O ressurgimento de Marx
Há mais de uma década, jornais e periódicos prestigiosos que contam com um amplo público leitor têm descrito Karl Marx como um teórico previdente, cuja atualidade é constantemente confirmada. Muitos autores com visões progressistas sustentam que suas ideias continuam indispensáveis para qualquer um que acredita ser necessário construir uma alternativa ao capitalismo. Em quase todo lugar, ele é tema de cursos universitários e de conferências internacionais. Seus escritos, reimpressos ou publicados em novas edições, têm reaparecido nas prateleiras das livrarias, e o estudo de sua obra, após vinte anos ou mais de negligência, tem ganhado impulso crescente. Os anos de 2017 e 2018 trouxeram maior intensidade a esse “ressurgimento de Marx”[1], graças a muitas iniciativas ao redor do mundo ligadas ao 150° aniversário da publicação de O capital e o bicentenário do nascimento de Marx.
As ideias de Marx têm mudado o mundo. Apesar da ratificação de suas teorias, tornadas ideologias dominantes e doutrinas de Estado para uma parte considerável da humanidade no século XX, não existe edição completa de todas as suas obras e manuscritos. O principal motivo para isso está no caráter incompleto dos trabalhos de Marx: as obras que ele publicou somam consideravelmente menos que o número total de projetos deixados inacabados, para não falar do imenso Nachlass [espólio] de notas relativas a suas infinitas pesquisas. Marx deixou, então, muito mais manuscritos que aqueles enviados aos tipógrafos. A incompletude foi uma parte inseparável de sua vida: a pobreza por vezes opressiva na qual ele viveu, assim como seus constantes problemas de saúde, se somaram às suas aflições diárias; seu método rigoroso e sua autocrítica impiedosa aumentaram as dificuldades de muitos de seus empreendimentos. Além disso, sua paixão pelo conhecimento permaneceu inalterada ao longo do tempo e sempre o levou a novos estudos. No entanto, seus incessantes trabalhos teriam as consequências teóricas mais extraordinárias para o futuro.
A retomada da publicação da Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA2), a edição histórico-crítica das obras completas de Marx e Friedrich Engels, em 1998, foi de particular relevância para a reavaliação das realizações de Marx. Já vieram a lume mais vinte e oito volumes (quarenta[2] foram publicados entre 1975 e 1989) e outros estão em preparação. A MEGA2 está organizada em quatro seções: (1) todas as obras, artigos e esboços escritos por Marx e Engels (com exceção de O capital); (2) O capital e todos seus materiais preparatórios; (3) a correspondência, que consiste em 4.000 cartas escritas por Marx e Engels e 10.000 escritas a eles por outros, um grande número das quais publicado pela primeira vez na MEGA2; e (4) os excertos, anotações e notas marginais. Essa quarta seção atesta os trabalhos verdadeiramente enciclopédicos de Marx: desde seu tempo na universidade, era seu hábito compilar estratos dos livros que lia[3], entremeando-os frequentemente com reflexões que esses estratos lhe sugeriam. O legado literário de Marx contém cerca de duzentos cadernos de notas. Eles são essenciais para a compreensão da gênese de sua teoria e daqueles elementos que fora incapaz de desenvolver do modo que gostaria. Os excertos preservados, que cobrem o longo intervalo de tempo entre 1838 e 1882, estão escritos em oito idiomas (alemão, grego antigo, latim, francês, inglês, italiano, espanhol e russo) e se referem às mais variadas disciplinas. Eles foram tomados de obras de filosofia, história da arte, religião, política, direito, literatura, história, economia política, relações internacionais, tecnologia, matemática, fisiologia, geologia, mineralogia, agronomia, antropologia, química e física – incluindo não apenas livros, jornais e artigos de periódicos, mas também atas parlamentares, bem como estatísticas governamentais e relatórios. Essa imensa reserva de conhecimento, da qual muito foi publicado em anos recentes ou ainda aguarda ser impresso, foi o canteiro de obras para a teoria crítica de Marx e a MEGA2 deu acesso inédito a ele[4].
Esses materiais inestimáveis – muitos disponíveis apenas em alemão e, portanto, confinados em pequenos círculos de pesquisadores – nos mostram um autor muito diferente daquele que vários críticos, ou autodenominados discípulos, apresentaram por tanto tempo. De fato, as novas aquisições textuais presentes na MEGA2 possibilitam dizer que, dos clássicos do pensamento político, econômico e filosófico, Marx é o autor cujo perfil mais mudou nas décadas iniciais do século XXI. A nova configuração política decorrente da implosão da União Soviética também contribuiu para essa nova percepção, pois o fim do marxismo-leninismo finalmente libertou a obra de Marx dos grilhões de uma ideologia que dista anos-luz de sua concepção de sociedade.
Pesquisas recentes têm refutado as várias abordagens que reduzem a concepção marxiana de sociedade comunista ao desenvolvimento superior das forças produtivas. Por exemplo, tem sido mostrada a importância que Marx atribuiu à questão ecológica: ele denunciou repetidas vezes o fato de que a expansão do modo capitalista de produção aumenta não apenas o roubo do trabalho dos trabalhadores, mas também a pilhagem dos recursos naturais. Marx se aprofundou em várias outras questões que, embora frequentemente subestimadas, ou até mesmo ignoradas, por estudiosos de sua obra, estão ganhando importância crucial para a agenda política de nosso tempo. Entre essas questões estão a liberdade individual nas esferas econômica e política, emancipação de gênero, a crítica do nacionalismo, o potencial emancipatório da tecnologia, e formas de propriedade coletiva não controladas pelo Estado. Assim, trinta anos após a queda do muro de Berlim, tornou-se possível ler um Marx muito diferente do teórico dogmático, economicista e eurocêntrico que circulou por tanto tempo entre nós.
Novas descobertas sobre a gênese da concepção materialista da história
Em fevereiro de 1845, após intensos 15 meses em Paris que foram cruciais para sua formação política, Marx foi obrigado a mudar para Bruxelas, onde foi autorizado a residir sob a condição de que ele “não publique nada sobre a política atual”[5]. Durante os três anos que passou na capital belga, ele prosseguiu de modo profícuo com seus estudos de economia política e concebeu a ideia de escrever, junto com Engels, Joseph Weydemeyer e Moses Hess, uma “crítica da moderna filosofia alemã, tal como exposta pelos seus representantes Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner, e do socialismo alemão, tal como exposto por seus vários profetas”[6]. O texto resultante, postumamente publicado sob o título A ideologia alemã, tinha um duplo objetivo: combater as últimas formas do neo-hegelianismo na Alemanha, e então, como escreveu Marx ao editor Carl Wilhelm Julius Leske, “preparar o público para o ponto de vista adotado em minha Economia, que é diametralmente oposto à ciência alemã, passada e presente”[7]. Esse manuscrito, sobre o qual ele trabalhou até junho de 1846, nunca foi terminado, mas o auxiliou a elaborar de modo mais nítido, ainda que não em uma forma definitiva, aquilo que, quarenta anos depois, Engels definiu para o público mais amplo como “a concepção materialista da história”[8].
