Entrevista de Romaric Godin e Juarez Guimarâes com Marcello Musto, autor de “Os últimos anos de Karl Marx” (Les Dernières Années de Karl Marx: une biographie intellectuelle 1881-1883), uma biografia intelectual do velho Marx, entre 1881 e 1883, que permite redescobrir um pensador em constante movimento, mais aberto à diversidade do mundo do que se poderia imaginar.
Professor de sociologia na York University, em Toronto, no Canadá, Marcello Musto é um dos pesquisadores mais importantes nos estudos contemporáneos sobre Marx. Este italiano de 47 anos tem se dedicado há anos à pesquisa sobre os últimos anos do pensador de Tréveris, com um estudo sistemático e aprofundado dos escritos publicados na ediçâo completa em alemao que ainda está em andamento, a famosa “MEGA” (Marx-Engels Gesamtausgabe, obras completas de Marx e Engels publicadas em Berlim).
A MEGA publicou os textos de cadernos e esboços escritos entre 1875 e 1883, primeiro em 1985 e mais tarde em 1999, bem como diversos textos de leituras sobre várias ciências naturais, como biologia, mineralogia e agronomia, em 2011. No entanto, esses textos foram amplamente ignorados pelos pesquisadores marxistas.
Para Marcello Musto, esses escritos revelam um Marx em constante atividade intelectual, que corrige, modifica, esclarece e desenvolve suas ideias à luz de novos conceitos, novos interesses e da evoluçao da historia. Essa realidade permite retratar um Marx finalmente mais histórico do que o que conhecíamos — ou seja, mais marxista —, mas também um Marx mais aberto e complexo do que a imagem difundida pela narrativa oficial construida anos após sua morte.
Em um livro publicado pela primeira vez em inglés em 2020 (traduzido sob o título “O velho Marx. Uma biografía de seus últimos anos (1881-1883)” pela Boitempo Editora, 2018), Marcello Musto narra os dois últimos anos da vida do pensador. Uma vida dividida entre dramas familiares, saúde frágil, viagens e estudos intensos que o levaram a preencher dezenas de páginas de cadernos.
O Marx descrito aqui está longe da imagem que o Ocidente herdou ao longo da historia do movimento comunista. Ele é um homem em constante ebuliçao intelectual, que reflete sobre a contribuiçâo das culturas extraeuropeias, o surgimento do poder americano e as questóes ecológicas, entre outras.
Marcello Musto escreveu uma biografia intelectual mais ampla de Marx (Karl Marx: Biografía intelectual e política (1857-1883), Expressao Popular, 2023), e uma introduçao aos textos da Primeira Internacional (Trabalhadores Uni-vos! Antologia Política da I Internacional, Boitempo Editorial/ Editora Fundaçâo Perseu Abramo, 2014). Em 2023, foi editado no Brasil o livro organizado por ele, “O Renascimento de Marx. Principais conceitos e novas interpretaçôes (pela Editora Autonomia Literária), que reúne ensaios de 22 dos mais importantes marxistas contemporáneos que relêm e atualizam as contribuées de Marx para pensar o século XXI. E, no ano passado, organizou os très volumes de “O essencial de Marx e Engels” (Editora Boitempo), os quais contêm ensaios de intelectuais brasileiros, além de uma ampla antologia, com muitos textos inéditos em portugués. Seu trabalho abriu caminho para outras reflexóes, como as do japonés Kohei Saito, e constitui um dos eixos da atual redescoberta de Marx.
Entrevistador: Durante décadas, o debate no pensamento marxista se concentrou no “jovem Marx”, e os últimos anos de Karl Marx foram amplamente esquecidos, mesmo após a publicagao dos novos volumes da MEGA. Como vocé explica isso?
Marcello Musto: Durante muito tempo, muitos pesquisadores destacaram os escritos do chamado “jovem Marx”. Como a Segunda Guerra Mundial gerou um profundo sentimento de angùstia resultante das atrocidades do nazismo e do fascismo, o tema da condigao do individuo na sociedade ganhou grande importància, e o interesse filosófico por Marx comegou a crescer em toda a Europa. Esse fenomeno foi particularmente forte na Franga, onde o estudo dos primeiros escritos de Marx (especialmente os Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844 e A Ideología Alema) foi amplamente difundido. Henri Lefebvre afirmou que essa assimilagao foi “o acontecimento filosófico decisivo da época”. Nesse processo bastante diverso, que se estendeu até a década de 1960, muitos autores de diferentes origens culturais e políticas tentaram construir uma síntese filosófica entre marxismo, hegelianismo, existencialismo e pensamento cristao.
