Morgana Gomes, Boitempo

Review of Trabalhadores, uni-vos!

Entrevista de Marcello Musto a Morgana Gomes

O slogan que finaliza a mensagem inaugural da I Internacional e que fora escrito por Karl Marx, 150 anos depois, mantém-se atual no que refere as reivindicações dos trabalhadores inseridos no processo de globalização em todas as partes do mundo

No dia 28 de setembro de 1864, cerca de duas mil pessoas se reuniram no salão do St. Martin’s Hall, em Londres, para assistir a um comício de dirigentes sindicais ingleses que, em parceria com um pequeno grupo de franceses, fundaram a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT).

Estabelecia-se, assim, a primeira tentativa de organizar os trabalhadores de todas as partes do mundo e a Inglaterra tinha um contexto próprio para sediar tal evento, pois havia sido o berço da Revolução Industrial e as condições de vida de seus trabalhadores eram péssimas, tanto que, além da exploração de mão de obra, inclusive infantil, famílias inteiras aglomeravam-se em lugares lúgubres, onde conviviam com a pobreza extrema e doenças contagiosas que minavam as forças dos operários, que ainda tinham que enfrentar uma jornada de trabalho que, ao dia, extrapolava mais que 14 horas em troca de um salário ínfimo.

Em virtude de tais condições, os trabalhadores que, na ocasião, encontravam-se na capital inglesa, não tinham a pretensão de construir um fórum internacional de debates sobre os problemas que os atingiam, muito menos de criar uma organização que coordenasse a luta política de toda a classe. Mas a convergência dos fatos possibilitou o surgimento da I Internacional que, apesar do curto período de existência, passado 150 anos de sua fundação, ainda é capaz de inspirar e até direcionar os trabalhadores atuais em sua luta diária, dessa vez, em meio a um cenário que, agora, também conta com a globalização, processo que modifica de modo intensivo tanto das formas de trabalho quanto de produção em benefício único do capitalismo e das classes dominantes.

Mas, para entender todo esse processo que começou em setembro de 1864 e, ainda hoje, graças as suas próprias características, mantém-se atual, entrevistamos o cientista político Marcello Musto, que se dedica a estudos de marxismo, história do pensamento político, filosofia moderna e história do movimento trabalhista. Como organizador do livro “Trabalhadores, uni-nos! Antologia Política da I Internacional”, recém lançado no Brasil e que, entre seus 80 textos, traz 69 que são inéditos em português, ele esmiúça detatas e anarquistas, todas com seus respectivos representantes mesmo que em diferentes graus de atuação. No entanto, as concepções de cada grupo e o espaço ocupado por eles na organização foram mudando com o passar dos anos. A greve como instrumento de pressão, por exemplo, de início, dividiu a associação, pois os franceses e os alemães do Partido Social-Democrata eram contra essa alternativa. Mas, a partir de 1866, com a multiplicação das paralisações em diversos países europeus e o sucesso alcançado por elas, todas as tendências da Internacional se convenceram de que se tratava de um recurso fundamental.

“Além disso, ele [Karl Marx] também previu a natureza da economia mundial no início do século 21, com base na sociedade burguesa de 150 anos atrás, fato que explica porque ele vem sendo redescoberto pelos estudiosos e capitalistas”

O envolvimento dos trabalhadores no jogo político, ao longo do tempo, também sofreu mudanças significativas, apesar de muitas correntes serem contra, devido à crença que a batalha deveria se restringir a melhorias das condições econômicas e sociais. Contudo, devido a Comuna de Paris em 1871 e o ensaio de uma democracia operária que durou 40 dias, houve um consenso sobre a necessidade de se encontrar formas de organização política. Em todo esse processo Karl Marx teve um papel central. Embora nunca tenha sido um mobilizador das massas, ele fundamentou teoricamente a I Internacional, mesmo participando de apenas um dos seus vários congressos. Quanto ao pouco tempo de duração da AIT, apesar de muitos acreditarem que seu fim teve uma relação com a rixa pessoal de Marx e Mikhail Bakunin, há diversos outros fatores. Entre eles destaco a repressão à Comuna de Paris em 1871, que deixou cerca de 20 mil mortos; o fortalecimento do Estado-nação com a unificação da Alemanha e da Itália; o próprio congresso da associação realizado em Haia, em 1872, que é descrito como um verdadeiro caos; a transferência, após o congresso da Holanda, da sede da AIT para Nova Iorque em 1872, fato que inquestionavelmente provocou seu esvaziamento; o afastamento de Marx; e a expansão da Internacional para a Espanha e outros países cuja estrutura econômica e social era muito diferente da Inglaterra e da França. Tudo isso, desestabilizou a organização que, desde o início, vivia um equilíbrio delicado, em decorrência das disputas políticas. De qualquer forma, seus poucos anos de existência, serviram de modelo e inspiração para as principais organizações operárias que surgiram depois, já com um programa socialista, que se espalharam pela Europa e, em seguida, pelos mais diversos cantos do mundo para, então, construir novas formas de coordenação supranacionais, com base nos ensinamentos da AIT.

