Introdução
Apesar dos graves problemas de saúde e dos múltiplos problemas familiares que teve de enfrentar durante a última fase de sua vida, Marx continuou a ocupar seus dias incansavelmente com pesquisas, trabalhando sempre que as circunstâncias lhe permitiam. Mesmo assim − ao contrário das afirmações da maioria de seus biógrafos de que sua curiosidade intelectual e perspicácia teórica enfraqueceram em seus anos finais −, ele não apenas prosseguiu seus estudos, mas sobretudo os estendeu para novas áreas.
O último período de trabalho de Marx foi certamente difícil, muitas vezes tortuoso, mas também foi muito importante teoricamente. Sua principal esperança era terminar O capital, cujo volume dois estava em preparação desde a publicação do volume um em 1867. No entanto, como sua energia intelectual era frequentemente reduzida e os problemas teóricos a resolver para a conclusão do livro ainda eram relevantes, de 1879 a 1882, ele preencheu dezenas de novos cadernos com notas e trechos de vários volumes que leu. A mente enciclopédica de Marx sempre foi guiada por uma curiosidade insaciável, e isso o levou a continuar atualizando seus conhecimentos e a ficar a par dos mais recentes desenvolvimentos científicos, em uma série de disciplinas e em muitas línguas. Além disso, além de livros e periódicos, ele vasculhou registros parlamentares, material estatístico, relatórios e publicações do governo.
As pesquisas que ele conduziu nesses anos sobre sociedades pré-capitalistas, as consequências do colonialismo e países não europeus estão entre as partes mais inexploradas de sua obra e têm uma relevância significativa para uma reavaliação abrangente de algumas de suas ideias-chave. As considerações críticas de Marx desenvolvidas nessa fase sobre a propriedade da terra, o colonialismo europeu, o desenvolvimento do capitalismo em escala global, a concepção materialista da história e as novas possibilidades para a revolução dissipam o mito de que ele deixou de escrever em seus últimos anos, além disso, desafiam a deturpação duradoura de ser um pensador eurocêntrico e economista que se fixava apenas no conflito de classes. Elas também mostram como Marx escapou da armadilha do determinismo econômico em que muitos de seus seguidores caíram.
Ainda que totalmente absorvido por intensos estudos teóricos, Marx nunca deixou de se interessar pelos acontecimentos econômicos e políticos internacionais de sua época, tentando prever os novos cenários que estes poderiam ter produzido para a emancipação da classe trabalhadora. Além de ler os principais jornais “burgueses”, ele recebia e consultava regularmente a imprensa operária alemã e francesa. Curioso como usual, Marx sempre começava o dia lendo as notícias para ficar por dentro do que estava acontecendo no mundo. A correspondência com importantes figuras políticas e intelectuais de vários países era frequentemente outra fonte valiosa de informação, dando-lhe novos estímulos e conhecimento mais profundo sobre uma ampla gama de assuntos.
O tempo que Marx dedicou a atualizar seus conhecimentos sobre assuntos que conhecia muito bem e, ao mesmo tempo, a abrir novos campos de pesquisa foi notável também nos últimos anos de sua vida. Não evitou a dúvida, mas a confrontou abertamente, preferiu prosseguir os estudos a se refugiar na autocerteza e desfrutar da adulação acrítica dos primeiros “marxistas” (ver MUSTO, 2018).
Propriedade da terra em países colonizados
Em setembro de 1879, Marx leu com grande interesse, em russo, Common landownership: the causes, course and consequences of its decline (1879), de Maksim Kovalevsky (1851-1916), e compilou trechos das partes que tratam da propriedade de terras em países sob regra estrangeira. Marx resumiu as várias formas através das quais os espanhóis na América Latina, os britânicos na Índia e os franceses na Argélia regulamentavam os direitos de posse (ver KRADER, 1975, p. 343). Ao considerar essas três áreas geográficas, suas primeiras reflexões relacionam-se com as civilizações pré-colombianas. Ele observou que com o início dos impérios Asteca e Inca, ‘a população rural continuou, como antes, a possuir terras em comum, mas ao mesmo tempo teve que subtrair parte de sua renda na forma de pagamentos em espécie aos seus governantes’. De acordo com Kovalevsky, esse processo lançou ‘as bases para o desenvolvimento dos latifúndios, em detrimento dos interesses de propriedade dos proprietários das terras comuns. A dissolução da terra comum só foi acelerada com a chegada dos espanhóis’ (MARX, 1977, p. 28). As terríveis consequências de seu império colonial foram condenadas tanto por Kovalevsky − a ‘política original de extermínio contra os Redskins’ − como por Marx, que acrescentou, por sua própria mão, que ‘depois que os [espanhóis] saquearam o ouro que encontraram lá, os Índios [foram] condenados a trabalhar nas minas’ (MARX, 1977, p. 29).
No final dessa seção de trechos, Marx observou que ‘a sobrevivência (em grande medida) da comuna rural’ era em parte devido ao fato de que, ‘[…] ao contrário das Índias Orientais Britânicas, não havia legislação colonial estabelecendo regulamentos que daria aos membros do clã a possibilidade de vender suas propriedades’ (MARX, 1977, p. 38).
Mais da metade dos trechos de Marx retirados de Kovalevsky foram sobre a Índia sob o domínio britânico. Ele prestou atenção especial às partes do livro que reconstruíram as formas de propriedade comum da terra na Índia contemporânea, bem como nos rajás hindus. Usando o texto de Kovalevsky, ele observou que a dimensão coletiva permaneceu viva mesmo após o parcelamento introduzido pelos britânicos: ‘Entre esses átomos, certas conexões continuam a existir, reminiscentes dos antigos grupos de proprietários de terras comunais’ (MARX, 1977, p. 388).
