Lucas Parreira Álvares, Blog da Boitempo

Review of O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883)

Acerca de O Velho Marx, de Marcello Musto – ou: por que essa biografia merece ser lida

O leitor que eventualmente esperava ler um texto que continha predominantemente interpretações teóricas acerca dos – até então – imprecisos anos finais da vida de Marx, provavelmente terá se decepcionado com a leitura de O velho Marx, obra de Marcello Musto recém lançada ao público brasileiro pela editora Boitempo. Como o próprio subtítulo diz, e Musto (p.10) endossa essa informação ainda em seu prefácio, esse livro não se trata de uma análise teórica desse autor, mas sim, de uma biografia de seus últimos anos (1881-1883). Entretanto, por mais que talvez não tenha sido esse o objetivo central, é possível observar elementos que nos dão um panorama do olhar do autor diante da produção teórica dos anos finais da vida de Marx. Talvez devido ao fato de que o rigor de Musto, aliado à bela pesquisa que desenvolvera, nos mostra algo fundamental: que os elementos bibliográficos de Marx bem organizados podem, por vezes, contribuir mais para a tradição marxista do que uma dúzia de interpretações precoces deslocadas da vida desse grande autor. E é nesse sentido que esse olhar do marxista italiano é tão importante para nós, seus leitores, fazendo de O velho Marx uma obra essencial para a biblioteca de qualquer estudioso do velho Mouro – ainda que trata-se de um estudo insuficiente, afinal, segundo o próprio Marcello Musto, esse trabalho “será continuado e completado por outro, exclusivamente teórico” (p.10).

Algumas obras que precederam O velho Marx tentaram, cada qual a sua maneira, trazer não só informações biográficas sobre os anos finais da vida de Marx como também, e principalmente, suas interpretações a esse período. É o caso, por exemplo, de Anderson (2010), Kohan (2003); e principalmente Shanin (2017). Marcello Musto, que propôs unicamente trazer as informações biográficas – o que já não é pouco – desempenhou essa tarefa com tanta precisão que não só deu a nós intérpretes um melhor direcionamento sobre a produção teórica dos anos finais da vida de Marx, como também, ao apresentar sua rigorosa investigação biográfica, confrontou diversos intérpretes que anteriormente deram suas contribuições a esse tema. É nesse sentido que, embora seja do interesse de Musto escrever uma obra futura que tenha como objetivo unicamente sua interpretação sobre a teoria do velho Marx, essa obra biográfica já desempenha inicialmente esse papel.

A cada página que se passa, o leitor de O velho Marx se sente cada vez mais convidado a adentrar esse “novo mundo” que antes era impreciso, e agora se mostra bem contextualizado. Esse “convite” se dá, em grandes termos, pela condução precisa que Musto propõe ao leitor a partir de sua escrita. Não se trata de um texto biográfico que se manifesta absolutamente de modo cronológico (como o de Derek Sayer, 2017) e nem mesmo um texto que se divida tematicamente de acordo com interesses e informações importantes a Marx (como o de Leandro Konder, 1998). Musto é feliz por, narrativamente, conseguir demonstrar o desenvolvimento da produção teórica de Marx sem perder a “linha vermelha” que nos conduz cronologicamente aos acontecimentos e fatos que foram constitutivos da vida do autor de O capital. Para o leitor, nada pode ser mais reconfortante do que essa escolha narrativa.

Ainda sobre a escrita, é interessante a precisão com que o autor consegue manter o rigor de seu texto mesmo em momentos em que ele altera, de maneira consciente, o tempo verbal dos documentos – principalmente cartas – apresentados no decorrer do livro. Mas não é esse o fator que faz com que o leitor seja facilmente convencido daquilo que Musto escreve, mas sim, o fato de que não foi necessário a esse autor fazer malabarismos com as informações que ele detinha: ao contrário, o convencimento ao leitor se dá precisamente pelo fato de que são através das próprias palavras de Marx que Musto conduz seu texto biográfico. A separação em capítulos proposta por Marcello Musto nos passa a sensação de, por vezes, estarmos diante de uma obra literária ou mesmo de uma produção cinematográfica. Isso fica muito evidente na transição para o capítulo final de O velho Marx, onde, sem esforço, o marxista italiano faz com que nós leitores tenhamos um pertencimento tão intenso à leitura, como se não soubéssemos do triste fato de que o protagonista daquele texto morre no final.