Esse debate resultou, em alguns casos, em escritos de baixa qualidade, que distorceram os textos de Marx para alinhá-los as convicgoes políticas dos envolvidos. Raymond Aron ridicularizou justamente a fascinagao de alguns autores pela obscuridade, pelo caráter inacabado e, as vezes, contraditório desses primeiros escritos. Esses textos contém muitas ideias que seriam posteriormente aprimoradas ou até mesmo superadas na obra posterior de Marx. No entanto, é sobretudo em O Capital e em seus rascunhos preliminares, bem como em suas pesquisas dos últimos anos, que estao algumas das reflexoes mais relevantes para a crítica do modo de produgao capitalista nos dias de hoje.
Por muito tempo, foi ignorada a existencia de manuscritos que reuniam as pesquisas dos últimos anos de vida de Marx, especialmente aquelas realizadas no início da década de 1880, e isso impediu o reconhecimento dos importantes avangos que ele fez nesse período. É por isso que todos os seus biógrafos dedicaram tao poucas páginas a sua atividade após o fracasso da Primeira Internacional (a Associagao Internacional dos Trabalhadores – AIT) em 1872. Pensaram, erroneamente, que Marx havia abandonado a ideia de completar sua obra e nao examinaram os arquivos para verificar o que ele realmente fez nesse período (embora a existencia desses textos fosse evidente por meio de sua correspondencia).
Além disso, a maioria desses materiais é difícil de compreender. Sao principalmente esbogos de ideias incluídos em cadernos que Marx preencheu com trechos de livros que estava lendo e com reflexoes inspiradas por essas leituras.
Mas se há algumas justificativas para essas escolhas no passado, os novos materiais disponíveis na MEGA hoje, e o crescente volume de literatura secundária sobre o “Marx tardio” desde a década de 197o, deveriam ter revertido essa tendencia. No entanto, a extensa biografia de Gareth Stedman Jones, Karl Marx: Greatness and Illusion (Penguin, 2016), que examina todo o período de 1872-1883 como um breve epílogo, dedicando tres capítulos e 150 páginas ao período de 1845-49, é apenas um exemplo de pesquisa inadequada. Sem falar no deplorável livro de Jonathan Sperber, Karl Marx: Uma vida do Sáculo XIX (traduzido para o portugués pela Amarilys Editora em 2014), que simplesmente ignora os últimos textos de Marx.
Entrevistador: Com que objetivo vocé realizou essa pesquisa sobre o fim da vida de Marx?
Marcello Musto: Uma das principais razoes para minha pesquisa é me opor as más interpretagoes de Marx, como um autor eurocéntrico, economicista e que reduziria tudo as oposigoes de classes — interpretagoes que estao na moda hoje. Nao é preciso dizer que aqueles que defendem essa tese nunca leram Marx ou ainda estao apegados as interpretagoes mecanicistas que prevaleciam nos manuais marxistas-leninistas que leram na juventude.
Marx realizou extensas pesquisas sobre as sociedades nao europeias e sempre se manifestou inequivocamente contra os estragos do colonialismo. Essas consideragoes sao absolutamente evidentes para qualquer pessoa que tenha lido Marx, apesar do ceticismo de certos círculos académicos que o descrevem como um estrangeiro ao pensamento decolonial e o associam a um pensador liberal. Por exemplo, quando Marx escreveu sobre a dominagao británica na Índia (depois dos escritos jornalísticos da década de 1850, ele voltou ao tema em 1881), afirmou que os colonizadores ingleses só haviam sido capazes de “destruir a agricultura indígena e duplicar o número e a intensidade das fomes”.
Nos seus últimos anos, Marx acreditava que o desenvolvimento do capitalismo em todos os lugares nao era uma condigao para a revolugao: ela também poderia comegar fora da Europa. A “ductilidade” [capacidade de se adaptar sem quebrar – ed.] teórica de Marx é muito diferente das posigoes de alguns de seus discípulos e contribui para a nova onda de interesse por suas teorias, desde o Brasil até a Ásia.
Entrevistador: A impressaci que temos ao ler seus textos é a de um intenso trabalho intelectual durante esse período. Mas isso nao resultou nem na publicagao nem na redagao do segundo livro de O Capital. Como explicar essa incapacidade de Marx em finalizar sua obra?