A primeira edição de A ideologia alemã, publicada em 1932, bem como todas as versões posteriores que apenas incorporaram pequenas modificações, foram enviadas às gráficas com a aparência de um livro completo. Em particular, os editores desse manuscrito de fato inacabado criaram a falsa impressão de que A ideologia alemã incluía um capítulo inicial essencial sobre Feuerbach, no qual Marx e Engels expunham exaustivamente as leis do “materialismo histórico” (um termo nunca usado por Marx). De acordo com Althusser, esse foi o lugar onde eles conceituaram “uma inequívoca ruptura epistemológica” com seus escritos anteriores (Althusser, s/d, p. 33). A ideologia alemã logo se tornou um dos mais importantes textos filosóficos do século XX. De acordo com Henri Lefebvre, ele expôs as “teses fundamentais do materialismo histórico” (Lefebvre, 1968, p. 71). Maximilien Rubel defendia que esse “manuscrito contém a demonstração mais elaborada do conceito crítico e materialista de história” (Rubel, 1980, p. 13). David McLellan foi igualmente incisivo em sustentar que ele “continha a mais detalhada consideração de Marx acerca de sua concepção materialista da história” (McLellan, 1975, p. 37).
Graças ao volume I/5 da MEGA2, “Karl Marx – Friedrich Engels, Deutsche Ideologie. Manuskripte und Drucke (1845-1847)”[9], muitas dessas reivindicações podem agora ser suavizadas e A ideologia alemã, restituída à sua incompletude original. Essa edição – que compreende 17 manuscritos com um total de 700 páginas mais o aparato crítico de 1200 páginas, fornecendo variações e correções autorais e indicando a paternidade de cada seção – estabelece de uma vez por todas o caráter fragmentário do texto[10]. A falácia do “comunismo científico” característica do século XX e todas as instrumentalizações de A ideologia alemã recordam um trecho a ser encontrado no próprio texto, pois que a sua crítica convincente da filosofia alemã dos tempos de Marx ressoa, também, uma advertência amarga contra futuras tendências exegéticas: “Havia uma mistificação não apenas em suas respostas, mas também em suas perguntas”[11].
No mesmo período, o jovem revolucionário nascido em Trier expandiu os estudos que havia iniciado em Paris. Ele passou os meses de julho e agosto de 1845 em Manchester a mergulhar na vasta literatura econômica de língua inglesa e a compilar nove cadernos de estratos (os assim chamados Cadernos de Manchester), majoritariamente a partir de manuais de economia política e livros sobre história econômica. O volume IV/4 da MEGA2, publicado em 1988, contém os cinco primeiros desses cadernos, junto com três cadernos de anotações de Engels do mesmo período em Manchester[12]. O volume IV/5, “Karl Marx – Friedrich Engels, Exzerpte und Notizen. Juli 1845 bis Dezember 1850”[13], completa essa série de textos e disponibiliza aos pesquisadores suas partes antes não publicadas. Ele inclui os cadernos 6, 7, 8 e 9, que contém os excertos marxianos de 16 obras de economia política. O mais considerável desse grupo adveio de Labour’s wrong and Labour’s Remedy [Os males do trabalho e seu remédio] (1839), de John Francis Bray, e de quatro textos de Robert Owen, em particular de seu Book of the New Moral World [Livro do novo mundo moral] (1840-1844), todos os quais evidenciam o grande interesse de Marx à época pelo socialismo inglês e seu profundo respeito por Owen, um autor que muitos marxistas têm precipitadamente descartado como “utópico”. O volume termina com cerca de vinte páginas escritas por Marx entre 1846 e 1850, além de algumas notas de estudo de Engels do mesmo período.
Esses estudos sobre teoria socialista e economia política não eram um entrave para o habitual engajamento político de Marx e Engels. As mais de 800 páginas do recentemente publicado volume I/7, “Karl Marx – Friedrich Engels, Werke, Artikel, Entwürfe. Februar bis Oktober 1848”[14], permite-nos estimar a escala disso em 1848, um dos anos mais desgastantes em termos de atividade política e jornalística das vidas dos autores do Manifesto do partido comunista. Após um movimento revolucionário de extensão e intensidade inéditas mergulhar a ordem política e social da Europa continental em uma crise, os governos vigentes tomaram todas as contramedidas possíveis para pôr um fim às insurreições. O próprio Marx sofreu as consequências e foi expulso da Bélgica em março daquele ano. Contudo, uma república acabara de ser proclamada na França, e Ferdinand Flocon, um ministro do governo provisório, convidou Marx a retornar a Paris: “Caro e bravo Marx, (…) a tirania o baniu, mas a França livre reabrirá suas portas para ti”. Naturalmente, Marx colocou de lado seus estudos sobre economia política e assumiu a atividade jornalística em apoio à revolução, ajudando, assim, no traçado de um rumo político apropriado. Depois de um breve período em Paris, ele mudou, em abril, para a Renânia e, dois meses mais tarde, começou a editar a Neue Rheinische Zeitung [Nova Gazeta Renana], que, nesse meio tempo, havia sido fundada em Colônia. Uma campanha intensa em suas colunas deu suporte à causa dos insurgentes e incitou o proletariado a promover “a revolução social e republicana”[15].
Quase todos os artigos presentes na Neue Rheinische Zeitung foram publicados de modo anônimo. Um dos méritos desse volume é ter atribuído corretamente a autoria de 36 textos a Marx ou a Engels, enquanto coletâneas anteriores haviam nos deixado em dúvida quanto a quem escreveu qual peça. De um total de 275 artigos, 125 são integralmente impressos aqui pela primeira vez em uma edição das obras de Marx e Engels. Um apêndice apresenta, ainda, 16 documentos interessantes, contendo relatos de algumas de suas intervenções nas conferências da Liga dos Comunistas, nas assembleias da Sociedade Democrática de Colônia e na Associação de Viena. Quem tiver interesse pela atividade política e jornalística de Marx durante 1848, o “ano da revolução”, encontrará aqui um material muito valioso para aprofundar seu conhecimento.
