RIO – Os bairros operários de Liverpool e Manchester aparecem nos jornais do século XIX como lugares lúgubres e paupérrimos, onde famílias inteiras dormiam no mesmo cômodo, uns sobre os outros. Não surpreende, portanto, que tenha nascido na Inglaterra, berço da Revolução Industrial, a tentativa pioneira de organização dos trabalhadores a nível mundial.
No dia 28 de setembro de 1864, cerca de 2 mil pessoas se reuniram no salão do St. Martin’s Hall, em Londres, para assistir a um comício de dirigentes sindicais ingleses que contaria com a participação de um pequeno grupo de colegas franceses. Ali seria fundada a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), modelo e inspiração para as principais organizações operárias surgidas depois.
A AIT teve vida curta, sendo esvaziada com a transferência de sua sede para Nova York em 1872 e dissolvida quatro anos depois, mas um século e meio após sua fundação ainda é capaz de provocar controvérsias, como as disputas entre comunistas e anarquistas. Organizador do livro “Trabalhadores, uni-vos! Antologia política da I Internacional” (Boitempo, tradução de Rubens Enderle), o cientista político italiano e professor da Universidade York, no Canadá, Marcello Musto, explica que nenhum dos dois grupos eram hegemônicos no seu início e não se pode creditar o seu fim a uma rixa pessoal entre Karl Marx e Mikhail Bakunin, como costuma se fazer. A obra, recém-lançada no Brasil, traz 80 textos, sendo que 69 inéditos em português. Na segunda-feira, ele participa do encontro “A I Internacional, 150 anos depois” na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
— Quando os milhares de trabalhadores se encontraram em Londres há 150 anos, a ideia era construir um fórum internacional de debates sobre os problemas que os atingiam. Inicialmente, ninguém pensava em criar uma organização que coordenasse a luta política de toda a classe. Os sindicatos britânicos, que eram o principal grupo da Internacional, estavam interessados em questões econômicas e viam a associação como um meio de atingir os seus objetivos, como impedir a importação de mão de obra estrangeira — explica o professor.
Uma das principais características da associação foi a capacidade de aglutinar correntes políticas antagônicas. De reformistas a revolucionários, de social-democratas e mutualistas a anarquistas, todos estavam representados, mesmo que em diferentes graus. No entanto, as concepções de cada grupo e o espaço ocupado por eles na organização foi mudando com o passar dos anos. Musto cita o caso da utilização da greve como instrumento de pressão. A maioria dos franceses e os fundadores do Partido Social-Democrata Alemão eram contra. Só que, a partir de 1866, com a multiplicação das paralisações em diversos países europeus e o sucesso alcançado por elas, todas as tendências se convenceram de que se tratava de um recurso fundamental.
Outro ponto que sofreu mudanças significativas foi o envolvimento dos trabalhadores no jogo político. Muitas correntes se opunham, pois acreditavam que a batalha deveria se restringir a melhorias das condições econômicas e sociais. Foi graças à Comuna de Paris, em 1871, o ensaio de uma democracia operária que durou 40 dias, que se chegou ao consenso sobre a necessidade de se encontrar formas de organização política. Neste processo, assim como em toda a existência da I Internacional, Karl Marx teve um papel central. Musto argumenta que sua importância foi principalmente teórica, já que o pensador alemão nunca atuou como mobilizador das massas e participou de apenas um dos seus vários congressos.
— Seus dotes políticos permitiram a Marx conciliar aquilo que parecia inconciliável e asseguraram um futuro à Internacional. Sem o seu protagonismo, ela seguramente teria caído no esquecimento na mesma velocidade que muitas outras iniciativas semelhantes que a precederam. Foi Marx quem realizou um programa político não excludente, embora firmemente classista, como garantia de uma organização que ambicionava ser de massas, não sectária.
O protagonismo de Marx a que Musto se refere se tornou numa espécie de lugar-comum sobre as razões do fim da associação, em especial a disputa com Bakunin e os anarquistas. Na introdução da antologia, o cientista político recupera essa história em detalhes. Realmente as discussões entre os dois não eram nada amistosas. Muitas vezes o pensador alemão preferiu ridicularizar as posições do exilado russo, que respondia com acusações e insultos pessoais, salvo raras exceções. O fato é que os caminhos defendidos por cada um para a sociedade socialista, onde não haveria mais classes, eram diametralmente opostos.
Musto ressalta, entretanto, que muito mais profundas eram as transformações da Europa no período. O próprio congresso da associação realizado em Haia, em 1872, é descrito como um verdadeiro caos. A repressão à Comuna de Paris, no ano anterior, que deixara cerca de 20 mil mortos, o fortalecimento do Estado-nação com a unificação da Alemanha e da Itália, a expansão da Internacional para a Espanha e outros países cuja estrutura econômica e social era muito diferente da Inglaterra e da França — tudo isso serviu para desestabilizar a organização que vivera desde o início num equilíbrio delicado. A transferência da sua sede para Nova York após o encontro na Holanda, junto com o afastamento de Marx, foi uma espécie de epílogo, apesar de a associação demonstrar força em alguns países europeus nos quatro anos seguintes.
— Se a globalização neoliberal enfraqueceu os movimentos dos trabalhadores, ela também abriu novas possibilidade de comunicação, facilitando a cooperação e a solidariedade. Com esta recente crise do capitalismo, que aprofundou mais do que nunca a divisão entre capital e trabalho, o legado da I Internacional se mostra ainda mais relevante e atual — argumenta o professor.
Marcello
Musto