Apesar de sua hostilidade compartilhada ao colonialismo britânico, Marx foi crítico de alguns aspectos do relato histórico de Kovalevsky que projetou erroneamente os parâmetros do contexto europeu para a Índia. Em uma série de comentários breves, mas detalhados, ele o censurou por homogeneizar dois fenômenos distintos, pois embora “a concessão (farm-out) de ofícios − de forma alguma simplesmente feudal, como Roma atesta − e commendatio [foram] encontrados na Índia”, isso não significa que o “feudalismo no sentido do termo na Europa Ocidental” se desenvolveu lá. Na opinião de Marx, Kovalevsky omitiu o fato importante de que a “servidão” essencial ao feudalismo não existia na Índia (cf. MARX, 1977, p. 383). Além disso, uma vez que “de acordo com a lei indiana, o poder governante não [estava] sujeito à divisão entre os filhos, portanto, uma grande fonte de feudalismo europeu [foi] obstruída” (MARX, 1977, p. 376). Em conclusão, Marx era altamente cético quanto à transferência de categorias interpretativas entre contextos históricos e geográficos completamente diferentes (cf. HARSTICK, 1977). As percepções mais profundas que ele obteve do texto de Kovalevsky foram posteriormente integradas por meio de seu estudo de outras obras sobre a história indiana.
Por fim, no que diz respeito à Argélia, Marx não deixou de destacar a importância da propriedade comum da terra antes da chegada dos colonos franceses, ou das mudanças por eles introduzidas. De Kovalevsky, ele copiou: “A formação da propriedade privada da terra (aos olhos da burguesia francesa) é uma condição necessária para todo o progresso na esfera política e social. A continuação da manutenção da propriedade comunal ‘como forma que apoia as tendências comunistas nas mentes é perigosa tanto para a colônia quanto para a pátria’” (MARX, 1977, p. 405). Ele também extraiu os seguintes pontos de Communal landownership: the causes, course and consequences of its decline:
[…] a distribuição das propriedades do clã é encorajada, até mesmo prescrita, primeiro, como meio de enfraquecer as tribos subjugadas que estão sempre sob o impulso de revolta; segundo, como a única forma de uma transferência posterior da propriedade da terra das mãos dos nativos para as dos colonos. A mesma política foi seguida pelos franceses sob todos os regimes. […] O objetivo é sempre o mesmo: a destruição da propriedade coletiva indígena e sua transformação em objeto de livre compra e venda, e assim a passagem final facilitada para as mãos dos colonos franceses (MARX, 1977, p. 405).
Quanto à legislação sobre a Argélia proposta pelo republicano de esquerda Jules Warnier (1826-1899) e aprovada em 1873, Marx endossou a afirmação de Kovalevsky de que seu único propósito era “[…] expropriar o solo da população nativa pelos colonos e especuladores europeus” (MARX, 1977, p. 411). A afronta dos franceses chegou ao ponto de “roubo direto” ou conversão em “propriedade do governo” (MARX, 1977, p. 412) de todas as terras não cultivadas em comum para uso nativo. Esse processo foi pensado para produzir outro resultado importante: a eliminação do perigo de resistência por parte da população local. Novamente por meio das palavras de Kovalevsky, Marx (1977, p. 408 e 412) observou: […] a fundação da propriedade privada e o assentamento de colonos europeus entre os clãs árabes seriam os meios mais poderosos para acelerar o processo de dissolução das uniões de clãs. […] A expropriação dos árabes pretendida pela lei tinha dois propósitos: 1) fornecer aos franceses o máximo de terra possível; e 2) arrancar os árabes de seus laços naturais com o solo para quebrar a última força das uniões de clãs que estão sendo dissolvidas e, portanto, qualquer perigo de rebelião.
Marx (1977, p. 412) comentou que esse tipo de ‘individualização da propriedade da terra’ não só garantiu enormes benefícios econômicos para os invasores, mas também alcançou um ‘objetivo político […]: destruir os alicerces dessa sociedade’.
A seleção de pontos de Marx, bem como as poucas, mas diretas palavras condenando as políticas coloniais europeias que ele acrescentou aos trechos do texto de Kovalevsky, demonstra sua recusa em acreditar que a sociedade indiana ou argelina estava destinada a seguir o mesmo curso de desenvolvimento da Europa (cf. KRADER, 1975, p. 343). Enquanto Kovalevsky pensava que a propriedade da terra seguiria o exemplo europeu como uma lei da natureza, passando do comum ao privado em todos os lugares, Marx sustentava que a propriedade coletiva poderia durar em alguns casos e que certamente não desapareceria como resultado de alguma inevitabilidade histórica (cf. WHITE, 2018, p. 37-40).
Tendo examinado as formas de propriedade da terra na Índia por meio de um estudo da obra de Kovalevsky, do outono de 1879 ao verão de 1880, Marx compilou uma série de Notebooks on Indian history (Cadernos de história da Índia) (664-1858). Esses compêndios, cobrindo mais de mil anos de história, foram tirados de uma série de livros, em particular de Analytic history of India (1870) (História Analítica da Índia), de Robert Sewell (1845-1925), e History of India (1841) (História da Índia), de Mountstuart Elphinstone.
Marx dividiu suas anotações em quatro períodos. O primeiro conjunto apresenta uma cronologia bastante básica, desde uma conquista muçulmana, começando com a primeira penetração árabe em 664, até o início do século XVI. Um segundo conjunto cobriu o Império Moghul, fundado em 1526 por Zahīr ud-Dīn Muhammad que durou até 1761; também continha um breve levantamento das invasões estrangeiras da Índia e um esquema de quatro páginas da atividade mercantil europeia de 1497 a 1702. Do livro de Sewell, Marx copiou alguns pontos específicos sobre Murshid Quli Khan (1660-1727), o primeiro Nawab de Bengala e arquiteto de um novo sistema tributário. Marx o descreveu como “[…] um sistema de extorsão e opressão sem escrúpulos, que criou um grande excedente [dos] impostos de Bengala que foram devidamente enviados para Delhi” (MARX, 2001, p. 58). De acordo com Quli Khan, foi essa receita que manteve todo o Império Moghul à tona.