O capital: a crítica inacabada
O movimento revolucionário que se ergueu por toda a Europa em 1848 foi derrotado dentro de um curto espaço de tempo e, em 1849, após duas ordens de expulsão da Prússia e da França, Marx não teve outra opção além de atravessar o Canal da Mancha. Ele permaneceria na Inglaterra como uma pessoa exilada e apátrida pelo resto de sua vida, mas a reação europeia não poderia tê-lo confinado em um lugar melhor para escrever sua crítica da economia política. Àquela época, Londres era o principal centro econômico e financeiro do mundo, o “demiurgo do cosmo burguês”[16], e, portanto, o lugar mais favorável a partir do qual se podia observar os últimos desenvolvimentos econômicos da sociedade capitalista. Ele também se tornou correspondente do New-York Tribune, o jornal com maior circulação nos Estados Unidos da América.
Marx esperou por muitos anos a eclosão de uma nova crise e, quando ela se materializou em 1857, dedicou muito do seu tempo à análise de suas características principais. O volume I/16, “Karl Marx – Friedrich Engels, Artikel Oktober 1857 bis Dezember 1858”[17], inclui 84 artigos que ele publicou entre o outono de 1857 e o fim de 1858 no New-York Tribune, dentre os quais aqueles em que expressa suas primeiras reações ao público financeiro de 1857. Não obstante o fato de que o diário americano publicava frequentemente editoriais não assinados, a pesquisa para esse novo volume da MEGA2 possibilitou atribuir mais dois artigos a Marx, bem como incluir quatro artigos que foram substancialmente modificados pelos editores e outros três cuja origem permanece incerta.
Movido por uma desesperada necessidade de melhorar sua situação econômica, Marx também ingressou no comitê editorial do The New American Cyclopædia e concordou em redigir uma certa quantidade de verbetes para esse projeto (o volume I/16 contém 39 deles). Mesmo que o pagamento de dois dólares por página fosse muito baixo, ainda assim era uma receita que ingressava em suas desastrosas finanças. Além disso, ele confiou a maioria do trabalho a Engels, de modo que pudesse dedicar mais tempo aos seus escritos econômicos.
Nesse período, o trabalho de Marx foi notável e abrangente. Paralelamente a seu compromisso jornalístico, ele preencheu, entre agosto de 1857 e maio de 1858, os oito cadernos celebremente conhecidos como Grundrisse. Mas ele também colocou a si mesmo a extenuante tarefa de um estudo analítico da primeira crise econômica mundial. O volume IV/4, “Karl Marx, Exzerpte, Zeitungsausschnitte und Notizen zur Weltwirtschaftskrise (Krisenhefte). November 1857 bis Februar 1858”[18], contribui de modo decisivo para nosso conhecimento acerca de um dos intervalos mais profícuos da produção teórica de Marx. Ele descreveu seu surto febril de atividade em uma carta a Engels de dezembro de 1857:
Tenho trabalhado demais, geralmente até às 4 da manhã. O trabalho é duplo: 1. A elaboração das linhas fundamentais [Grundrisse] da economia política. (Em favor do público, é absolutamente essencial adentrar a matéria até o fundo, assim como para mim, individualmente, é absolutamente essencial se livrar desse pesadelo.) 2. A presente crise. Além dos artigos para a [New-York] Tribune, o que faço é apenas registrá-la, o que, entretanto, toma um tempo considerável. Penso que em algum momento da primavera devemos escrever juntos um panfleto sobre o caso, como um lembrete ao público alemão de que continuamos lá como sempre, e sempre os mesmos[19].
Portanto, o plano de Marx era trabalhar simultaneamente em dois projetos: um trabalho teórico sobre a crítica do modo de produção capitalista, e um livro mais estritamente atual sobre as vicissitudes da crise em curso. Essa é a razão pela qual Marx, diferentemente do que ocorre em volumes anteriores similares, não compila, nos assim chamados Cadernos sobre a Crise, estratos de obras de outros economistas; antes, coletou uma grande quantidade de boletins de notícias sobre os maiores colapsos bancários, sobre as variações nos preços do mercado acionário, mudanças nos padrões dos fluxos comerciais, taxas de desemprego e produção industrial. A atenção particular dispensada a essa última distinguiu sua análise em relação àquela de muitos outros que atribuíam às crises a concessão deficiente de crédito e o aumento nos fenômenos especulativos. Marx dividiu suas notas em três cadernos distintos. No primeiro e mais curto caderno, intitulado “1857 France”, ele coletou dados sobre a situação do comércio francês e as principais medidas tomadas pelo Banco da França. O segundo, o “Livro sobre a Crise de 1857”, tinha quase o dobro do tamanho do primeiro e lidava principalmente com o Reino Unido e o mercado monetário. Temas similares foram tratados no terceiro caderno, o “Livro sobre a Crise Comercial”. Pouco maior que o segundo, Marx anotara nesse caderno dados e notícias sobre relações industriais, a produção de matérias-primas e o mercado de trabalho.
O trabalho de Marx foi, como sempre, rigoroso: ele copiou de mais de uma dúzia de periódicos e jornais, em ordem cronológica, as partes mais interessantes de vários artigos e qualquer outra informação que ele pudesse usar para condensar aquilo que estava acontecendo. Sua principal fonte foi o semanário The Economist, de onde extraiu cerca de metade de suas notas, embora também consultasse frequentemente a Morning Star, The Manchester Guardian e The Times. Todos os estratos foram compilados em inglês. Nesses cadernos, Marx não se deteve na transcrição dos principais boletins de notícias a respeito dos Estados Unidos e do Reino Unido. Ele também rastreou os eventos mais significantes em outros países europeus – em particular França, Alemanha, Áustria, Itália e Espanha – e interessou-se vigorosamente por outras partes do mundo, em especial Índia e China, o Extremo Oriente, Egito e, até mesmo, Brasil e Austrália.
Com o passar das semanas, Marx desistiu da ideia de publicar um livro sobre a crise e concentrou todas as suas energias em seu trabalho teórico, a crítica da economia política, que, do seu ponto de vista, não poderia admitir mais nenhum atraso. Ainda assim, os Cadernos sobre a crise permanecem particularmente úteis para a refutação de uma falsa ideia sobre os principais interesses de Marx nesse período. Em uma carta a Engels do começo de 1858, ele escreveu que, “quanto ao método”, lançar mão da “Lógica de Hegel foi de grande utilidade” para seu trabalho, e que, além disso, queria destacar seu “aspecto racional”[20]. Com base nisso, alguns intérpretes da obra de Marx têm concluído que, ao escrever os Grundrisse, ele gastou um tempo considerável estudando a filosofia hegeliana. Mas a publicação do volume IV/14 deixa muito claro que sua principal preocupação à época era com a análise empírica dos eventos ligados à grande crise econômica que há tanto tempo estava prevendo.
