Como o subtítulo indica, Marcello Musto, em sua biografia, não trata do “Marx maduro” em geral, cuja definição ensejaria controvérsias, mas se detém em um período menos frequentado, o do “último Marx” (conforme o título original italiano), mais precisamente, seus dois últimos anos de vida.
No entanto, o relato de Musto não se limita à descrição das vicissitudes do final da vida do ilustre renano (falecido em 14 de março de 1883), profundamente marcado pela doença e pelas perdas da companheira de toda a vida, Jenny von Westphalen (em 2 de dezembro de 1881), e da filha mais velha, Jenny Longuet, a Jennychen, como a família carinhosamente a denominava (em 11 de janeiro de 1883); mas trata, sobretudo, da relevante produção intelectual do período, nem sempre lembrada por muitos comentaristas.
A importância do texto de Marcello Musto reside precisamente aí: com competência e rigor, porém através de uma escrita cativante e agradável, o biógrafo traz à baila textos, reflexões e posicionamentos de Marx da maior relevância e que, no entanto, são menos considerados pela tradição. Destacam-se, neste contexto, seus estudos antropológicos (ou etnológicos, como preferiu designá-los Lawrence Krader, principal estudioso e divulgador destes apontamentos), aos quais Marx dedicou uma atenção muito especial. São diversos os autores por ele lidos neste período, porém, John Bud Phear, Henry Summer Maine, John Lubbock e, sobretudo, Lewis Henry Morgan mereceram um tratamento especial através de extensos extratos e comentários de leitura. Sua dedicação à temática foi de tal monta que sugere a natural conclusão de que almejava escrever algo sobre o assunto. Aliás, tal inferência está corroborada pelo fato de que Engels, em sua apresentação a A origem da família, da propriedade privada e do Estado, publicado em 1884, no ano subsequente ao da morte de Marx, apresenta a obra como “a execução de um testamento” (Rio: Vitória, 1964, p.7).
Destarte, também neste caso, embora a redação fosse do próprio Engels, ainda que sob a inspiração dos estudos efetuados por Marx, coube ao amigo efetivar aquilo que Marx não tivera condições de levar a cabo em vida, algo que seria feito, com pouca interveniência de Engels, com relação a O capital, publicando o Livro II em 1885 e o Livro III em outubro de 1894; descumprindo, porém, a promessa, reiterada no prefácio deste último, de publicar o Livro IV, as Theorien über den Mehrwert, pois o próprio Engels veio a falecer em 5 de agosto de 1895. Marcello Musto não questiona o fato de Marx, ao final da vida, ter dedicado tanta atenção à antropologia, tendo diante de si a ingente tarefa de concluir O capital. Abandonaria o projeto d’O capital e o substituiria por outro, como fizera anteriormente com a Contribuição à crítica da economia política, de 1859?
Nunca saberemos a resposta… Porém, com relação ao episódio anterior, sabemos que o projeto de 1859 foi abandonado e substituído pelo d’O capital, e a parte publicada, abordando a temática da mercadoria e do dinheiro, embora contando com uma nova redação do mesmo assunto, na Primeira Seção do Livro I (os três primeiros capítulos), não foi repudiada. Marx inicia O capital com uma citação da obra de 1859, como se quisesse advertir os seus leitores de que, apesar do novo tratamento dado à temática, o texto anterior continuava vigente. Com todas as possibilidades de interpretação que entranham a leitura de cadernos de notas que não estavam destinados à publicação, mas apenas endereçados ao próprio autor, estes apontamentos antropológicos sugerem, de imediato, a conclusão de que o contraste da sociedade burguesa com estas formas sociais atávicas não só evidenciam a contingência e transitoriedade histórica do capitalismo, como descortinam a possiblidade da emergência de uma sociedade radicalmente nova. Não há, em Marx, nestes apontamentos, qualquer nostalgia em relação a uma idílica idade de ouro pretérita, nem compromissos com interpretações economicistas ou deterministas da história.
Na mesma toada estão seus estudos sobre a realidade russa que o conduziram, dentre outros escritos, a uma correspondência com Vera Zasulitch, onde insinua claramente alternativas históricas plurais. O interesse de Marx pela Rússia é antigo e o levou ao estudo e domínio da língua russa; o que o permitiram acompanhar mais de perto a realidade do país e a ter um contato mais estreito com os revolucionários russos. Não se deve esquecer que a primeira tradução d’O capital, em 1872, sintomaticamente, foi para o russo. A pergunta formulada por Zasulitch, em 1881, acerca do destino da comuna rural russa, se fadada à dissolução em propriedade privada pelo desenvolvimento capitalista ou se poderia transitar diretamente ao socialismo no caso de uma revolução exitosa, é tratada por Marx com toda a cautela. Ele chega a redigir três versões da resposta, mais ou menos extensas, porém termina por enviar uma quarta mais curta, datada de 8 de março de 1881, na qual deixa em aberto ambas as possibilidades, sustentando não haver qualquer “fatalidade histórica” que obrigasse a um ou outro resultado.
Enfim, como bem destacou Marcello Musto, o Marx que emerge desta obra está muito longe da imagem caricata de um economicista eurocêntrico, apenas focado na luta de classes. Se tal retrato nunca expressou adequadamente, nem o Marx mais jovem e, portanto, mais afoito – embora encontrasse eco em certa vulgata espargida por manuais catequéticos –, fica totalmente confrontada pelo Marx dos últimos anos. Marcello Musto cumpre com competência e correção a tarefa a que se incumbiu e, embora jovem, este professor italiano radicado no Canadá granjeou uma merecida reputação acadêmica internacional. A revista Crítica Marxista já publicou instigantes artigos seus nos números 27, 33 e 43 que podem ser acessados livremente através do seguinte endereço: <https://www.ifch. unicamp.br/criticamarxista/index.php>.
Ao recomendar, sem reticências, a leitura deste livro e dos outros textos do autor, parece oportuno o ensejo, no entanto, para manifestar uma pequena estranheza. Não são compreensíveis as obscuras razões editoriais que levaram a que se traduzisse o título original da obra L’ultimo Marx (1881-1883): Saggio di biografia intellettuale pelo impreciso e pouco atilado O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos, sobretudo quando se tem presente que já há certa tradição em designar por “último” ou “tardio” a este período da vida e da obra de Marx. Desde que Theodor Shanin organizou e editou a coletânea intitulada Late Marx and Russian Road que este período da vida de Marx começou a ser delimitado e constituído como objeto de pesquisa. Late Marx ou dernier Marx, embora os autores possam divergir quanto ao exato período de referência, já estão consagrados na literatura… Será que o “velho” Marx ajudaria a vender mais livros?
Marcello
Musto