O terceiro e mais substancial conjunto de notas, cobrindo o período de 1725 a 1822, referia-se à presença da Companhia Britânica das Índias Orientais (British East India Company). Marx não se limitou aqui à transcrição dos principais eventos, datas e nomes, mas acompanhou com mais detalhes o curso dos eventos históricos, particularmente no que diz respeito ao domínio britânico na Índia. O quarto e último conjunto de notas foi dedicado à revolta dos Sepoys, de 1857, e ao colapso da Companhia Britânica das Índias Orientais (British East India Company) no ano seguinte.
Em Notes on Indian history (664-1858), Marx deu muito pouco espaço para suas reflexões pessoais, mas suas anotações marginais fornecem pistas importantes para seus pontos de vista. Os invasores foram frequentemente descritos com termos como “cães britânicos” (MARX, 2001, p. 165, 176 e 180), “usurpadores” (MARX, 2001, p. 155-156 e 163), “hipócritas ingleses” ou “intrusos ingleses” (MARX, 2001, p. 81). Em contraste, as lutas de resistência dos indianos sempre foram acompanhadas de expressões de solidariedade. Não foi por acaso que Marx sempre substituiu o termo “amotinados” de Sewell por “insurgentes” (MARX, 2001, p. 163-164 e 184). Sua condenação direta do colonialismo europeu era inconfundível.
Marx defendeu um ponto de vista semelhante também em sua correspondência. Em uma carta escrita a Nikolai Danielson, em fevereiro de 1881, ele discutiu os principais eventos que estavam acontecendo na Índia e chegou ao ponto de prever que ‘complicações sérias, se não um surto geral, [estavam] reservadas para o governo britânico’ (MARX, 1881, p. 63). O grau de exploração tornou-se cada vez mais intolerável:
O que os ingleses tiram deles anualmente na forma de aluguel, dividendos por ferrovias inúteis para os hindus, pensões para militares e funcionários públicos, para o Afeganistão e outras guerras, etc. etc. − o que eles tiram deles sem equivalente e totalmente à parte pelo que eles se apropriam anualmente na Índia, falando apenas do valor das mercadorias que os indianos têm que gratuita e anualmente enviar para a Inglaterra, isso equivale a mais do que a soma total da renda dos 60 milhões de trabalhadores agrícolas e industriais de Índia! Este é um processo de sangramento que requer vingança! Os anos de fome pressionam-se mutuamente e em dimensões até agora desconhecidas na Europa! Existe uma conspiração real em que hindus e muçulmanos cooperam; o governo britânico está ciente de que algo está “fermentando”, mas esse povo superficial (quero dizer, os homens do governo), entorpecido por suas próprias formas parlamentares de falar e pensar, nem mesmo deseja ver com clareza, compreender toda a extensão do perigo iminente! Iludir os outros e iludi-los para iludir a si mesmo − isto é: sabedoria parlamentar em poucas palavras! Tão bem! (MARX, 1881, p. 63-64).
Finalmente, nesse período, Marx voltou sua atenção para a Austrália, mostrando particular interesse na organização social de suas comunidades aborígenes. De Some account of central Australia (1880), do etnógrafo Richard Bennett, ele adquiriu o conhecimento crítico necessário para usar contra aqueles que argumentavam que não havia leis nem cultura na sociedade aborígene. Ele também leu outros artigos na The Victorian Review sobre o estado da economia do país, incluindo “The Commercial Future of Australia” (1880) e “The Future of North-East Australia” (1880).
As investigações de Marx sobre a propriedade da terra em países colonizados foram úteis, e o ajudaram a expandir seu conhecimento sobre argumentos e áreas geográficas que eram apenas marginais em O capital, volume um, e que, portanto, geralmente não tinham sido associados a suas teorias. Esse tema não foi a única novidade em seus estudos da época, já que na década de 1880 ele mergulhou em muitos outros novos caminhos de pesquisa.
Laços familiares, gênero e relações de propriedade nas sociedades antigas
Entre dezembro de 1880 e junho de 1881, os interesses de pesquisa de Marx se concentraram na antropologia. Ele começou com Ancient society (1877), um trabalho do antropólogo americano Lewis Morgan (1818-1881). O que mais impressionou Marx foi a maneira como Morgan tratava os fatores de produção e tecnológicos como pré-condições do progresso social, e ele se sentiu motivado a reunir uma compilação de uma centena de páginas densamente compactadas. Estas constituem a maior parte do que é conhecido como The ethnological notebooks (1880-1881). Elas também contêm trechos de outras obras: Java, ou how to manage a colony (1861) por James Money (1818-1890), um advogado e especialista em Indonésia; The Aryan village in India and Ceylon (1880) por John Phear (1825-1905), presidente da Suprema Corte do Ceilão; e Lectures on the early history of institutions (1875), do historiador Henry Maine (1822-1888), totalizando mais cem folhas.
Em sua pesquisa anterior, Marx já havia examinado e comentado extensivamente sobre as formas socioeconômicas passadas − na primeira parte de A ideologia alemã (The German ideology), na longa seção de Grundrisse intitulada “Formas que precedem a produção capitalista” (“Forms which precede capitalist production”), e em O capital, volume um. Em 1879, sua leitura de Common land ownership de Kovalevsky o direcionou mais uma vez ao assunto. Mas foi somente com Os cadernos etnológicos (The ethnological notebooks) que ele se engajou em um estudo mais abrangente e atualizado.
O objetivo da nova pesquisa de Marx era ampliar seu conhecimento de períodos históricos, áreas geográficas e tópicos temáticos que ele considerava essenciais para sua crítica contínua da economia política. Isso também lhe permitiu adquirir informações específicas sobre as características sociais e instituições de um passado remoto, familiarizando-o com material que não estava em sua posse quando escreveu os manuscritos das décadas de 1850 e 1860. Finalmente, familiarizou-se com as últimas teorias apresentadas pelos mais eminentes estudiosos contemporâneos.