Os esforços infatigáveis de Marx para completar sua “crítica da economia política” são, ainda, o tema principal do volume III/12, “Karl Marx – Friedrich Engels, Briefwechsel. Januar 1862 bis September 1864”[21], que contém sua correspondência do começo de 1862 até a fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores. Das 425 cartas preservadas, 112 são correspondências entre Marx e Engels, enquanto 35 foram escritas por eles para terceiros, e 278 remetidas a eles por terceiros (sendo 227 cartas desse grupo publicadas aqui pela primeira vez). A inclusão das últimas – a diferença mais significante em relação a todas as edições anteriores – constitui um verdadeiro tesouro para o leitor interessado, dado que fornece uma gama de novas informações sobre eventos e teorias que Marx e Engels aprenderam com mulheres e homens com quem compartilhavam um compromisso político.
Como todos os outros volumes de correspondência da MEGA2, esse também termina com um registro de cartas escritas por - ou endereçadas a - Marx e Engels que não deixaram mais do que vestígios atestando sua existência. Elas chegam a um total de 125 cartas, quase um quarto do número que sobreviveu, e incluem 57 escritas por Marx. Nesses casos, mesmo o pesquisador mais exigente nada pode fazer além de especular sobre várias hipóteses conjecturais.
Entre os principais pontos de discussão presentes na correspondência de Marx no começo dos anos 1860 estavam a guerra civil norte-americana, a revolta polonesa contra a ocupação russa, e o nascimento do Partido Social-Democrata da Alemanha inspirado pelos princípios de Ferdinand Lassalle. No entanto, um tema constantemente recorrente era sua luta para progredir na escrita de O capital.
Nesse período, Marx se lançou em uma nova área de pesquisa: as Teorias sobre o mais-valor. Em mais de dez cadernos, ele dissecou minuciosamente a abordagem dos maiores economistas que lhe precederam, sendo sua ideia básica a de que “todos os economistas compartilham o erro de examinar o mais-valor não como tal, não em sua forma pura, mas nas formas particulares do lucro e da renda”[22]. Entrementes, a situação econômica de Marx continuava desesperadora. Em junho de 1862 escreveu a Engels: “Todo dia minha esposa diz desejar que ela e as crianças estivessem seguras em seus túmulos, e realmente não posso culpá-la, pois as humilhações, tormentos e inquietações que se passa em tal situação são, de fato, indescritíveis”. A situação era tão extrema que Jenny decidiu vender alguns livros da biblioteca pessoal de seu marido – ainda que ela não tenha conseguido encontrar ninguém que quisesse comprá-los. Contudo, Marx conseguiu “trabalhar duro” e expressou uma nota de satisfação a Engels: “estranho dizer, mas minha massa cinzenta está funcionando melhor em meio à pobreza circundante do que funcionava há anos”[23]. Em setembro, Marx escreveu a Engels que poderia conseguir um emprego “em um escritório ferroviário” no ano novo[24]. Em dezembro, repetiu a seu amigo Ludwig Kugelmann que as coisas haviam se tornado tão desesperadoras que ele tinha “decidido se tornar um ‘homem prático’”; nada deu certo, no entanto. Marx relatou com seu típico sarcasmo: “Felizmente – ou talvez teria que dizer infelizmente? – não consegui o cargo por conta da minha caligrafia ruim”[25].
Paralelamente às tensões financeiras, Marx sofreu por demais com problemas de saúde. Não obstante, do verão de 1863 a dezembro de 1865, ele embarcou na continuidade da edição das várias partes nas quais ele havia decidido subdividir O capital. Ao fim e ao cabo, ele conseguiu elaborar o primeiro esboço do Livro I; o único manuscrito do Livro III, no qual redigira sua única consideração acerca do processo completo da produção capitalista; e uma versão inicial do Livro II, contendo a primeira apresentação geral do processo de circulação do capital.
O volume II/11 da MEGA2, “Karl Marx, Manuskripte zum zweiten Buch des ‘Kapitals’ 1868 bis 1881”[26], contém todos os manuscritos finais relativos ao Livro II de O capital que Marx esboçou entre 1868 e 1881. Nove desses dez manuscritos não haviam sido publicados até então. Em outubro de 1867, Marx retomou o Livro II de O capital, mas vários problemas de saúde forçaram-no a outra súbita interrupção. Alguns meses depois, quando foi capaz de prosseguir com o trabalho, já haviam se passado cerca de três anos desde a última versão que ele escrevera. Marx finalizou os primeiros dois capítulos durante a primavera de 1868, além de um grupo de manuscritos preparatórios – sobre a relação entre mais-valor e taxa de lucro, a lei da taxa de lucro, e as metamorfoses do capital – que o ocuparam até o fim do ano. A nova versão do terceiro capítulo foi terminada no decurso dos dois anos seguintes. O volume II/11 se encerra com uma série de textos curtos que o já envelhecido Marx escreveu entre fevereiro de 1877 e a primavera de 1881.
Os esboços do Livro II de O capital, que foram deixados inconclusivos, apresentam uma série de problemas teóricos. No entanto, a versão final do Livro II foi publicada por Engels em 1885 e aparece, agora, no volume II/13 da MEGA2 intitulado “Karl Marx, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Zweiter Band. Herausgegeben von Friedrich Engels. Hamburg 1885”[27].
Por fim, o volume II/4.3, “Karl Marx, Ökonomische Manuskripte 1863-1868. Teil 3”[28], completa a segunda seção da MEGA². Esse volume, que dá sequência aos prévios II/4.1 e II/4.2[29], contém 15 manuscritos concebidos entre o outono de 1867 e o fim de 1868, os quais permaneceram inéditos até então. Sete desses manuscritos são fragmentos de esboços do Livro III de O capital; apresentam um caráter altamente fragmentário e Marx nunca conseguiu atualizá-los de modo a refletir o progresso de sua pesquisa. Outros três manuscritos correspondem ao Livro II, enquanto os cinco remanescentes lidam com questões concernentes à interdependência entre os Livros II e III e incluem excertos comentados retirados das obras de Adam Smith e Thomas Malthus. Os últimos são particularmente instigantes para aqueles economistas interessados na teoria marxiana da taxa de lucro e em suas ideias sobre a teoria do preço. Estudos filológicos ligados à preparação desse volume também mostraram que o manuscrito original do Livro I de O capital (do qual o “Capítulo seis. Resultados do processo imediato de produção” era considerado a única parte preservada) data, na verdade, do período de 1863-1864, e que Marx o cortou e colou na cópia que ele preparava para publicação[30].