Marcello Musto: A constante má saúde de Marx, somada às suas preocupagóes cotidianas, teve um papel significativo na sua incapacidade de finalizar parte da pesquisa realizada durante seus últimos anos. Mas também é importante destacar que seu rigoroso método e sua autocrítica implacável aumentaram as dificuldades para concluir muito do que havia empreendido.
Isso já ocorria quando ele era mais jovem, quando deixou muitos de seus manuscritos inacabados, e voltou a se repetir no final de sua vida. Sua paixao pelo conhecimento permaneceu intacta ao longo do tempo e sempre o levou a novos estudos. Por essa razao, no final da década de 1870, ele iniciou uma nova pesquisa sobre bancos e comércio e, até o inicio de 1881, escreveu novas versóes de diferentes partes do volume 2 de O Capital, especialmente com relagao a um estudo que havia feito considerando que as representagóes monetárias eram apenas uma simples cobertura do conteúdo real das relagóes monetárias.
Um exemplo semelhante sao os estudos que ele realizou sobre agronomia, geologia e propriedade da terra na Rùssia e nos Estados Unidos. Ele os realizou para reescrever completamente a segao sobre a renda da terra no volume 3 de O Capital, já que Marx nao estava satisfeito com o que havia escrito anteriormente. Finalmente, outras dificuldades acompanharam o trabalho de revisao do volume I, como demonstra o tempo que Marx levou para revisar a tradugao francesa de Joseph Roy, publicada entre 1872 e 1875.
Além de seus estudos específicos, um grande obstáculo para a conclusao de O Capital foi o fato de que Marx aprofundou seu conhecimento sobre o desenvolvimento económico da Rùssia e dos Estados Unidos. Isso exigiu um esforgo considerável, o que tornou seu objetivo ainda mais difícil de alcangar. A partir de 1878, Marx estudou os relatórios do Escritorio de Estatísticas de Ohio e, pouco depois, voltou sua atengao para a Pensilvània e Massachusetts. Ele planejava acompanhar as dinámicas do modo de produgao capitalista em uma escala mais global nos volumes de O Capital que ainda estavam por escrever. Se a Inglaterra foi o cenário principal do volume I, os Estados Unidos poderiam ter representado um novo campo de observagao que lhe permitiria ampliar seu trabalho.
Ele se concentrou em examinar mais de perto as formas como o modo de produgao capitalista se desenvolvia em diferentes contextos e períodos. Por exemplo, Marx estava particularmente interessado no desenvolvimento das sociedades por agoes e no impacto da construgao de ferrovias na economia. Segundo ele, as ferrovias haviam impulsionado a concentragao de capital de uma forma nunca antes imaginada, especialmente em países onde o capitalismo ainda estava subdesenvolvido.
O mesmo ocorreu com os empréstimos de capital, que se tornaram uma atividade cosmopolita, rapidamente envolvendo o mundo inteiro e criando uma rede de fraudes financeiras e dividas mútuas. Levou tempo para que Marx compreendesse esses fenómenos, e ele estava muito consciente da magnitude da tarefa que tinha pela frente. Ele nao apenas precisava revisar algumas partes de seus manuscritos e melhorar seu conteúdo, mas também enfrentava uma tarefa ainda mais urgente: resolver os problemas teóricos que permaneciam sem solugáo. Somente a energia que ele tinha na década de 1850, quando escreveu os Grundrisse (e os estudos relacionados às teorias da mais-valia), teria permitido que ele realizasse essa nova e gigantesca tarefa que ele pròprio havia se imposto.
Entrevistador: Uma das questoes centráis dos dois anos que voce descreve em seu livro é a da Rùssia e, de forma mais ampia, o vínculo entre capitalismo e socialismo. Com a famosa carta a Véra Zassoulich de 1881, Marx deixa de ser eurocèntrico? E, a partir de entao, Engels nao conseguiu compreender esse movimento dentro do pensamento de Marx?
Marcello Musto: A partir de 1870, após aprender a ler russo, Marx iniciou um estudo sério sobre as mudangas socioeconómicas que estavam ocorrendo na Rùssia. Foi assim que ele conheceu o trabalho de Nikolay Chernyshevsky, figura principal do “populismo” russo (na época, esse termo tinha uma conotagáo de esquerda e anticapitalista). Ao estudar essa obra, Marx descobriu ideias originais sobre a possibilidade de que, em algumas partes do mundo, o desenvolvimento económico pudesse ocorrer sem precisar necessariamente passar pelo modo de produgáo capitalista — e todas as suas terriveis consequencias para a classe trabalhadora na Europa Ocidental.