O objetivo teórico-político preciso por trás desses estudos era reconstruir a sequência mais provável em que os diferentes modos de produção se sucederam ao longo do tempo, focando particularmente o nascimento do capitalismo. Ele acreditava que isso daria bases históricas mais sólidas à sua teoria da possível transformação comunista da sociedade. Em Os cadernos etnológicos, Marx, portanto, reuniu compilações e notas interessantes sobre: a pré-história, o desenvolvimento dos laços familiares, a condição das mulheres, as origens das relações de propriedade, as práticas comunitárias nas sociedades pré-capitalistas, a formação e a natureza do poder do Estado, o papel do indivíduo e aspectos mais modernos, como as conotações racistas de certas abordagens antropológicas e os efeitos do colonialismo.
Sobre o tema particular da pré-história e o desenvolvimento dos laços familiares, Marx tirou uma série de indicações inestimáveis da obra de Morgan. Conforme Henry Hyndman (1842-1921) lembrou: “quando Lewis H. Morgan provou para a satisfação de Marx em sua Ancient Society que a gens e não a família era a unidade social do antigo sistema tribal e da sociedade antiga em geral, Marx imediatamente abandonou suas opiniões anteriores” (HYNDMAN, 1911, p. 253-254). Foi a pesquisa de Morgan sobre a estrutura social dos povos primitivos que lhe permitiu superar os limites das interpretações tradicionais de parentesco, incluindo aquela apresentada pelo historiador alemão Barthold Niebuhr (1786-1831) em História romana (Roman history) (1811-1812). Em contraste com todas as hipóteses anteriores, Morgan mostrou que foi um erro grave sugerir que a gens “era posterior à família monogâmica” e era o resultado de “[…] um agregado de famílias” (MORGAN, 1877, p. 515).
Seus estudos da sociedade pré-histórica e antiga o levaram à conclusão de que a família patriarcal não deveria ser vista como a unidade básica original da sociedade, mas como uma forma de organização social mais recente do que geralmente se acreditava. Era uma organização “[…] fraca demais para enfrentar sozinha as dificuldades da vida” (MORGAN, 1877, p. 472). Era muito mais plausível supor a existência de uma forma como a dos povos nativos americanos, a família sindiásmica, que praticava um “[…] comunismo no ato de viver” (MARX, [1880-1882], p. 115).
Por outro lado, Marx constantemente polemizava contra Maine, que em suas Lectures on the early history of institutions (1875) visualizou “a família privada” como “a base a partir da qual a seita e o clã se desenvolveram”. O desprezo de Marx por essa tentativa de reverter a flecha do tempo ao transpor a era vitoriana para a pré-história o levou a afirmar que esse “[…] inglês imbecil não começou na gens, mas no Patriarca, que mais tarde se tornou o chefe − que bobagens!” (MARX, [1880-1882], p. 292). Sua zombaria gradualmente cresce: “Maine, afinal, não consegue tirar a família privada inglesa de sua cabeça” (MARX, [1880-1882], p. 309); ele “[…] transporta a família ‘patriarcal’ romana para o início das coisas” (MARX, [1880-1882], p. 324). Marx também não poupou Phear, de quem disse: “O asno baseia tudo em famílias privadas!” (MARX, [1880-1882], p. 281).
Morgan deu a Marx mais matéria para reflexão com suas observações sobre o conceito de família, uma vez que em seu “significado original” a palavra família − que tem a mesma raiz de famulus ou servo – “não tinha relação com o casal ou seus filhos”, mas com o corpo de escravos e servos que trabalhavam para sua manutenção e estavam sob o poder do “pater familias” (MORGAN, 1877, p. 469). Sobre isso, Marx ([1880-1882], p. 120) observou:
A família moderna contém o germe não só do servitus (escravidão), mas também da servidão, pois contém desde o início uma relação com os serviços para a agricultura. Ela contém em miniatura todos os antagonismos dentro de si, que mais tarde se desenvolverão amplamente na sociedade e em seu Estado. […] A família monogâmica pressupunha, para ter uma existência separada das outras, uma classe doméstica que em toda parte era diretamente constituída por escravos.
Desenvolvendo suas próprias ideias em outras partes do compêndio, Marx ([1880-1882], p. 210) escreveu: “[…] a propriedade em casas, terras e rebanhos […]” estava ligada à “[…] família monogâmica”. Na verdade, como sugeria o Manifesto do Partido Comunista (Manifesto of the Communist Party), este foi o ponto de partida da história como “[…] a história da luta de classes” (MARX; ENGELS, 1845-1848, p. 482).
Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado (The origin of the family, private property and the State) (1884) − um livro que o autor descreveu como “o cumprimento de uma ordem” e não mais do que um “substituto insuficiente” para o que seu “querido amigo” não viveu para escrever (ENGELS, 1882-1889, p. 131) −, Engels concluiu a análise de Marx em Os cadernos etnológicos (The ethnological notebooks). Monogamia, ele argumentou, representava:
[…] a sujeição de um sexo pelo outro, como a proclamação de um conflito entre os sexos até então desconhecido ao longo da história anterior. Em um antigo manuscrito não publicado, a minha obra junto com Marx em 1846, encontro o seguinte: “A primeira divisão do trabalho é entre o homem e a mulher para a criação dos filhos”. E hoje posso acrescentar: A antítese de primeira classe que aparece na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher no casamento monogâmico e a opressão de primeira classe com a do sexo feminino pelo masculino. A monogamia [é] a forma celular da sociedade civilizada, na qual já podemos estudar a natureza das antíteses e contradições, que se desenvolve plenamente nesta última (ENGELS, 1882-1889, p. 173-174).
A tese de Engels postulou uma relação excessivamente esquemática entre conflito econômico e opressão de gênero, que estava ausente nas fragmentárias e altamente intrincadas anotações de Marx.