“No momento em que o mundo do trabalho voltou a sofrer explorações semelhantes às do século 19, o projeto da I Internacional retorna com uma extraordinária atualidade, pois ele se tornou mais indispensável que nunca”

LH – O senhor citou a importância de Karl Marx para a I Internacional, mas tanto ele quanto a sua respectiva obra, foram relegados a um segundo plano por um bom tempo. Contudo, com a proximidade dos 150 anos da AIT, ambos voltaram a despertar o interesse, principalmente no meio acadêmico. Por quê?

Musto – Porque, no caso da AIT, formada por diferentes entidades, como sindicatos ingleses, mutualistas franceses, comunistas, exilados democráticos, inúmeros grupos de trabalhadores que se reconheciam em teorias utópicas e anarquistas de Bakunin, Karl Marx teve o dom de conciliar aquilo que parecia inconciliável, com um programa político não excludente, embora firmemente classista, como garantia de um movimento que ambicionava ser de massas, e não sectário. No entanto, eu gostaria de ressaltar que Marx não foi fundador da AIT, como muitos acreditam. Ele esteve na Assembleia realizada no St. Martin’s Hall, mas como personagem mudo. Contudo, reconheceu a potencialidade do evento e pôs-se a trabalhar para o êxito da associação, após ser nomeado, graças ao prestigio que tinha, entre os 34 membros do Comitê Diretor Provisório. Coube-lhe, então, redigir a Mensagem Inaugural e os Estatutos provisórios da Internacional. A partir daí, enquanto valorizava as melhores ideias dos membros da associação, ele ainda eliminava inclinações corporativas e acentos sectários, para consolidar tanto a luta econômica e política quanto a escolha do pensar e do agir em escala internacional. Por conseguinte, a AIT tornou-se um órgão de síntese política presente nos diversos contextos nacionais. Durante esse processo, Marx foi impulsionado a ir além da política econômica, desenvolver ideias e revisá-las, questionar velhas certezas, explorar novas questões e elaborar, de forma mais concreta, sua própria crítica ao capitalismo em termos de definições de sociedade comunista. Além disso, ele também previu a natureza da economia mundial no início do século 21, com base na sociedade burguesa de 150 anos atrás, fato que explica porque ele vem sendo redescoberto pelos estudiosos e capitalistas do setor financeiro globalizado, que lidam com as constantes instabilidades da economia.

“Em todas as situações em que se comete uma injustiça no trabalho e cada vez que um direito é ferido, germina a semente da nova Internacional”

LH – Hoje, o trabalhador de um modo geral tem consciência que a legislação e a exploração de sua mão de obra são semelhantes àquelas praticadas no século 19?