Chernyshevsky escreveu que nem todos os fenómenos sociais precisavam, necessariamente, seguir todas as etapas lógicas do desenvolvimento social na pràtica. Consequentemente, as características positivas da comuna rural russa (obchtchina) deveriam ser preservadas, mas só poderiam garantir o bem-estar das massas camponesas se fossem inseridas em um contexto produtivo diferente. A obchtchina só poderia contribuir para uma etapa inicial da emancipagáo social se se tornasse o embriáo de uma nova organizagáo social radicalmente diferente. Sem as descobertas científicas e as inovagóes tecnológicas associadas ao surgimento do capitalismo, a obchtchina nunca poderia se transformar em uma experiencia moderna de cooperagáo agricola, um elemento relevante para uma futura sociedade socialista.
Quando Vera Zassoulich perguntou a Marx, em 1881, se a obchtchina estava destinada a desaparecer ou se poderia se transformar em uma forma socialista de produgáo, Marx defendeu um ponto de vista critico sobre o processo de transigáo das formas comunais do passado para o capitalismo. Ele náo acreditava que o capitalismo fosse um passo necessàrio para a Rùssia. Marx náo acreditava que a obchtchina estivesse condenada a seguir o mesmo destino que as terras comunais do mesmo tipo na Europa Ocidental nos séculos anteriores, onde a transformagáo de uma sociedade baseada na propriedade comum para uma sociedade baseada na propriedade privada ocorreu de forma mais ou menos uniforme. Portanto, a acusagáo de eurocentrismo (um dos principais argumentos de quem hoje se opóe ao “retorno de Marx”) nao se sustenta. As interpretagóes unilaterais e superficiais de Marx, como as de Edward Said, foram desmontadas por pesquisas mais rigorosas realizadas nos últimos quinze anos.
Quanto a Engels, acredito que, no final de sua vida, ele se tornou excessivamente passivo na aceitagáo do curso da história (e caiu na ilusáo de sua suposta tendencia progressista). A dúvida de Marx foi substituida pela convicgáo de que, mesmo em um pais como a Rùssia, o capitalismo era um passo indispensável no desenvolvimento económico. É claro que a Rússia estava mudando muito e rapidamente. Afinal, foi também por isso que Marx foi muito cauteloso em sua resposta a Zassoulitch e decidiu publicar apenas uma pequeña parte dessa carta. Nao é preciso dizer que a Rùssia do inicio da década de 1880 nao pode ser comparada ao que ela se tornou na época de Lenin.
Entrevistador: Em seu último livro, o pesquisador japonés Kohei Saito, que também o cita, defende a ideia de um “corte epistemológico” na obra de Marx após a publicaçâo, em 1867, do volume I de O Capital. Um corte que mudaria completamente sua visâo do socialismo. Vocé concorda com essa ideia?
Marcello Musto: Nâo, eu discordó. Sempre fui cético em relaçâo às interpretaçôes à la Louis Althusser, nas quais os imaginários “cortes” dividiriam a obra de Marx em várias partes. Nâo existem dois ou très Marx, mas sim um único autor — muito rigoroso e autocrítico — que desenvolve constantemente suas ideias. A abertura teórica do “último” Marx, que o leva a considerar outros caminhos para o socialismo, nâo deve ser confundida com uma mudança drástica em relaçâo aos seus escritos anteriores.
No passado, autores como Haruki Wada, Enrique Dussel e outros defenderam uma leitura supostamente “terceiromundista” do último Marx, sugerindo até que, a partir de determinado momento, para ele, o sujeito revolucionário deixou de ser o trabalhador fabril para se tornar as massas camponesas e periféricas.
Marx certamente estava mais atento às especificidades históricas e às divergências no desenvolvimento económico e político em diferentes contextos nacionais e sociais, e é por isso que ele continua sendo muito útil para compreender o chamado “Sul Global”. No entanto, as ideias de Marx sempre estiveram em total oposiçâo às de pessoas como Alexander Herzen [1812-1870, outro pensador populista russo que defendia um socialismo baseado em pequenas comunas independentes formadas por individuos livres unidos pelo panslavismo — ed.], para citar apenas um exemplo. A possibilidade de uma revoluçâo na Rússia nâo poderia se inscrever no panslavismo, levando em conta tanto as formas necessárias de conquista do poder político quanto as condiçôes indispensáveis para o nascimento de uma sociedade pós- capitalista.