Com a publicação do volume II/4.3 da MEGA2 todos os textos complementares relacionados a O capital se tornaram disponíveis: da famosa “Introdução”, escrita em julho de 1857 durante uma das maiores quebras na história do capitalismo, até os últimos fragmentos redigidos na primavera de 1881. Estamos falando de 15 volumes, mais outros tantos tomos vultosos que constituem um formidável aparato crítico para o texto principal. Eles incluem todos os manuscritos do fim dos anos 1850 e início dos 1860, a primeira versão de O capital publicada em 1867 (partes das quais seriam modificadas em edições subsequentes), a tradução francesa revisada por Marx que apareceu entre 1872 e 1875, e todas as alterações feitas por Engels nos manuscritos dos Livros II e III. Junto a isso, a coleção clássica dos três livros de O capital aparece positivamente diminuta. Não é exagero dizer que só agora podemos compreender completamente os méritos, limites e incompletudes da magnum opus de Marx.
O trabalho editorial que Engels levou a cabo após a morte de seu amigo, isto é, o de preparar as partes não terminadas de O capital para publicação, foi extremamente complexo. Os vários manuscritos, esboços e fragmentos dos Livros II e III, escritos entre 1864 e 1881, correspondem a aproximadamente 2.350 páginas da MEGA2. Engels publicou com êxito o Livro II em 1885 e o III, em 1894. Contudo, é preciso ter em mente que esses dois livros surgiram da reconstrução de textos incompletos, frequentemente formados por material heterogêneo. Eles foram escritos em momentos distintos e, assim, incluem versões diferentes, e por vezes contraditórias, das ideias de Marx.
A Internacional, as pesquisas de Marx após O capital, e os trabalhos finais de Engels
Imediatamente após a publicação de O capital, Marx retomou a atividade militante e assumiu um compromisso permanente com o trabalho da Associação Internacional dos Trabalhadores. Essa fase de sua biografia política está documentada no volume I/21, “Karl Marx – Friedrich Engels, Werke, Artikel, Entwürfe. September 1867 bis März 1871”[31], que contém mais de 150 textos e documentos do período de 1867-1871, bem como as atas de 169 reuniões do Conselho Geral em Londres nas quais Marx interveio, atas essas que foram omitidas por todas as edições anteriores dos trabalhos de Marx e Engels[32]. Enquanto tal, esse volume provê material de pesquisa para anos cruciais da vida da Internacional.
Desde os primeiros dias de 1864 as ideias de Proudhon eram hegemônicas na França, na Suíça francófona e na Bélgica e os mutualistas – nome pelo qual seus seguidores eram conhecidos – eram a ala mais moderada da Internacional. Resolutamente hostis à intervenção estatal em qualquer campo, eles se opunham à socialização da terra e dos meios de produção, bem como a qualquer uso do instrumento de greve. Os textos publicados nesse volume mostram como Marx teve um papel central na longa luta para reduzir a influência de Proudhon na Internacional. Eles incluem documentos relacionados à preparação dos congressos de Bruxelas (1868) e da Basileia (1869), onde a Internacional fez seu primeiro pronunciamento explícito sobre a socialização dos meios de produção por autoridades estatais e a favor do direito de abolir a propriedade individual sobre a terra. Isso marcou uma vitória importante para Marx e a primeira aparição de princípios socialistas no programa político de uma importante organização de trabalhadores.
Além do programa político da Associação Internacional dos Trabalhadores, o fim dos anos 1860 e início dos 1870 foram ricos em conflitos sociais. Muitos trabalhadores que participavam de ações de protesto decidiram contactar a Internacional, cuja reputação se espalhava cada vez mais, a fim de pedir apoio a suas lutas. Nesse período surgiram, ainda, algumas seções de trabalhadores irlandeses na Inglaterra. Marx estava preocupado com a divisão que o nacionalismo brutal havia produzido nas fileiras do proletariado e, em um documento que veio a ser conhecido como “Confidential Communication”, ele enfatizou que “a burguesia inglesa não apenas explorou a miséria irlandesa para deteriorar a situação da classe trabalhadora na Inglaterra por meio da imigração forçada de irlandeses pobres”; ela também se provou capaz de dividir os trabalhadores “em dois campos hostis”[33]. No seu modo de entender, “uma nação que escraviza outra forja suas próprias correntes”[34] e a luta de classes não poderia ignorar um assunto tão decisivo. Outro tema importante no volume, tratado com particular atenção nos escritos de Engels para The Pall Mall Gazette, foi a oposição à Guerra Franco-Prussiana de 1870-1871.
O trabalho de Marx na Associação Internacional dos Trabalhadores perdurou entre 1864 e 1872, e o novíssimo volume IV/18, “Karl Marx – Friedrich Engels, Exzerpte und Notizen. Februar 1864 bis Oktober 1868, November 1869, März, April, Juni 1870, Dezember 1872”[35], fornece a parte até então desconhecida dos estudos que ele realizara durante esses anos. A pesquisa de Marx ocorreu tanto próximo à impressão do Livro I de O capital quanto após 1867, enquanto preparava os livros II e III para publicação. Esse volume da MEGA² consiste em cinco livros de excertos e quatro cadernos com resumos de mais de uma centena de obras publicadas, relatórios de debates parlamentares e artigos jornalísticos. A parte mais considerável e teoricamente importante desses materiais envolve a pesquisa de Marx sobre agricultura, sendo, aqui, seus principais interesses a renda da terra, as ciências naturais, as condições agrárias em vários países europeus e nos Estados Unidos, Rússia, Japão e Índia, e os sistemas de posse da terra em sociedades pré-capitalistas.
