causas da loucura destrutiva do capitalismo. Assim, enquanto os índices do mercado de ações mundial queimaram centenas de bilhões de dólares e inúmeras instituições financeiras declararam falência, em apenas alguns meses O Capital vendeu mais cópias do que nas duas décadas anteriores.

Pena que o renascimento d’O Capital não se cruzou com o que restou das forças da esquerda política. Ela se iludiu pensando que poderia mexer em um sistema que estava cada vez mais mostrando sua irreformabilidade. Quando entrou no governo, adotou medidas paliativas leves que não fizeram nada para diminuir a crise ecológica em curso e as desigualdades socioeconômicas cada vez mais dramáticas. Os resultados dessas escolhas estão aí para todos verem.

Mas o atual renascimento d’O Capital respondeu a outra necessidade: a de definir — também graças a uma série de estudos recentes — exatamente qual é a versão mais confiável do texto ao qual Marx dedicou a maior parte de seus trabalhos intelectuais. Essa é uma questão há muito não resolvida, resultante da maneira como Marx produziu e refinou seu estudo.

As Muitas Versões do Volume I

A intenção original do revolucionário alemão, ao redigir o primeiro manuscrito preparatório (os Grundrisse, de 1857–58), fora dividir sua obra em seis volumes. Os três primeiros deveriam ser dedicados ao capital, à propriedade da terra e ao trabalho assalariado; os últimos, ao Estado, ao comércio exterior e ao mercado mundial.

Ao longo dos anos, a crescente percepção de Marx de que um plano tão vasto era impossível de realizar o forçou a desenvolver um projeto mais prático. Ele pensou em deixar de fora os três últimos volumes e integrar algumas partes dedicadas à propriedade da terra e ao trabalho assalariado no livro sobre o capital. Este último foi concebido em três partes: o Volume I seria dedicado ao Processo de Produção de Capital; o Volume II, ao Processo de Circulação de Capital, e o Volume III, ao Processo Geral da Produção Capitalista. A estes se acrescentaria um Volume IV — dedicado à história da teoria — que, no entanto, nunca foi iniciado e é, muitas vezes, confundido erroneamente com as Teorias da Mais-Valia.

Como é sabido, Marx completou apenas o Volume I. O segundo e o terceiro volumes não viram a luz do dia antes de sua morte; apareceram em 1885 e 1894, respectivamente, graças a um enorme esforço editorial de Friedrich Engels.

Se os estudiosos mais rigorosos questionaram repetidamente a confiabilidade desses dois volumes, compostos com base em manuscritos inacabados e escritos fragmentados com anos de diferença e que continham inúmeros problemas teóricos não resolvidos, poucos se dedicaram a outra questão, não menos espinhosa: se havia de fato uma versão final do Volume I.

A disputa voltou ao centro das atenções de tradutores e editores e, nos últimos anos, muitas novas edições importantes d’O Capital surgiram. Em 2024, alguns deles foram lançados no Brasil, na Itália e nos Estados Unidos, onde a Princeton University Press publicou na segunda semana de setembro a primeira nova versão em inglês em cinquenta anos (a quarta no geral) graças ao tradutor Paul Reitter e ao editor Paul North.

Publicado em 1867, após mais de duas décadas de pesquisa preparatória, Marx não estava totalmente satisfeito com a estrutura do volume. Ele acabou dividindo em apenas seis capítulos muito longos. Acima de tudo, Marx estava descontente com a maneira como expôs a teoria do valor, a qual foi forçado a dividir em duas partes: uma no primeiro capítulo e outra em um apêndice escrito às pressas após a entrega do manuscrito. Assim, a escrita do Volume I continuou a absorver as energias de Marx mesmo após ser publicado.

Em preparação para a segunda edição, vendida em partes entre 1872 e 1873, Marx reescreveu a seção crucial sobre a teoria do valor, inseriu várias adições sobre a diferença entre capital constante e variável e sobre a mais-valia, bem como sobre o uso de máquinas e tecnologia. Ele também remodelou toda a estrutura do livro, dividindo-o em sete partes, compreendendo vinte e cinco capítulos cuidadosamente divididos em seções.

Marx acompanhou de perto o processo da tradução russa (1872) e dedicou ainda mais energia à versão francesa, que apareceu — também em partes — entre 1872 e 1875. Ele teve que gastar muito mais tempo do que o esperado revisando a tradução. Insatisfeito com o texto excessivamente literal do tradutor, Marx reescreveu páginas inteiras para fazer o que ele considerava mudanças necessárias e tornar as partes carregadas de exposição dialética mais fáceis para o público francês digerir. Isso se referia principalmente à seção final, a saber “O processo de acumulação do Capital”. Ele também dividiu o texto em mais capítulos. No posfácio da edição francesa, Marx escreveu que aquela versão tinha “um valor científico independente do original” e observou que deveria “também ser consultada por leitores familiarizados com a língua alemã”.

Sem surpresas, quando uma edição em inglês foi sugerida em 1877, Marx apontou que o tradutor “necessariamente teria que comparar a segunda edição alemã com a francesa”, já que nesta última edição ele havia “adicionado algo novo e… descrito muitas coisas de forma mais adequada”. Não eram, portanto, meros retoques estilísticos. As mudanças que Marx acrescentou às várias edições também integraram os resultados de seus estudos em andamento e os desenvolvimentos de seu pensamento crítico em constante evolução.