Musto – Alguns sim, mas as demandas são mais sociais. Porém, Marx já dizia que a emancipação da classe operária exigia um processo longo e fatigante. Embora a AIT tenha imprimido na consciência dos proletários a convicção de que a emancipação do trabalho do jugo do capital não podia ser obtida nos limites de um único país, pois era uma questão global, ela ainda conseguiu difundir entre os trabalhadores a consciência de que sua escravidão só teria fim com a superação do modo de produção capitalista e do trabalho assalariado, uma vez que as melhorias no interior do sistema vigente, ainda que devessem ser almejadas, não modificariam sua condição estrutural. Hoje a situação é outra, pois, ao mesmo tempo em que a globalização neoliberal enfraqueceu os movimentos dos trabalhadores, ela também abriu novas possibilidades de comunicação, facilitando a cooperação e a solidariedade. Com a recente crise do capitalismo, que aprofundou ainda mais a divisão entre capital e trabalho, o legado da I Internacional se mostra bem relevante, principalmente na América do Sul, onde o povo se uni em nome da solidariedade que, por sua vez, mostra-se contra a barbárie mundial, os desastres ecológicos resultantes do modo de produção atual, o abismo que separa as riquezas de um minoria de exploradores dos extremos enfrentados pela grande maioria da população mundial, a opressão de gêneros, previsões de guerra, racismo etc. Todos esses fatores impõem ao movimento operário contemporâneo a reorganização urgencial, que se apoia em duas características da Internacional, que são a radicalidade dos objetivos a perseguir e a forma poliédrica de sua estrutura.

“Uma das principais características da associação [AIT] foi a capacidade de aglutinar correntes políticas distintas e até antagônicas, que abrangiam desde reformistas a revolucionários, até social-democratas, mutualistas e anarquistas”

LH – Quais são suas considerações finais sobre o tema e a situação atual, incluindo a vivenciada no Brasil, de um modo geral?

Musto – Há 150 anos, a primeira tentativa de união dos trabalhadores do mundo, levou os operários a compreender que sua emancipação só podia ser conquistada por eles mesmos e por sua capacidade de organizar-se. Portanto, ela nunca poderia ser transferida a terceiros. Porém, hoje, existe um grande abismo que separa as esperanças daquele tempo e a desesperança atual, a determinação antissistêmicas daquelas lutas e a servidão ideológica contemporânea, a solidariedade construída por aquele movimento esporádico e o individualismo do nosso tempo, produto da competição de mercado e das privatizações, a paixão pela política dos trabalhadores que se reuniam em Londres, em 1864, e a resignação e a apatia imperantes na atualidade. Contudo, diante dessas contradições, no momento em que o mundo do trabalho voltou a sofrer explorações semelhantes ao do século 19, o projeto da I Internacional retorna com uma extraordinária atualidade, pois ele se tornou mais indispensável que nunca. Mas para estar à altura do presente, a nova Internacional ainda deverá atender a dois requisitos básicos: a pluralidade e o anticapitalismo.

Trabalhadores, uni-nos! Antologia política da I Internacional

A obra organizada pelo cientista político Marcello Musto, além de celebrar os 150 anos da fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), símbolo inquestionável da luta de classes que, por sua vez, influenciou as ideias de milhões de trabalhadores ao redor do planeta, ainda oferece uma importante oportunidade de compreender suas resoluções e aprender com as experiências de seus protagonistas, para repensar os problemas do presente.

Com textos inéditos, cuidadosamente selecionados e traduzidos, ela configura um arquivo de valor inestimável para a história e a teoria do movimento dos trabalhadores, bem como para a crítica do capitalismo. Dividida em três eixos fundamentais – desenho econômico e político organizativo da futura sociedade projetado pelos protagonistas da AIT; questões internacionais no conturbado contexto europeu das décadas de 1860 e 1870, marcado por guerras de libertação nacional e movimentos insurrecionais (Irlanda e Polônia), de guerra civil (Estados Unidos), de guerra entre nações (franco-prussiana) e da primeira revolução proletária (Comuna de Paris); e a questão política, das suas formas, do debate entre a luta política versus abstencionismo, e do fim do Estado –, além de uma extensa introdução crítica do organizador, que apresenta e contextualiza as diferentes vertentes e resoluções que estavam em jogo, a obra ainda aborda outros temas de relevância, como as questões de organização e forma da luta sindical, crédito, cooperativismo, propriedade coletiva, a questão fundiária, sobre o direito ou abolição de herança, internacionalismo e nacionalismo, enquanto desintoxica, oxigena e municia corações e mentes para a compreensão e o enfrentamento das mazelas do presente e dos desafios futuros do mundo do trabalho.

Published in:

Boitempo

Date Published

16 December, 2014

Author:

Morgana Gomes