Marx leu atentamente Die Chemie in ihrer Anwendung auf Agricultur und Physiologie (1843) [A química em sua aplicação na agricultura e fisiologia], um livro escrito pelo cientista alemão Justus von Liebig e que ele considerava essencial, uma vez que permitiu-lhe modificar sua crença de que as descobertas científicas da agricultura moderna haviam resolvido o problema da regeneração do solo. Desde então, ele apresentou um interesse cada vez mais vivo naquilo que hoje chamaríamos de “ecologia”, em particular na erosão do solo e no desmatamento. Dentre os outros livros que impressionaram Marx fortemente nesse período, também deveria ser atribuído um lugar especial à Einleitung zur Geschichte der Mark-, Hof-, Dorf-, und Stadt-Verfassung und der öffentlichen Gewalt (1854) [Introdução à história da constituição da marca, sítio, povoado e cidade e da autoridade pública], escrito pelo teórico político e historiador jurídico Georg Ludwig von Maurer. Em uma carta a Engels, ele disse que achou os livros de Maurer “extremamente relevantes”, uma vez que eles abordaram de um jeito completamente diferente “não apenas a era primitiva, mas também todo o desenvolvimento posterior das cidades imperiais livres, do privilégio da posse dos proprietários rurais, da autoridade pública, e a luta entre o campesinato livre e a servidão”[36]. Ademais, Marx endossou a demonstração de Maurer de que a propriedade privada da terra pertencia a um período histórico preciso e não poderia ser considerada como uma característica natural da civilização humana. Por fim, Marx estudou em profundidade três obras alemãs escritas por Karl Fraas: Klima und Pflanzenwelt in der Zeit. Ein Beitrag zur Geschichte beider (1847) [Clima e reino vegetal no tempo. Uma contribuição para a história de ambas], Geschichte der Landwirtschaft (1852) [História da agricultura] e Die Natur der Landwirtschaft (1857) [A natureza da agricultura]. Ele achou a primeira dessas obras “muito interessante”, especialmente ao se referir à parte em que Fraas demonstra que o “clima e a flora mudam historicamente”. Marx o descreveu como um “darwinista antes de Darwin”, que admitiu que “mesmo as espécies têm se desenvolvido historicamente”. Ele foi surpreendido, ainda, pelas considerações ecológicas de Fraas e sua preocupação correlata de que “o cultivo – quando prossegue em crescimento natural e não é controlado conscientemente (como um burguês, naturalmente ele não alcança esse ponto) – deixa desertos atrás de si”. Marx poderia detectar nisso tudo “uma tendência socialista inconsciente”[37].
Após a publicação dos assim chamados Cadernos sobre agricultura, pode-se argumentar com maior grau de certeza que, se Marx tivesse tido forças para finalizar os últimos dois livros de O capital, a ecologia teria tido um papel muito mais importante em seu pensamento[38]. Evidentemente, a crítica ecológica de Marx era anticapitalista em seu enfoque e, para além das esperanças que ele colocava no progresso científico, envolvia o questionamento do modo de produção como um todo.
A magnitude dos estudos marxianos sobre as ciências naturais se tornou completamente visível desde a publicação do volume IV/26, “Karl Marx, Exzerpte und Notizen zur Geologie, Mineralogie und Agrikulturchemie. März bis September 1878”[39]. Na primavera e no verão de 1878, a geologia, mineralogia e agroquímica eram mais centrais para os estudos de Marx do que a economia política. Ele compilou estratos de uma série de livros, incluindo The natural history of the raw materials of commerce (1872) [A história natural das matérias-primas do comércio], de John Yeats; Das Buch der Natur (1848) [O livro da natureza], do químico Friedrich Schoedler; e Elements of agricultural chemistry and geology (1858) [Elementos de química agrária e geologia], do químico e mineralogista James Johnston. Entre junho e início de setembro, atracou-se com The student’s manual of geology (1857) [Manual do estudante de geologia] de Joseph Jukes[40], do qual copiou o maior número de estratos. O foco principal desses estratos são questões de metodologia científica, os estágios do desenvolvimento da geologia como disciplina, e sua utilidade para a produção industrial e agrária.
A assimilação de tais questões despertou em Marx a necessidade de desenvolver suas ideias a respeito do lucro, algo com o qual havia se ocupado contínua e intensivamente em meados dos anos 1860, quando escreveu o esboço da parte sobre “A transformação do excedente do lucro em renda da terra”, constituinte do Livro III de O capital. Alguns dos resumos de textos sobre ciências naturais tinham o objetivo de lançar uma luz mais intensa sobre o material em estudo. Mas outros excertos, mais voltados a aspectos teóricos, eram destinados à conclusão do Livro III. Engels recordou mais tarde que Marx “vasculhou (…) a pré-história, agronomia, propriedade russa e americana da terra, geologia etc., para desenvolver a seção sobre a renda da terra no Livro III de O capital em uma profundidade (…) nunca tentada”[41]. Esses volumes da MEGA2 são ainda mais importantes porque servem para desacreditar o mito, repetido em uma série de biografias e estudos sobre Marx, de que após O capital ele havia satisfeito sua curiosidade intelectual e desistido completamente de novos estudos e pesquisas[42].
Por fim, três livros da MEGA2 publicados na última década dizem respeito ao último Engels. O volume I/30, “Friedrich Engels, Werke, Artikel, Entwürfe. Mai 1883 bis September 1886”[43], contém 43 textos escritos por ele nos três anos que se passaram após a morte de Marx. Dos 29 textos mais importantes dentre esses, 17 consistem em peças jornalísticas que apareceram em alguns dos principais jornais da imprensa proletária europeia. Embora nesse período estivesse especialmente absorvido pela edição dos manuscritos incompletos de O capital deixados por Marx, Engels não se furtou de intervir em uma série de questões políticas e teóricas candentes. Lançou, ainda, uma obra polêmica que mirava o reaparecimento do idealismo nos círculos acadêmicos alemães, a saber, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1886). Os outros 14 textos, publicados nesse volume como um apêndice, são algumas das traduções do próprio Engels e uma série de artigos assinados por outros autores em colaboração com ele.
A MEGA2 também publicou um novo conjunto de correspondências de Engels. O volume III/30, “Friedrich Engels, Briefwechsel. Oktober 1889 bis November 1890”[44], apresenta 406 cartas preservadas do total de 500 ou mais que ele escreveu entre outubro de 1889 e novembro de 1890. Além do mais, a inclusão inédita de cartas de outros correspondentes possibilita apreciar de modo mais profundo a contribuição de Engels para o crescimento dos partidos proletários na Alemanha, na França e no Reino Unido, no que diz respeito a toda uma gama de questões teóricas e organizacionais. Alguns dos itens em questão se referem ao nascimento da Segunda Internacional, cujo congresso de fundação ocorreu em 14 de julho de 1889, e aos muitos debates nela em curso.
Finalmente, o volume I/32, “Friedrich Engels, Werke, Artikel, Entwürfe. März 1891 bis August 1895”[45], reúne escritos dos últimos quatro anos e meio da vida de Engels. Há uma série de peças jornalísticas escritas para os maiores jornais socialistas da época, incluindo Die Neue Zeit, Le Socialiste e Critica Sociale, bem como prefácios e posfácios a várias reimpressões das obras de Marx e Engels, transcrições de discursos, entrevistas e saudações a congressos partidários, relatos de conversas, documentos esboçados por Engels em colaboração com outros, e uma série de traduções.