Entrevistador: Parece-nos fundamental esta sua recusa em relaçâo às teses da ruptura na evoluçâo do pensamento de Marx, aquela que opôe a obra dita científica de “O Capital” às suas obras de juventude ou ainda aquelas que ressaltam o humanismo nos primeiros trabalhos de Marx como se “O Capital” nâo revelasse também explícitamente uma crítica radical de inspiraçâo humanista à dinámica do capitalismo. Esta recusa lhe levaria a pensar em uma unidade de sentido na obra de Marx em meio a um processo continuo de elaboraçâo e aprofundamento de seus conceitos críticos do capitalismo?
Marcello Musto: Trata-se da velha polémica ligada ao bem-sucedido livro Pour Marx, de Louis Althusser, e ao conceito, por ele tomado do filósofo francés Gaston Bachelard, de rupture épistémologique (ruptura epistemológica). Mesmo após as numerosas críticas recebidas, Althusser permaneceu convicto da existència de “dois Marx”, o Marx jovem-filosófico e o Marx maduro-científico. No artigo Resposta a John Lewis, publicado em 1972 na revista inglesa Marxism Today, ele admitiu alguns erros contidos em Pour Marx, mas reafirmou a ideia de que a elaboraçâo teórica de Marx havia sido dividida por um ponto de separaçâo:
‘Se se considera o conjunto da obra de Marx, nao há dúvida de que existe uma “ruptura” ou um “corte” a partir de 1845. O pròprio Marx o diz. […] Toda a obra de Marx demonstra isso. […] A “ruptura epistemológica” é um ponto sem retorno. […] É verdade que ele utiliza o termo alienarlo em várias ocasioes. Mas tudo isso desaparece completamente nos últimos textos de Marx e em Lenin: completamente’.
Na realidade, a alienagáo constituiu, nao só nos Manuscritos económico-filosóficos de 1844, mas também em O Capital e em seus manuscritos preparatórios, um importante conceito teórico para descrever criticamente as características do trabalho e das relagoes sociais na realidade economico-produtiva capitalista. Além disso, ao contràrio do que afirmou Althusser, Marx nunca escreveu, nem insinuou, a presenga de qualquer “ruptura” dentro de sua obra. Muito menos é pensável estabelecer uma espécie de continuidade teórica e política entre o pensamento de Marx e o de Lenin, como avangado pelo filósofo francés, e usar como prova da suposta “ruptura epistemológica” de Marx a falta de tratamento do tema da alienagáo por Lenin.
O cerne da questáo náo é negar as enormes transformagóes ocorridas no pensamento de Marx (o mesmo pode ser dito para muitos outros autores) ao longo de sua maturagáo e após a chegada à economia política, mas, sim, ter teorizado a existéncia de uma cisáo rígida, como consequéncia da qual os Manuscritos económico-filosóficos de 1844 e os outros escritos anteriores a A Ideologia Alema foram considerados estranhos ao marxismo e náo parte integrante do seu desenvolvimento.
Entrevistador: Qual pode ser a importancia da descoberta dos últimos anos de Marx para o legado de seu pensamento nos dias de hoje? Por que, mesmo inacabado, ele ainda é um pensamento crucial para compreender nosso tempo?
Marcello Musto: Durante esse período, Marx aprofundou muitas outras questoes que, no passado, foram subestimadas ou até ignoradas pelos pesquisadores, mas que sao de importáncia crucial para a agenda política atual.
A importáncia que Marx atribuiu a questáo ecológica está no centro de alguns dos principais estudos dedicados á sua obra nas últimas duas décadas. Em diversas ocasioes, ele denunciou o fato de que a expansáo do modo de produgáo capitalista náo apenas intensificava a exploragáo da classe trabalhadora, mas também promovia o saque dos recursos naturais. Em O Capital, Marx observa que, quando o proletariado estabelecer um modo de produgáo comunista, a propriedade privada do planeta por indivíduos parecerá táo absurda quanto a propriedade privada de seres humanos por outros seres humanos.