Marx também prestou muita atenção às considerações de Morgan sobre a paridade entre os sexos, que argumentava que as sociedades antigas pré-gregas eram mais progressistas no que diz respeito ao tratamento e ao comportamento das mulheres. Marx copiou as partes do livro de Morgan que mostravam como, entre os gregos, “a mudança de descendência da linha feminina para a masculina era prejudicial para a posição e os direitos da esposa e da mulher”. Na verdade, Morgan tinha uma avaliação muito negativa do modelo social grego: “Os gregos permaneceram bárbaros no tratamento que dispensavam às mulheres no auge de sua civilização; sua educação superficial, […] sua inferioridade inculcada como princípio sobre elas, até que passou a ser aceita como um fato pelas próprias mulheres”. Além disso, havia “um princípio de egoísmo estudado entre os homens, tendendo a diminuir a apreciação pelas mulheres, dificilmente encontrado entre os selvagens”. Pensando no contraste com os mitos do mundo clássico, Marx acrescentou uma observação aguda: “A condição das deusas no Olimpo é uma lembrança da posição das mulheres, antes mais livres e influentes. Juno ávida por poder, a deusa da sabedoria nasce da cabeça de Zeus (MARX, [1880-1882], p. 121)” Para Marx, a memória das divindades livres do passado fornecia um exemplo para uma possível emancipação no presente.
Dos vários autores que estudou, Marx registrou muitas observações importantes sobre o papel das mulheres na sociedade antiga. Por exemplo, referindo-se à obra Matriarcado (Matriarchy) (1861) do antropólogo suíço Johann Bachofen (1815-1887), ele observou: “As mulheres eram a grande potência entre a gens e em todos os outros lugares. Elas não hesitavam, quando necessário, em ‘arrancar os chifres’, como era tecnicamente chamado, da cabeça de um chefe e mandá-lo de volta às fileiras de guerreiros. A nomeação original dos chefes também sempre ficou com elas” (MARX, [1880-1882], p. 116).
A leitura de Morgan feita por Marx também lhe deu um ângulo sobre outra questão importante: a origem das relações de propriedade, pois o célebre antropólogo estabeleceu uma relação causal entre os vários tipos de estrutura de parentesco e formas socioeconômicas. Em sua opinião, os fatores da história ocidental que explicaram a afirmação do sistema descritivo − que descrevia parentes de sangue e especificava o parentesco de todos (por exemplo, “filho do irmão para sobrinho, irmão do pai para tio, filho do irmão do pai para primo”) − e o declínio do sistema classificatório − que agrupava parentes de sangue em categorias sem especificar proximidade ou distância em relação ao Ego (por exemplo, “meu próprio irmão e os filhos do irmão de meu pai são em igual grau meus irmãos”’) − tiveram a ver com o desenvolvimento da propriedade e do Estado.
O livro de Morgan é dividido em quatro partes: (1) Crescimento da Inteligência por meio de Invenções e Descobertas; (2) Crescimento da Ideia de Governo; (3) Crescimento da Ideia da Família; e (4) Crescimento da Ideia de Propriedade. Marx mudou a ordem para (1) invenções, (2) família, (3) propriedade e (4) governo, a fim de tornar mais claro o nexo entre os dois últimos.
O livro de Morgan (1877, p. 551) argumentou que, embora “os direitos de riqueza, de posição e de posição oficial” tenham prevalecido por milhares de anos sobre “justiça e inteligência”, havia ampla evidência de que “as classes privilegiadas” eram uma influência “onerosa” da sociedade. Marx copiou quase na íntegra uma das páginas finais de Ancient society sobre as distorções que a propriedade pode gerar. Funcionava com conceitos que o impressionaram profundamente:
[…] desde o advento da civilização, o crescimento da propriedade tem sido tão imenso, suas formas tão diversificadas, seus usos tão expandidos e sua gestão tão inteligente no interesse de seus proprietários, que se tornou, por parte do povo, uma incontrolável potência. A mente humana fica perplexa na presença de sua própria criação. Chegará o tempo, entretanto, em que a inteligência humana se elevará ao domínio da propriedade e definirá as relações do Estado com a propriedade que protege, bem como as obrigações e os limites dos direitos de seus proprietários. Os interesses da sociedade são primordiais para os interesses individuais, e os dois devem ser colocados em relações justas e harmoniosas (MORGAN, 1877, p. 551-552).
Morgan se recusou a acreditar que o “destino final da humanidade” era a mera busca de riquezas. Ele emitiu um aviso severo:
A dissolução da sociedade parece ser o fim de uma carreira para a qual a propriedade é o fim e o objetivo; porque tal carreira contém os elementos de autodestruição. A democracia no governo, a fraternidade na sociedade, a igualdade de direitos e privilégios e a educação universal prenunciam o próximo plano superior da sociedade para o qual a experiência, a inteligência e o conhecimento tendem continuamente. Ele [um plano superior de sociedade ] será um renascimento, em uma forma superior [de sociedade], da liberdade, igualdade e fraternidade das antigas gentes (MORGAN, 1877, p. 551-552.
A “civilização” burguesa, então, foi ela própria uma fase transitória. Surgiu no final de duas longas épocas, o “estado selvagem” e o “estado bárbaro” (os termos correntes na época), que seguiram a abolição das formas comunais de organização social. Essas formas implodiram após o acúmulo de propriedade e riqueza e o surgimento das classes sociais e do Estado. Mas, mais cedo ou mais tarde, a pré-história e a história estavam destinadas a se juntar novamente.
Morgan considerou as sociedades antigas muito democráticas e solidárias. Por enquanto, ele se limitou a uma declaração de otimismo sobre o progresso da humanidade, sem invocar a necessidade de luta política. Marx, no entanto, não previu um renascimento socialista do “mito do nobre selvagem”. Ele nunca esperou por um retorno ao passado, mas − como ele deixou claro ao copiar o livro de Morgan − esperava o advento de uma “forma superior de sociedade” (MARX, [1880-1882], p. 139) baseada em um novo modo de produção e consumo. Isso não aconteceria por meio da evolução mecânica, mas apenas pela luta consciente da classe trabalhadora.