Portanto, esses três volumes se revelarão extremamente úteis para um estudo aprofundado das contribuições teóricas e políticas tardias de Engels. As numerosas publicações e conferências internacionais programadas para o bicentenário de seu nascimento (1820-2020) certamente não falharão em sondar esses vinte anos que se passaram após a morte de Marx, período em que dedicou suas energias para a difusão do marxismo.
Outro Marx?
Que Marx emerge da nova edição histórico-crítica de seus trabalhos? Em certos aspectos, ele difere do pensador que muitos discípulos e oponentes apresentaram ao longo dos anos – sem falar das estátuas de pedra encontradas em praças públicas sob regimes não-livres da Europa Oriental, estátuas essas que o representavam apontando para o futuro com imperiosa certeza. Por outro lado, poderia ser enganoso trazer à baila a ideia – como fazem aqueles que, de modo muito entusiástico, saúdam um “Marx desconhecido” após cada novo texto que pela primeira vez surge – de que a pesquisa recente virou do avesso tudo aquilo que já se conhecia sobre ele. O que a MEGA2 fornece é, antes, a base textual para repensar um Marx diferente: diferente não porque a luta de classes abandona seu pensamento (como alguns acadêmicos desejariam, em uma variação do antigo bordão do “Marx economista” contra o “Marx político” que busca, em vão, apresentá-lo como um clássico inócuo); mas radicalmente diferente do autor que foi dogmaticamente convertido em fons et origo [fonte e origem] do “socialismo realmente existente” e supostamente fixado apenas no conflito classista.
Os novos avanços alcançados no âmbito dos estudos marxianos sugerem que a exegese da obra de Marx está novamente se tornando, assim como muitas outras vezes no passado, cada vez mais refinada. Por muito tempo, vários marxistas colocaram os escritos do jovem Marx em primeiro plano, principalmente os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e A ideologia alemã, enquanto o Manifesto do partido comunista permanecia seu texto mais amplamente lido e citado. Naqueles primeiros escritos, no entanto, são encontradas muitas ideias que foram suplantadas em sua obra tardia. Por muito tempo, a dificuldade em examinar a pesquisa de Marx realizada nas duas últimas décadas de sua vida obstruiu nosso conhecimento acerca de importantes ganhos que ele obteve. Mas é sobretudo em O capital e seus esboços preliminares, bem como nas pesquisas de seus últimos anos, que encontramos as reflexões mais preciosas sobre a crítica da sociedade burguesa. Elas representam as últimas conclusões a que Marx chegou, embora não as definitivas. Se examinadas criticamente à luz das mudanças que o mundo sofreu desde a sua morte, elas ainda podem se mostrar úteis à tarefa de teorizar, após os fracassos do século XX, um modelo socioeconômico alternativo ao capitalismo.
A edição MEGA2 tem desmentido todas as alegações de que Marx seja um pensador sobre quem tudo já foi escrito e dito. Ainda há muito para se aprender com Marx. Hoje, é possível fazer isso estudando não apenas aquilo que ele escreveu em seus trabalhos publicados, mas estudando também as questões e dúvidas contidas em seus manuscritos inacabados.
Referências bibliográficas
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Resumo
O artigo apresenta as novas descobertas e possibilidades de interpretações da obra de Marx a partir da retomada da publicação da MEGA2. Argumenta que a nova edição histórico-crítica não revela um Marx desconhecido, mas indica a existência de facetas diferentes em sua obra. O exame das notas e do material não publicado por Marx permite chamar a atenção para seu interesse naquilo que hoje denominamos ecologia e para aspectos de sua crítica à sociedade burguesa que podem nos auxiliar no desenvolvimento de uma perspectiva anticapitalista própria ao século XXI.
Palavras-chave: MEGA2, Marx, materialismo histórico, Internacional
Abstract
The article presents the new discoveries and possibilities of interpretations of Marx’s work from the resumption of the publication of MEGA2. He argues that the new historical-critical edition does not reveal an unknown Marx, but indicates the existence of different facets in his work. The examination of notes and material not published by Marx himself allows to draw attention to his interest in what we now call ecology and to aspects of his criticism of bourgeois society that can assist us in the development of an anti-capitalist perspective proper to the 21st century.
Keywords: MEGA2, Marx, historical materialism, International
[1] Os tomos II/4.1 e II/4.2 foram publicados antes da interrupção da MEGA2, enquanto o II/4.3 saiu em 2012. Esse livro em três partes leva a 67 o número total de volumes da MEGA2 publicados desde 1975. No futuro, alguns dos demais volumes serão publicados apenas na forma digital. NT: Os tomos II/4.1 e II/4.2 da MEGA2 se referem aos Manuscritos Econômicos de 1863-1867; o II/4.3, por sua vez, aumenta o recorte temporal anterior em um ano e apresenta os Manuscritos Econômicos de 1863-1868.
[2] A publicação do volume IV/32 da MEGA2, Karl Marx – Friedrich Engels, Die Bibliotheken von Karl Marx und Friedrich Engels, editado por Hans-Peter Harstick, Richard Sperl e Hanno Strauß, Akademie, Berlin, 1999, foi de particular relevância para o conhecimento do conteúdo da biblioteca de Marx. Ela consiste em um index de 1.450 livros (em 2.100 tomos) – dois terços dos quais pertencentes a Marx e Engels. Essa compilação indica todas as páginas de cada volume nas quais Marx e Engels deixaram anotações e marginálias.
[3] Para uma resenha de todos os 13 volumes da MEGA2 publicados de 1998 – o ano da retomada dessa edição – até 2007, cf. Musto (2007). Essa resenha crítica cobre os 15 volumes – que somam o total de 20.508 páginas – publicados entre 2008 e 2019.
[4] Karl Marx, “Marx’s Undertaking Not to Publish Anything in Belgium on Current Politics”, Marx-Engels Collected Works [doravante MECW], vol. 4, p. 677. N.T. Para facilitar a leitura, todas as referências a publicações extraídas da MECW e da MEGA2 serão feitas em nota de rodapé.
[5] Karl Marx, “Declaration against Karl Grün”, MECW, vol. 6, p. 72.
[6] Karl Marx para Carl Wilhelm Julius Leske, 1 de agosto de 1846, MECW, vol. 38, p. 50.
[7] Friedrich Engels, Ludwig Feuerbach and the End of Classical German Philosophy, MECW, vol. 26, p. 519. Na verdade, Engels já usara essa expressão em 1859 em sua resenha de Para a crítica da economia política de Marx, mas o artigo não teve ressonância e o termo só começou a circular após a publicação de seu Ludwig Feuerbach.