A biografia intelectual de Marx, bem como as sutis interpretações trazidas por Musto, fornecem elementos preciosos a alguns debates que se tornaram importantes no seio da tradição marxista. É o caso, por exemplo, das controvérsias advindas da resposta de Marx a Vera Zasulitch sobre o destino da comuna rural na Rússia – debate registrado no livro Lutas de classes na Rússia(Boitempo, 2013), organizado por Michael Löwy. Musto (p.76-77) afirma categoricamente – e o que me parece uma interpretação bastante acertada – que “nos esboços preliminares da carta a Vera Zasulitch não se revela nenhum rompimento drástico de Marx em relação a suas convicções anteriores – ao contrário do que afirmaram alguns estudiosos” – em referência direta a Teodor Shanin (2017), esse que formulou a tese de que havia uma “mudança significativa” relação à publicação de O capital, e a Enrique Dussel, que também compartilha dessa interpretação de Shanin em seu El último Marx (1990).

Uma outra interpretação trazida por Musto se refere ao interesse de Marx junto aos assim chamados “estudos antropológicos” – publicados por Krader em 1972 sob o título de Cadernos Etnológicos – que pela interpretação de alguns autores (vide Tible 2013, 2014 e 2017; Rosemont, 1989; Krader, 1988), tais investigações aparecem, por vezes, dissociadas da crítica à economia política desenvolvida por Marx. Musto (p.32) afirma que “as pesquisas que acompanharam sua composição [dos textos publicados sobre o título de Cadernos Etnológicos] foram realizadas com o objetivo preciso de aumentar seu conhecimento acerca dos períodos históricos, áreas geográficas e temáticas consideradas fundamentais para a continuidade de seu projeto de crítica da economia política”. E completa dizendo o óbvio (ou o que pelo menos deveria o ser): “ademais, essas investigações permitiram a Marx adquirir informações particularizadas sobre as características sociais e institucionais do passado mais remoto, das quais ele ainda não dispunha quando redigira os manuscritos e as obras dos anos 1850 e 1860, e, afinal, estavam em dia com as teorias mais recentes dos mais eminentes estudiosos de cada área”.

Ainda sobre a interpretação de Musto aos rascunhos de Marx publicados sob o título de Cadernos Etnológicos, há também uma outra consideração que contradiz parte das formulações de outros intérpretes: ao passo em que autores como Eriksen e Nielsen (2007) tentam extrair dos Cadernos Etnológicos de Marx uma associação deste com a teoria evolucionista, Musto, com os devidos pés no chãos, afirma que “todos os autores lidos e resumidos por Marx nos Cadernos Etnológicos haviam sido influenciados – com nuances distintas – pela teoria evolucionista que imperava à época […] um estudo dos Cadernos Etnológicos mostra claramente que Marx não sofreu nenhuma influência dessas asserções ideológicas”. Além disso, acertadamente, Musto (p.40) interpreta que Marx também não teria comungado dos “rígidos esquemas sobre a sucessão inelutável de estágios determinados da história humana”, como é o caso das fases históricas sucessivas desenvolvidas por Morgan em sua obra Ancient Society, de 1877 – o que não inviabiliza o fato de que Marx teria absorvido as “informações históricas e dados coligidos” trazidos por esses autores.