Toda a leitura antropológica de Marx teve uma influência sobre as origens e as funções do Estado. Os trechos retirados de Morgan resumiram seu papel na transição da barbárie para a civilização, enquanto suas notas sobre o Maine se concentraram na análise das relações entre o indivíduo e o Estado (cf. KRADER, [1880-1882], p. 19). Consistente com seus textos teóricos mais significativos sobre o assunto, desde a Crítica da filosofia do direito de Hegel (Critique of Hegel’s Philosophy of Law) (1843) até A Guerra Civil na França (The Civil War in France) (1871), Os cadernos ttnológicos (The ethnological notebooks) também apresentam o Estado como um poder que subjuga a sociedade, uma força que impede a plena emancipação do indivíduo.
Nas notas que escreveu em 1881, Marx destacou o caráter parasitário e transitório do Estado:
Maine ignora o ponto muito mais profundo: que a aparente existência suprema independente do Estado é apenas aparente e que é em todas as suas formas uma excrescência da sociedade; assim como seu próprio aparecimento surge apenas em um determinado estágio de desenvolvimento social, ele desaparece novamente assim que a sociedade atinge um estágio ainda não alcançado (MARX, [1880-1882], p. 329).
Marx seguiu com uma crítica da condição humana sob as circunstâncias históricas dadas. A formação da sociedade civilizada, com sua transição de um regime de propriedade comum para a individual, gerou uma ‘ainda unilateral […] individualidade’ (MARX, [1880-1882], p. 329). Se a “verdadeira natureza [do Estado] aparece apenas quando analisamos seu conteúdo”, ou seja, seus “interesses”, isso mostra que esses interesses “são comuns a certos grupos sociais” e são, portanto, “interesses de classe”. Para Marx, “o Estado é construído sobre classes e pressupõe classes”. Portanto, a individualidade que existe nesse tipo de sociedade é “uma individualidade de classe”, que em última análise é “baseada em pressupostos econômicos” (MARX, [1880-1882], p. 329).
Em Os cadernos etnológicos (The ethnological notebooks), Marx também fez uma série de observações sobre as conotações racistas de muitos dos relatórios antropológicos que estava estudando (cf. KRADER, [1880-1882], p. 37; e GAILEY, 2006, p. 36). Sua rejeição a tal ideologia foi categórica, e ele comentou causticamente os autores que a expressaram dessa forma. Assim, quando Maine usou epítetos discriminatórios, ele firmemente interpôs: “De novo esse absurdo!” Além disso, expressões como o “que o diabo pegue esse jargão ‘ariano’!” (MARX, [1880-1882], p. 324) continuaram recorrentes.
Referindo-se a Java ou How to manage a colony de Money e The Aryan village in India and Ceylon de Phear, Marx estudou os efeitos negativos da presença europeia na Ásia. Ele não estava nem um pouco interessado nas opiniões de Money sobre a política colonial, mas achou seu livro útil pelos detalhes que deu sobre o comércio . Ele adotou uma abordagem semelhante à do livro de Phear, focando principalmente o que ele relatou sobre o Estado em Bengala e ignorando suas fracas construções teóricas.
Os autores que Marx leu e resumiu em Os cadernos etnológicos (The ethnological notebooks) foram todos influenciados − com várias nuances − pelas concepções evolucionistas da época, e alguns também se tornaram defensores firmes da superioridade da civilização burguesa. Mas um exame de Os cadernos etnológicos (The ethnological notebooks) mostra claramente que suas afirmações ideológicas não tiveram influência sobre Marx. As teorias do progresso, hegemônicas no século XIX e amplamente compartilhadas por antropólogos e etnólogos, postularam que os eventos seguiriam um curso predeterminado por causa de fatores externos à ação humana. Uma sequência rígida de etapas teve o mundo capitalista como destino único e uniforme.
No espaço de alguns anos, uma crença ingênua no avanço automático da história também se enraizou na Segunda Internacional. A única diferença com a versão burguesa era a previsão de que um estágio final se seguiria ao inevitável “colapso” do sistema capitalista: a saber, o advento do socialismo (posteriormente definido como “marxista!”). Essa análise não era apenas cognitivamente inadequada; ela produziu uma espécie de passividade fatalista, que se tornou um fator estabilizador da ordem existente e enfraqueceu a ação social e política do proletariado. Opondo-se a essa abordagem que tantos consideravam “científica”, a qual era comum às visões burguesa e socialista de progresso, Marx rejeitou os cantos de sereia de um historicismo de mão única e preservou sua própria concepção complexa, flexível e diversificada. Considerando que, em comparação com os oráculos darwinistas, a voz de Marx pode parecer incerta e hesitante, ele realmente escapou da armadilha do determinismo econômico em que muitos de seus seguidores e continuadores ostensivos tendiam a cair − uma posição anos-luz das teorias que afirmavam tê-los inspirado, o que levaria muitos a uma das piores caracterizações do “marxismo”.
Em seus manuscritos, cadernos e cartas a camaradas e ativistas, Marx perseverou em seus esforços para reconstruir a complexa história da passagem da Antiguidade ao capitalismo. Ele valorizava as informações e os dados históricos, mas não compartilhava dos esquemas rígidos que sugeriam uma sequência inescapável de estágios na história humana.
Marx rejeitou qualquer vinculação rígida das mudanças sociais apenas às transformações econômicas. Em vez disso, ele destacou a especificidade das condições históricas, as múltiplas possibilidades que a passagem do tempo oferecia e a centralidade da intervenção humana na formação da realidade e na realização da mudança (cf. GAILEY, 2006, p. 35 e 44). Essas foram as características salientes da elaboração teórica de Marx nos anos finais de sua vida.
O caso da Rússia e a questão de se contornar o capitalismo
No final de sua vida, Marx olhou para o potencial revolucionário da classe trabalhadora de uma forma menos esquemática do que na época da fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores. Na Grã-Bretanha, o capitalismo criou o maior número proporcional de operários de fábrica do mundo (cf. MUSTO, 2015, p. 171-208), que começaram a desfrutar de melhores condições de vida, em parte com base na exploração colonial. Marx estava ciente de que o movimento dos trabalhadores britânicos havia se enfraquecido e sofrido o condicionamento negativo do reformismo sindical (cf. MUSTO, 2014). Portanto, ele acreditava que outros países pareciam mais propensos a produzir uma revolução do que a Grã-Bretanha. As investigações de Marx sobre a Rússia foram úteis para o desenvolvimento de suas ideias sobre esse assunto.