Marx também se interessou muito pela questáo da migragáo e, entre suas últimas anotagoes, há escritos sobre o pogrom ocorrido em Sao Francisco em 1877 contra imigrantes chineses. Marx enfrentou os demagogos antichineses que afirmavam que os imigrantes “iriam matar de fome os proletários brancos” e se opós áqueles que tentavam impor posigoes xenófobas á classe trabalhadora. Pelo contrário, Marx demonstrou que o deslocamento forgado do trabalho, promovido pelo capitalismo, era um elemento essencial da exploragáo burguesa e que a chave para combaté-lo estava na solidariedade de classe entre os trabalhadores, independentemente de suas origens e sem distingáo entre trabalho local e “importado”.
Poderia continuar com muitos outros exemplos sobre a crítica ao nacionalismo, a liberdade individual na esfera económica e também a emancipagáo de género.
Marx ainda tem muito a nos ensinar, e a última fase de sua vida intelectual nos ajuda a compreender o quanto ele é indispensável para repensar uma alternativa ao capitalismo — algo que é ainda mais urgente hoje do que na sua época.
Entrevistador: Como interpretar este inacabamento de “O Capital”, no sentido da recusa tanto á sua leitura dogmática como a sua denegagao enquanto uma obra crítica de uma sociedade capitalista histórica, típica do século XIX, e que já ficou para trás? Quais seriam, na sua opiniao, em um sentido geral, as principais linhas de atualizagao desta obra que continua sendo certamente uma referencia fundamental da crítica ao capitalismo enquanto civilizagao?
Marcello Musto: O Capital tornou-se um projeto teórico tao grande que pode ser considerado quase impossível para um único ser humano. O espirito crítico com o qual Marx compós sua obra-prima revela o quao distante ele estava do autor dogmático que muitos de seus adversários e autoproclamados discípulos apresentaram ao mundo. Embora tenha permanecido inacabada, aqueles que hoje desejam utilizar conceitos teóricos essenciais para a crítica ao modo de produgao capitalista ainda nao podem prescindir da leitura de O Capital de Marx.
Entrevistador: Em um apéndice do seu livro O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) [Boitempo, 2018] está documentada a participaçâo decisiva de Marx na redaçâo do Programa da Federaçâo do Partido dos Trabalhadores Socialistas da França, junto a Paul Lafargue. Nele se defende que a classe trabalhadora devia lutar contra todo tipo de discriminaçâo, particular a racial e a de género, e dedicar-se a por fim à subordinaçâo das mulheres em relaçâo aos homens. Como esta crítica à dominaçâo patriarcal, em sua opiniâo, aparece na obra de Marx?
Marcello Musto: Nao é verdade, como se lê frequentemente, que Marx fosse indiferente a esse tema. Embora, em algumas ocasiòes – como, por exemplo, em relaçâo ao trabalho feminino nas fábricas – tenha manifestado uma visâo da sociedade pròpria das ideias de sua época, Marx e Engels aprenderam, desde jovens, com os livros dos primeiros socialistas franceses, em particular de Charles Fourier, que “o nivel de emancipaçâo geral de uma sociedade depende do nivel de emancipaçâo das mulheres”. A atençâo deles a essa questào pode ser observada em vários escritos, entre os quais se destacam os Manuscritos económico-filosóficos de Marx de 1844, A Ideologia Alemâ de Marx e Engels, Os Principios do Comunismo de Engels e O Manifesto Comunista de Marx e Engels.
No Programa Eleitoral dos Trabalhadores Socialistas, redigido em 1880 com Jules Guesde e Paul Lafargue, encontra-se claramente argumentado que a classe trabalhadora deveria lutar contra todo tipo de discriminaçâo e empenhar-se para por fim à subordinaçâo das mulheres em relaçâo aos homens: “a emancipaçâo da classe produtiva é a de todos os seres humanos, sem distinçâo de sexo e de raça”. Além disso, anunciava-se que o proletariado lutava pela “igualdade de salàrio para o mesmo trabalho entre trabalhadores de ambos os sexos”. Nâo obstante, foi Jenny von Westphalen quem, em uma carta a Wilhelm Liebknecht de 1872, representou a condiçâo feminina da época – e explicou como as diferenças de gènero pesavam também na batalha pelo socialismo – melhor do que o marido Marx e o amigo Engels: “A nós mulheres cabe a parte mais dura, porque a mais mesquinha. O homem se tempera na luta contra o mundo exterior, se tempera cara a cara com os inimigos, enquanto nòs – sejam os inim igos até uma legiâo – temos que ficar fechadas em casa a remendar meias. Isso nâo afasta as preocupaçôes e as pequenas misérias cotidianas consomem, lentamente, mas de maneira implacável, a força e a alegria de viver”.