Percebam como que Musto acerta simplesmente por não apresentar aquilo que que está ausente na obra de Marx. E essa é uma contribuição precisa desse autor que, ao apresentar tal biografia intelectual tão precisa, desatando fios que antes apareciam sob uma forma embaraçada, tem por consequência o fornecimento de uma melhor orientação aos intérpretes por vir. Também em função disso, eu não poderia deixar de fazer duas pequenas observações críticas ao livro O velho Marx, de Musto. Tais críticas levam em consideração o que o autor propôs como objetivo de sua obra, e, ainda assim, são críticas que levam em conta não o que se fez presente em O velho Marx, mas aquilo que se fez ausente.

Em primeiro lugar, Musto (p.59) apresenta que Marx escreveu o prefácio à segunda edição russa do Manifesto Comunista de 1881 em coautoria com Engels. Essa é uma informação tida como correta no seio da literatura marxista, visto que o prefácio consta com a assinatura de ambos. Entretanto, como o trabalho de Musto se propõe a uma investigação minuciosa às questões envolvendo os anos finais da vida de Marx, acredito que uma peculiaridade sobre esse prefácio não podia deixar de ser apontada, afinal, desde 1983, o marxista japonês Haruki Wada (2017, p.116) já havia trazido a seguinte informação: “o manuscrito do prefácio, marcado ‘Londres, 21 de fevereiro de 1881’, foi rascunhado por Engels; Marx fez apenas uma correção mínima e colocou sua assinatura. Diante do fato de que o manuscrito que temos hoje tem uma passagem no fim que foi escrita uma vez, rasurada, e não reescrita, é possível vê-lo como uma cópia limpa que Engels transcreveu ainda de outro manuscrito. Todos esses fatores nos levam a concluir que Marx […] pediu a Engels para fazer um rascunho e o assinou. Que Marx não ficou totalmente satisfeito com o resultado pode ser deduzido da carta que ele mandou a Lavrov com o manuscrito: ‘se esta peça, que é para a tradução do russo, for para ser publicada como está, em alemão, ainda precisa de toques finais em seu estilo’”.1

Essa questão se mostra importante na medida em que foram poucos os textos realmente publicados por Marx após O capital, e, quanto a eles, Musto fez muito bem em não só lembrar, como também anexar um desses poucos textos a edição de seu livro: trata-se do Programa eleitoral dos trabalhadores socialistas, de 1880, escrito por Marx juntamente de Jules Guesde e Paul Lafargue.

A segunda observação que faço à obra é o caráter acrítico com que Musto trata Lawrence Krader. Não faço essa crítica com fundamento de que eu esteja tratando O velho Marx como uma obra “teórica”, mas sim, por acreditar que mesmo uma obra de “biografia intelectual”, como opta Musto, deveria deixar claro que o modo pelo qual Marx desenvolve seus cadernos de leitura é incompatível com o modo em que esses cadernos, que tinham como fundamento os excertos e comentários a textos ditos “antropológicos”, foram editados e publicados por Lawrence Krader. As notas dos quatro autores que Marx teria extratado, na verdade, constituem aproximadamente apenas metade dos cadernos de Marx de 1879 a 1882 que contém informações sobre sociedades não ocidentais e pré-capitalistas. Além dos editados por Krader ainda constam anotações dos seguintes autores: o funcionário público colonial Robert Sewell e seus escritos sobre a história indiana; os historiadores e juristas alemães Karl Bücher, Ludwig Friedländer, Ludwig Lange, Rudolf Jhering e Rudolf Sohm sobre a formação do estado, classe e gênero em Roma e na Europa medieval, o advogado britânico J.W.B. Money e seus estudos sobre a Indonésia; dentre outros trabalhos acerca do que hoje entendemos como antropologia física e paleontologia (Anderson, 2010, p.197-198).