Em fevereiro de 1881, quando o crescente interesse de Marx por formas arcaicas de comunidade o levou a estudar antropólogos contemporâneos, e como suas reflexões constantemente alcançavam além da Europa, um acontecimento fortuito o encorajou a aprofundar seu estudo da Rússia. Ele recebeu uma carta breve, mas intensa e envolvente, da militante populista Vera Zasulich (1848-1919) sobre o futuro da obshchina − a comunidade camponesa russa. Grande admiradora de Marx, ela enfatizou que ele, “melhor do que ninguém”, podia entender a urgência do problema e acrescentou: “[…] até mesmo o destino pessoal de nossos socialistas revolucionários dependia” (ZASULICH, 1984, p. 98-99) de sua resposta. Zasulich, então, resumiu os dois pontos de vista diferentes que surgiram nas discussões:
A comuna rural, livre de exorbitantes cobranças de impostos, pagamento à nobreza e administração arbitrária, pode ser capaz de se desenvolver em uma direção socialista, isto é, organizar gradativamente sua produção e distribuição em bases coletivistas. Nesse caso, o socialista revolucionário deve dedicar todas as suas forças à libertação e ao desenvolvimento da comuna.
Se, no entanto, a comuna está destinada a perecer, tudo o que resta para o socialista, como tal, são cálculos mais ou menos infundados sobre quantas décadas levará para que as terras dos camponeses russos passem para as mãos da burguesia, e quantos séculos levará para o capitalismo na Rússia atingir algo parecido com o nível de desenvolvimento já alcançado na Europa Ocidental (ZASULICH, 1984, p. 98-99).
Zasulich apontou ainda que alguns dos envolvidos na discussão argumentaram que “a comuna rural é uma forma arcaica condenada a perecer pela história, pelo socialismo científico e, em suma, por tudo que está acima do debate”. Aqueles que defendiam essa visão se autodenominavam “discípulos por excelência” de Marx: “Marxistas”. Seu argumento mais forte era frequentemente: “Marx disse”.
A questão colocada por Zasulich chegou no momento certo, exatamente quando Marx estava absorvido no estudo das comunidades pré-capitalistas. Sua mensagem, portanto, o induziu a analisar um caso histórico real de grande relevância contemporânea, intimamente relacionado aos seus interesses teóricos da época. Por quase três semanas, Marx permaneceu imerso em seus papéis, bem ciente de que deveria fornecer uma resposta a uma questão teórica altamente significativa e expressar sua posição sobre uma questão política crucial. Os frutos de seu trabalho foram quatro rascunhos − três deles muito longos e às vezes contendo argumentos contraditórios − e a resposta final que ele enviou a Zasulich.
No primeiro e mais longo dos quatro rascunhos, Marx analisou o que considerou o “único argumento sério” no qual a “dissolução da comuna camponesa russa” deveria ser inevitável. “Voltando muito atrás, a propriedade comunal de um tipo mais ou menos arcaico podia ser encontrada em toda a Europa Ocidental; em todos os lugares ele desapareceu com o aumento do progresso social. Por que deveria ser capaz de escapar do mesmo destino apenas na Rússia?” (MARX, 1874-1883, p. 349). Em sua resposta, Marx repetiu que ele “[…] não levaria este argumento em consideração, exceto na medida em que é baseado em experiências europeias” (MARX, 1874-1888, p. 365). Com a relação à Rússia:
Se a produção capitalista deve estabelecer seu domínio na Rússia, a grande maioria dos camponeses, ou seja, do povo russo, deve ser convertida em assalariados e, consequentemente, expropriada pela abolição antecipada de sua propriedade comunista. Mas, em qualquer caso, o precedente ocidental não provaria absolutamente nada! (MARX, 1874-1888, p. 361).
Marx não excluiu a possibilidade de que a comuna rural se desintegrasse e encerrasse sua longa existência. Mas se isso acontecesse, não seria por causa de alguma predestinação histórica (cf. também SHANIN, 1984, p. 16). Referindo-se a seus próprios seguidores que argumentavam que o advento do capitalismo era inevitável, ele comentou com Zasulich com seu típico sarcasmo: “Os ‘marxistas’ russos de quem você fala são completamente desconhecidos para mim. Até onde sei, os russos com quem estou em contato pessoal têm pontos de vista diametralmente opostos” (MARX, 1874-1888, p. 361).
Essas constantes referências às experiências ocidentais foram acompanhadas por uma observação política de grande valor. Considerando que, no início dos anos 1850, em seu artigo do New-York Tribune, “Os resultados futuros do domínio britânico na Índia” (“The future results of British rule in India”) (1853), ele sustentou que “[…] a Inglaterra tem de cumprir uma dupla missão na Índia: uma destrutiva, a outra regenerando a aniquilação da velha sociedade asiática e lançando as bases materiais da sociedade ocidental na Ásia […]” (MARX, 1853-1854, p. 217-218), houve uma mudança evidente de perspectiva em suas reflexões sobre a Rússia.
Já em 1853, ele não tinha ilusões sobre as características básicas do capitalismo. Marx sabia muito bem que a burguesia nunca “[…] realizou um progresso sem arrastar indivíduos e povo através do sangue e da sujeira, da miséria e da degradação” (MARX, 1853-1854, p. 221). Mas ele também estava convencido de que, por meio do comércio mundial, do desenvolvimento das forças produtivas e da transformação da produção em algo cientificamente capaz de dominar as forças da natureza, “[…] a indústria e o comércio burgueses [haviam] criado as condições materiais de um novo mundo” (MARX, 1853-1854, p. 222).
