Ricardo Musse, O Globo

Review of O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883)

RIO — A obra e o perfil, político e pessoal, de Karl Marx sempre foram objeto de acesas controvérsias. Suas inúmeras biografias apresentam avaliações divergentes e antagônicas.

Com o desmoronamento da União Soviética e o arrefecimento da Guerra Fria, essa situação começa a se modificar. O teor propagandístico cede lugar a análises mais objetivas.

Este esforço é perceptível nas duas biografias que a editora Boitempo publica, por ocasião da celebração dos 200 anos de nascimento de Marx. Ambas abordam momentos de sua trajetória pouco desenvolvidos pelos biógrafos anteriores. “Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna”, de Michael Heinrich, contempla sua infância e sua juventude, o período entre 1818 e 1841. “O velho Marx”, de Marcello Musto, debruça-se sobre seus últimos anos, 1881-1883.

Michael Heinrich dispõe de inconteste domínio da teoria de Marx, atestado em publicações anteriores, e teve acesso a materiais de arquivo até então inéditos. O ponto diferencial de seu livro consiste, porém, na conjugação de fatores que mobiliza e combina. Na introdução e num apêndice, o autor explicita os procedimentos que considera adequados para suplantar os modelos tradicionais de biografias, relatos deterministas e unilaterais.

Simplificadamente, trata-se de expor, com a maior precisão histórica possível, em separado, os acontecimentos da vida pessoal de Marx, sua produção teórica, suas iniciativas e oscilações, a situação social, política e institucional da época, o ambiente intelectual em que se movimentava, os interlocutores importantes em sua formação teórica e política etc.

Nesse diapasão, “Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna” dedica tanta atenção ao desempenho de Marx no ginásio — tarefa facilitada pela conservação de seus trabalhos escolares —, como a seus professores, à situação do ensino na Alemanha, ao acompanhamento das condições econômicas, sociais e políticas de Trier (cidade natal de Marx). Contempla seu contexto familiar, com perfis cuidadosos de sua mãe e de seu pai. Sobre este último, relata suas origens numa família judaica, sua formação, a conversão ao cristianismo, o que lhe possibilitou exercer, com relativo êxito, suas atividades de advogado. Tampouco deixa de apresentar um histórico da situação dos judeus na Alemanha, a partir do século XVIII. Destaca ainda o noivado de Marx, com Jenny Westphalen, e suas boas relações com o futuro sogro.

O UNIVERSITÁRIO E OS INFORTÚNIOS

A mesma visão abrangente orienta a narrativa do período de estudos universitários de Marx, em Bonn e Berlim. O itinerário é conhecido: inscrição no curso de direito, produção literária, adesão à filosofia hegeliana, aproximação com os hegelianos de esquerda, redação e defesa de tese sobre filosofia grega. Soma-se a isso exposições que abordam a vida institucional e intelectual da universidade alemã, o debate em torno do romantismo, a crítica da religião, a cisão dos hegelianos e, de forma mais demorada, os pressupostos e consequências da tese de doutorado de Marx.

O livro estende-se até o início da década 1840, período da vida de Marx marcado por intensa atividade política e espantosa produtividade teórica, mostrada sinteticamente no filme “O jovem Marx”, de Raoul Peck.

Marcello Musto, por sua vez, acompanha Marx em seus últimos anos. Ele também dispõe de credenciais semelhantes às de Michael Heinrich. Optou, porém, por uma narrativa enxuta que não dispensa a emotividade. Reconstitui, com informações detalhadas, os interesses de Marx no período: a matemática, a antropologia da pré-História e, principalmente, a comuna agrícola russa (motivo que o levou a aprender a língua russa). Visualiza também o modo como o autor de “O capital” acompanhou a recepção de sua obra. Detém-se pouco, no entanto, sobre a preocupação de Marx com a estabilização do capitalismo e sobre sua atividade política.

O impacto do livro assenta-se na descrição da sequência de infortúnios de Marx: o falecimento da esposa, a inesperada morte de sua filha mais velha, a intensificação de sua doença pulmonar. Narra, por fim, sua peregrinação em busca de climas amenos, na França, em Mônaco e na Argélia, e seu retorno a Londres, onde falece em 14 de março de 1883.

Published in:

O Globo

Date Published

4 May, 2018

Author:

Ricardo Musse