Como já mencionei em outro texto publicado aqui neste blog, “é notória a intenção de Krader, como antropólogo, em selecionar os textos assim chamados ‘etnológicos’ de Marx para a edição que organizou. Entretanto, me parece que da mesma forma um jurista poderia ter selecionado textos e seu critério e organizado os ‘Cadernos Jurídicos’ de Marx, ou que um geólogo pudesse editar os ‘Cadernos Paleontológicos’. A constatação é: apesar dos esforços de Krader […] os anos finais da vida de Marx não foram destinados apenas aos estudos assim chamados ‘etnológicos’.” Acredito, portanto, que a opção do autor de O velho Marx em não apresentar um contraponto ao trabalho de edição de Lawrence Krader dos cadernos de Marx assim chamados “etnológicos” é incompatível com a rigorosa biografia intelectual que Musto faz dos anos finais da vida de Marx.

Gostaria de fazer uma objeção, também, para além das formulações do autor presentes no corpo de seu livro: não compartilho da opinião de que Musto, a partir de O velho Marx, deveria ser apresentado como o “primeiro a analisar com profundidade o ‘último Marx’”, como afirma Michael Löwy na orelha da obra recém lançada. Fazendo jus à literatura sobre o tema, por mais problemáticas que possam ter sido as formulações de alguns autores precedentes, não creio que seja adequado tratar como “sem profundidade” investigações como as desempenhadas por Teodor Shanin, Enrique Dussel, Néstor Kohan, e mesmo Lawrence Krader – e no Brasil, por exemplo: Pedro Leão da Costa Neto, Leônidas de Farias. Acredito, entretanto, que a obra de Musto é a mais precisa e mais rigorosa dentre elas, principalmente considerando o fato de que nenhuma outra obra ter se referido especificamente à temática central do marxista italiano, a saber: as informações sobre a biografia de Marx em seus últimos três anos de vida2. Por um lado, diferente de alguns intérpretes que o antecederam, Musto tem a seu favor o recente material publicado pela MEGA2 (a nova edição das obras completas de Marx), o que fornece elementos que estavam na alçada de um Teodor Shanin, por exemplo, que publicou seu Marx Tardio originalmente em 1983. Por outro lado, Musto não era o único que tinha à sua disposição esses novos materiais, e acredito que essa tarefa de investigar seriamente esses recentes textos da MEGA2 caiu em mãos adequadas para essa responsabilidade.

Feitos os elogios cabíveis e as pequenas observações críticas, gostaria de terminar enfatizando a importância que essa obra possui para a tradição marxista: antes dela, era absolutamente comum mencionarmos a expressão “velho Marx” fazendo referência a totalidade da obra do Mouro, como se nos referíssemos a um autor antigo cujas ideias ainda são fundamentais. De agora em diante, parece-me que, se na literatura marxista aparecer a expressão “velho Marx”, é à produção teórica dos anos finais da vida de Marx, bem como à consistente pesquisa desenvolvida por Marcello Musto que esse termo deveria remeter. Com uma diferença fundamental: não há no “velho Marx” de Musto qualquer espécie de corte epistemológico, como nas formulações althusserianas sobre o “jovem Marx”. Ao contrário, é simplesmente a um corte temporal que esse “velho Marx” de Musto está se remetendo. Nós, intérpretes, só temos o que agradecer.

Notas

1 Durante sua conferência na UFMG, no último dia 04/06, questionei Musto sobre essa possível “novidade” trazida por Wada. Ele gentilmente me respondeu que, a partir de suas investigações, não encontrara nenhum elemento conclusivo que pudesse levar aos resultados trazidos por Wada. Muito embora eu concorde que os argumentos de Wada de fato não sejam tão convincentes, acredito que a interpretação do marxista japonês, por levantar um elemento contraditório nos anos finais da vida de Marx, deveria ter sido abordada, mesmo que de maneira crítica.

2 A que mais se aproximou disso foi a obra organizada por Shanin, que leva em conta principalmente a vida e a obra de Marx após O capital, ou seja, o Marx de 1867 a 1883.

Referências Bibliográficas

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Published in:

Blog da Boitempo

Date Published

7 June, 2018

Author:

Lucas Parreira Álvares