“O Marx ecologista, esse desconhecido”
Se em O Outro Marx, o professor de Teoria Política da universidade canadiana de York, Marcello Musto, tinha investigado o jovem Karl Marx, o seu último trabalho é sobre o tempo oposto: Os Últimos Anos de Marx.
Publicado recentemente em Portugal, é uma investigação que surpreende tanto os fãs como os detratores do cientista político mais polémico desde o século XIX e permite conhecer os seus últimos anos de vida e os interesses filosóficos menos divulgados.
Musto tem dedicado vários livros à interpretação da obra de Marx e analisado a contemporaneidade das suas teorias em publicações traduzidas para mais de uma dezena e meia de línguas. A propósito deste novo livro sobre Karl Marx diz: “Não é um pensador sobre quem tudo já foi escrito e dito. Ainda há muito a descobrir sobre ele.”
Finaliza esta biografia a referir a fotografia em que Marx surge sem a barba e com o cabelo curto. Pretende humanizá-lo?
É uma história engraçada, e Marx era um homem com um grande sentido de humor. Em 1882, ele foi para Argel com a esperança de que o bom tempo melhorasse a sua frágil saúde. Antes de sair, ele escreveu numa carta a Engels: “Acabei com a minha barba de profeta e a minha glória coroada, mas fotografei-me antes de sacrificar o meu cabelo a um barbeiro argelino.” Esta foi a sua última foto.
O Marx dos últimos tempos complementa o filósofo que todos conhecem ou acrescenta outra versão ligeiramente diferente?
Nos primeiros escritos de Marx encontram-se muitas ideias que foram substituídas nos seus trabalhos posteriores. É sobretudo em O Capital e nos seus rascunhos preliminares, bem como nas pesquisas dos seus últimos anos, que encontramos as reflexões mais preciosas sobre a crítica da sociedade burguesa. Estas representam as últimas, embora não definitivas, conclusões a que Marx chegou.
Este retrato de Marx mostra um cidadão muito mais frágil e dependente do que já conhecíamos. Não o diminui para a posteridade?
O “último” Marx é também o Marx mais íntimo: não escondeu a sua fragilidade face à vida, mas continuou a lutar; não se furtou à dúvida, mas confrontou-a abertamente; optou por prosseguir com a sua investigação em vez de se refugiar na autocerteza e lapidar a adulação acrítica dos primeiros “marxistas”. Não é uma diminuição.
A recuperação de Marx para a atualidade fica mais fácil com o fim da sua ligação ao marxismo-leninismo que vigorou na URSS e às grandes crises financeiras já deste século?
O colapso do dogmático e autoritário “socialismo realmente existente” da União Soviética, juntamente com a instabilidade e a imprevisibilidade persistente dos mercados globais, obrigaram vários economistas, incluindo muitos que se opunham a Marx, a revisitar as suas ideias. Com o desenvolvimento do capitalismo à escala global – e num sistema que invade e permeia a maioria dos aspetos da vida humana – a análise atual de Marx revela o seu significado de uma forma mais clara do que no seu tempo.
Dá-nos um Marx ecológico. Ele gostaria de aparecer deste modo em vez do autor de O Capital e de outros ensaios mais filosóficos?
Nos últimos anos, surgiu uma nova – e de muitas formas surpreendente – exploração do Marx político. As suas reflexões sobre temas que são cruciais na agenda política contemporânea são novamente lidas. Estes temas incluem migração, nacionalismo ou ecologia. Muitos livros recentes mostraram a importância que Marx atribuía à questão ecológica. Em repetidas ocasiões, denunciou o facto de que a expansão do modo de produção capitalista aumentava não só o roubo do trabalho operário, mas também a pilhagem dos recursos naturais.
Ao dedicar-se a questões mais abrangentes, como a da antropologia e a do colonialismo, Marx poderia ter alterado certos princípios fundamentais na sua obra se vivesse mais tempo, ou apenas os reforçaria?
Nesse período, Marx fez progressos notáveis em relação à antropologia, e aprofundou muito a questão colonial. Ele era tudo menos eurocêntrico, economista ou fixado apenas no conflito de classes. Marx considerou fundamental o estudo de novos conflitos políticos, novos temas e áreas geográficas na sua crítica contínua ao sistema capitalista. Permitiu-lhe abrir-se às especificidades nacionais e considerar a possibilidade de uma abordagem ao comunismo diferente da que tinha sido desenvolvida anteriormente.
Os últimos anos da sua vida nunca foram “divulgados”. Este Marx velho não o desiludiu?
Pelo contrário, em 1881 e 1882, Marx estudou os modos pré-capitalistas de produção, as sociedades não ocidentais, a revolução socialista e a conceção materialista da história. Ele também observou de perto os principais acontecimentos na política internacional, como podemos ver nas suas cartas, expressando um apoio firme à luta de libertação irlandesa e ao movimento populista na Rússia, e uma oposição firme à opressão colonial britânica na Índia e no Egito e ao colonialismo francês na Argélia. Foi um Marx verdadeiramente global.
Acha que fechou a biografia de Marx ou apenas abriu uma porta?
A publicação na Marx-Engels-Gesamtausgabe, a nova edição histórico-crítica das obras completas de Marx e Engels, dos antes desconhecidos materiais de Marx, juntamente com a interpretação inovadora da sua obra, abriu novos horizontes de investigação e demonstrou, mais claramente do que no passado, a sua capacidade de examinar as contradições da sociedade capitalista à escala global e em esferas que ultrapassam o conflito entre o capital e o trabalho. Não é exagero dizer que, dos grandes clássicos do pensamento político, económico e filosófico, Marx é aquele cujo perfil mudou mais nas décadas iniciais do século XXI. Uma biografia monumental ainda terá de ser escrita. Marx não é um pensador sobre quem tudo já foi escrito e dito. Ainda há muito a descobrir sobre ele.
Desde a morte de Marx muitas mudanças aconteceram no mundo. Na sua opinião, a sua obra mantém-se atual, mais correta para países em desenvolvimento, ou “morreu” como disseram vários detratores já há umas décadas?
análise das classes sociais de Marx precisa de ser atualizada e a sua teoria da crise económica – que ficou inacabada – é filha de outro tempo. Se em Marx não se consegue encontrar respostas para muitos dos problemas contemporâneos, ele ajuda-nos a identificar as principais contradições. Se analisadas criticamente à luz das mudanças no mundo desde a morte de Marx, estas questões ainda podem revelar-se altamente úteis para a tarefa de teorizar sobre um modelo socioeconómico alternativo ao capitalismo.
Qual o Marx que prefere: o das estátuas do Leste Europeu ou o menos dogmático?
verdadeiro Marx é o segundo. O seu lema favorito era: De omnibus dubitandum. Duvido de tudo.
Marcello
Musto