[8] MEGA2, vol. I/5, editado por Ulrich Pagel, Gerald Hubmann e Christine Weckwerth, Berlim: De Gruyter, 2017, p. 1.893.
[9] Alguns anos antes da publicação do volume I/5 da MEGA2 e com base na edição alemã de Karl Marx, Friedrich Engels, Joseph Weydemeyer, Die Deutsche Ideologie. Artikel, Druckvorlagen, Entwürfe, Reinschriftenfragmente und Notizen zu ”I. Feuerbach” und “II Sankt Bruno”, que apareceu como uma edição especial do periódico Marx-Engels Jahrbuch em 2003, Terrell Carver e Daniel Blank forneceram uma nova edição no idioma inglês do assim chamado “Capítulo sobre Feuerbach”: Marx and Engels’s “German Ideology” Manuscripts: Presentation and Analysis of the “Feuerbach Chapter”, New York: Palgrave, 2014. Os dois autores defenderam a fidelidade máxima aos originais, criticando, além disso, a edição do Marx-Engels Jahrbuch (agora incorporada ao volume I/5) pelo fato de que ela, alinhada com antigos editores do século XX, organizara os distintos manuscritos como se eles formassem o esboço de uma obra totalmente coesa, ainda que nunca completada.
[10] Karl Marx – Friedrich Engels, The German Ideology, MECW, vol. 5, p. 28.
[11] Karl Marx – Friedrich Engels, Exzerpte und Notizen Juli bis August 1845, MEGA2, vol. IV/4, editado pelo Instituto de Marxismo-Leninismo, Berlim: Dietz, 1988.
[12] MEGA2, vol. IV/5, editado por Georgij Bagaturija, Timm Graßmann, Aleksandr Syrov and Ljudmila Vasina, Berlim: De Gruyter, 2015, p. 650.
[13] MEGA2, vol. I/7, editado por Jürgen Herren and François Melis, Berlim: De Gruyter, 2016, p. 1.774.
[14] Karl Marx, “The Bourgeoisie and the Counter-Revolution”, MECW, vol. 8, p. 178.
[15] Karl Marx, The Class Struggles in France, 1848 to 1850, MECW, vol. 10, p. 134.
[16] MEGA2, I/16, editado por Claudia Rechel e Hanno Strauß, Berlim: De Gruyter, 2018, p. 1.181.
[17] MEGA2, vol. IV/14, editado por Kenji Mori, Rolf Hecker, Izumi Omura e Atsushi Tamaoka, Berlim: De Gruyter, 2017, p. 680.
[18] Karl Marx a Friedrich Engels, 18 de dezembro de 1857, MECW, vol. 40, p. 224.
[19] Karl Marx a Friedrich Engels, 16 de janeiro de 1858, MECW, vol. 40, p. 249.
[20] MEGA2, vol. III/12, editado por Galina Golovina, Tat’jana Gioeva e Rolf Dlubek, Berlim: Akademie, 2013, p. 1.529.
[21] Karl Marx, Theories of Surplus-Value, vol. I, MECW, vol. 30, p. 348.
[22] Karl Marx a Friedrich Engels, 18 de junho de 1862, MECW, vol. 41, p. 380.
[23] Karl Marx a Friedrich Engels, 10 de setembro de 1862, MECW, vol. 41, p. 417.
[24] Karl Marx a Ludwig Kugelmann, 28 de dezembro de 1862, MECW, vol. 41, p. 436.
[25] MEGA2, vol. II/11, editado por Teinosuke Otani, Ljudmila Vasina e Carl-Erich Vollgraf, Berlim: Akademie, 2008, p. 1.850.
[26] MEGA22, vol. II/13, Berlim: Akademie, 2008, p. 800.
[27] MEGA2, vol. II/4.3, editado por Carl-Erich Vollgraf, Berlim: Akademie, 2012, p. 1.065. Uma pequena parte desse texto foi traduzida recentemente para o inglês: Marx (2019).
[28] O volume II/4.2 foi traduzido recentemente para o inglês em Moseley (2015).
[29] Veja Carl-Erich Vollgraf, “Einführung”, em MEGA2, vol. II/4.3, cit., p. 421-74.
[30] MEGA2, vol. I/21, editado por Jürgen Herres, Berlim: Akademie, 2009, p. 2.432.
[31] Algumas delas – como os discursos e resoluções apresentados nos congressos da Internacional – foram, em vez disso, incluídas em uma antologia publicada por ocasião do 150° aniversário dessa organização: cf. Musto (2014).
[32] Karl Marx, “Confidential Communication”, MECW, vol. 21, p. 120.
[33] Ibid.
[34] MEGA2, vol. IV/18, editado por Teinosuke Otani, Kohei Saito e Timm Graßmann, Berlim: De Gruyter, 2019, p. 1.294.
[35] Karl Marx a Friedrich Engels, 25 de março de 1868, MECW, vol. 42, p. 557.
[36] Ibid., p. 558-559.
[37] Sobre essas questões, veja também o trabalho de um dos editores do volume IV/8 da MEGA2: Saito (2017).
[38] MEGA2, vol. IV/26, editado por Anneliese Griese, Peter Krüger e Richard Sperl, Berlim: Akademie, 2011, p. 1.104.
[39] Ibid., p. 139-679.
[40] Friedrich Engels, “Marx, Heinrich Karl”, MECW, vol. 27, p. 341. O grande interesse de Marx nas ciências naturais, interesse esse que ficou praticamente desconhecido por muito tempo, é evidente também no volume IV/31 da MEGA2, a saber, Karl Marx – Friedrich Engels. Naturwissenschaftliche Exzerpte und Notizen. Mitte 1877 bis Anfang 1883, editado por Annalise Griese, Friederun Fessen, Peter Jäckel e Gerd Pawelzig, Berlim: Akademie, 1999, que apresenta as notas sobre química orgânica e inorgânica tomadas por Marx após 1877.
[41] Veja Musto (2020). Um marco importante para esse tema será a publicação do livro editado por David Smith, pela Yale University Press em 2021, “Marx’s World: Global Society and Capital Accumulation in Marx’s Late Manuscripts”.
[42] MEGA2, vol. I/30, editado por Renate Merkel-Melis, Berlim: Akademie, 2011, p. 1.154.
[43] MEGA2, vol. III/30, editado por Gerd Callesen e Svetlana Gavril’čenko, Berlim: Akademie, 2013, p. 1.512.
[44] MEGA2, vol. I/32, editado por Peer Kösling, Berlim: Akademie, 2010, p. 1.590.
[45] MEGA2, vol. I/32, editado por Peer Kösling, Berlim: Akademie, 2010, p. 1.590.
Marcello
Musto