Novamente no ano seguinte, ele revisitou a versão francesa, destacando seus prós e contras. O autor escreveu a Nikolai Danielson, o tradutor russo d’O Capital, dizendo que o texto francês continha “muitas variações e acréscimos importantes”, mas admitiu que “também foi forçado, especialmente no primeiro capítulo, a ‘achatar’ a exposição”. Assim, ele sentiu a necessidade de esclarecer que os capítulos sobre “A mercadoria e o dinheiro” e “A transformação do dinheiro em capital” deveriam ser “traduzidos exclusivamente seguindo o texto alemão”. De qualquer forma, pode-se dizer que a versão francesa constituiu muito mais do que uma tradução.

Marx e Engels tinham ideias diferentes sobre o assunto. O autor ficou satisfeito com a nova versão, considerando-a, em muitas partes, uma melhoria em relação às anteriores. Mas Engels, embora elogiasse algumas das melhorias teóricas feitas, era cético quanto ao estilo literário imposto pela língua francesa. Ele escreveu: “Acho que seria um grave erro usar a versão francesa como base para uma tradução em inglês.”

Então, quando lhe pediram, pouco depois da morte de seu amigo, que preparasse a terceira edição alemã (1883) do Volume I, Engels fez “apenas as alterações mais necessárias”. Seu prefácio dizia aos leitores que Marx pretendia “reescrever grande parte do texto do Volume I”, mas que problemas de saúde o impediam de fazê-lo. Engels fez uso de uma cópia alemã, corrigida em vários lugares pelo autor, e de uma cópia da tradução francesa, na qual Marx indicara as mudanças que considerava indispensáveis. Engels foi econômico em suas intervenções, relatando que “nem uma única palavra foi alterada nesta terceira edição sem minha firme convicção de que o próprio autor a teria modificado.” No entanto, ele não incluiu todas as mudanças apontadas por Marx.

A tradução para o inglês (1887), totalmente supervisionada por Engels, foi baseada na terceira edição alemã. Ele afirmou que este texto, como a segunda edição alemã, era superior à tradução francesa — não por causa da estrutura do capítulo. Ele esclareceu no prefácio do texto em inglês que a edição francesa havia sido usada principalmente para testar “o que o próprio autor estava disposto a sacrificar sempre que algo do significado completo do original tivesse que ser sacrificado na tradução.” Pouco antes, no artigo How Not to Translate Marx (Como Não Traduzir Marx, em livre tradução), Engels havia criticado duramente a péssima tradução de John Broadhouse de algumas páginas d’O Capital, afirmando que “o poderoso alemão requer um inglês poderoso para traduzi-lo… termos alemães recém-cunhados exigem a cunhagem de novos termos correspondentes em inglês”.

A quarta edição alemã foi publicada em 1890; foi a última preparada por Engels. Com mais tempo disponível, ele pôde integrar várias correções feitas por Marx à versão francesa, enquanto excluía outras. Engels declarou no prefácio: “Depois de comparar novamente a edição francesa e as observações de Marx, fiz mais algumas adições ao texto alemão a partir daquela tradução”. Ele ficou muito satisfeito com seu resultado final, e apenas a edição popular preparada por Karl Kautsky em 1914 fez melhorias adicionais.

Em busca da versão final

A edição de 1890 do Volume I d’O Capital, de Engels, tornou-se a versão canônica a partir da qual a maioria das traduções em todo o mundo foi feita. Até o momento, o Volume I foi publicado em 76 idiomas, e em 59 desses projetos os Volumes II e III também foram traduzidos. Com exceção do Manifesto Comunista, co-escrito com Engels e provavelmente impresso em mais de 50 milhões de cópias, bem como o Livro Vermelho, de Mao Zedong, que teve uma circulação ainda maior — nenhum outro clássico de política, filosofia ou economia teve uma circulação comparável à do Volume I d’O Capital.

Ainda assim, o debate sobre a melhor versão nunca cessou. Qual dessas cinco edições apresenta a melhor estrutura? Qual versão inclui as aquisições teóricas do velho Marx? Embora o Volume I não apresente as dificuldades editoriais dos Volumes II e III, que incluem centenas de mudanças feitas por Engels, ainda é bastante complicado.

Alguns tradutores decidiram se basear na versão de 1872-73 — a última edição alemã revisada por Marx — como no caso de Reitter e North com a nova edição inglesa. Uma versão alemã de 2017 (editada por Thomas Kuczynski) propôs uma variante que — alegando maior fidelidade às próprias intenções de Marx — inclui mudanças adicionais preparadas para a tradução francesa, mas desconsideradas por Engels. A primeira escolha tem a limitação de negligenciar partes da versão francesa que são certamente superiores à alemã, enquanto a segunda produziu um texto confuso e difícil de ler.

Melhores, portanto, são as edições que incluem um apêndice com as variantes feitas por Marx e Engels para cada versão e também alguns dos importantes manuscritos preparatórios de Marx, até agora publicados apenas em alemão e em alguns outros idiomas.

No entanto, não há uma versão definitiva do Volume I. A comparação sistemática das revisões feitas por Marx e Engels ainda depende de mais pesquisas por seus estudiosos mais cuidadosos.

Marx tem sido frequentemente chamado de antiquado, e os opositores de seu pensamento político adoram declará-lo derrotado. Mas mais uma vez, uma nova geração de leitores, militantets e estudiosos estão aprendendo com sua crítica ao capitalismo. Em tempos sombrios como o presente, este é um pequeno bom presságio para o futuro.

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The Critique of the Spectacle and Consumer Society

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The Concept of Alienation