Leituras limitadas e às vezes superficiais viram isso como evidência do eurocentrismo ou orientalismo de Marx, mas na realidade não refletia mais do que uma visão parcial e ingênua do colonialismo sustentada por um homem que escreveu um artigo jornalístico com apenas 35 anos de idade. Em nenhuma parte das obras de Marx há a sugestão de uma distinção essencialista entre as sociedades do Oriente e do Ocidente. Em 1881, após três décadas de profunda pesquisa teórica e observação cuidadosa das mudanças na política internacional, para não falar de suas enormes sinopses nos Os cadernos etnológicos (The ethnological notebooks), ele tinha uma visão bastante diferente da transição das formas comunais do passado para o capitalismo. Assim, referindo-se às “Índias Orientais”, ele observou: ”
Todos, exceto Sir Henry Maine e outros de sua laia, percebem que a supressão da propriedade comunal de terras não foi nada além de um ato de vandalismo inglês, empurrando o povo nativo não para a frente, mas para trás” (MARX, 1874-1888, p. 365). Tudo o que os britânicos “[…] conseguiram fazer foi arruinar a agricultura nativa e dobrar o número e a gravidade das fomes” (MARX, 1874-1888, p. 368).
Assim, a obshchina russa não estava predestinada a sofrer o mesmo destino que formas semelhantes da Europa Ocidental nos séculos anteriores, onde “[…] a transição de uma sociedade fundada na propriedade comunal para uma sociedade fundada na propriedade privada” (MARX, 1874-1888, p. 367) era mais ou menos uniforme. À pergunta se isso era inevitável na Rússia, Marx respondeu secamente: “Certamente não”. Para Marx, o campesinato “[…] pode, assim, incorporar as aquisições positivas planejadas pelo sistema capitalista sem passar por suas forcas caudinas” (MARX, 1874-1888, p. 368). Dirigindo-se àqueles que negavam a possibilidade de saltos e viam o capitalismo como um palco indispensável também para a Rússia, Marx perguntou ironicamente se a Rússia teve “[…] que passar por um longo período de incubação na indústria de engenharia […] a fim de utilizar máquinas, motores a vapor, ferrovias, etc.”. Da mesma forma, não teria sido possível “[…] introduzir num piscar de olhos todo o mecanismo de troca (bancos, instituições de crédito, etc.) que o Ocidente levou séculos para conceber?”” (MARX, 1874-1888, p. 349).
Marx criticou o “isolamento” das comunas agrícolas arcaicas, pois, fechadas em si mesmas e sem contato com o mundo exterior, eram politicamente falando a forma econômica mais condizente com o regime czarista reacionário: “A falta de conexão entre a vida de uma comuna e a das outras, este microcosmo localizado, […] sempre dá origem ao despotismo central para além das comunas” (MARX, 1874-1888, p. 353). Marx certamente não mudou seu complexo julgamento crítico sobre as comunas rurais na Rússia, e a importância do desenvolvimento individual e da produção social permaneceu intacta em sua análise. Ele não se convenceu de repente de que as comunas rurais arcaicas eram um lócus de emancipação mais avançado para o indivíduo do que as relações sociais existentes sob o capitalismo. Ambos permaneceram distantes de como ele concebia a sociedade comunista.
Os rascunhos da carta de Marx a Zasulich não mostram nenhum vislumbre da ruptura dramática com suas posições anteriores que alguns estudiosos detectaram. Marx não sugeriu, como uma questão de princípio teórico, que a Rússia ou outros países onde o capitalismo ainda estava subdesenvolvido deviam se tornar o lócus especial para o início da revolução; nem pensava que os países com um capitalismo mais atrasado estivessem mais próximos do objetivo do comunismo do que outros com um desenvolvimento produtivo mais avançado. Para ele, rebeliões esporádicas ou lutas de resistência não devem ser confundidas com o estabelecimento de uma nova ordem socioeconômica de base comunista. A possibilidade que ele considerou em um momento muito particular da história da Rússia, quando surgiram oportunidades favoráveis para uma transformação progressiva das comunas agrárias, não poderia ser elevada a um modelo mais geral. A Argélia governada pela França ou a Índia britânica, por exemplo, não exibiam as condições especiais que a Rússia tinha naquela conjuntura histórica particular, e a Rússia do início da década de 1880 não podia ser comparada com o que poderia acontecer lá no futuro. O novo elemento no pensamento de Marx foi uma abertura teórica cada vez maior, que lhe permitiu considerar outros caminhos possíveis para o socialismo que ele nunca havia levado a sério ou considerado inatingíveis.
O que Marx escreveu é muito semelhante ao que Nikolai Chernyshevsky (1828-1889) havia escrito no passado. Essa alternativa era possível e, certamente, era mais adequada ao contexto socioeconômico da Rússia do que “[…] agricultura capitalizada no modelo inglês” (MARX, 1874-1888, p. 358). Mas ela poderia sobreviver apenas se “o trabalho coletivo suplantasse o trabalho por parcela − a fonte de apropriação privada”. Para que isso acontecesse, eram necessárias duas coisas: “[…] a necessidade econômica de tal mudança e as condições materiais para realizá-la” (MARX, 1874-1888, p. 356). O fato de a comuna agrícola russa ser contemporânea do capitalismo na Europa ofereceu a ela “[…] todas as condições necessárias para o trabalho coletivo” (MARX, 1874-1888, p. 356), enquanto a familiaridade do camponês com o artel facilitaria a verdadeira transição para o “trabalho cooperativo” (MARX, 1874-1888, p. 356).
Marx voltou a temas semelhantes em 1882. Em janeiro, no “Prefácio à segunda edição russa do Manifesto do Partido Comunista”, de sua coautoria com Engels, o destino da comuna rural russa está ligado às lutas do proletariado na Europa Ocidental:
Na Rússia encontramos, face a face com a fraude capitalista em rápido desenvolvimento e a propriedade da terra burguesa, que está apenas começando a se desenvolver, mais da metade das terras possuídas em comum pelos camponeses. Agora a questão é: pode a obshchina russa, uma forma de propriedade comum primordial da terra, mesmo se muito minada, passar diretamente para a forma superior de propriedade comum comunista? Ou deve, ao contrário, primeiro passar pelo mesmo processo de dissolução que constitui o desenvolvimento histórico do Ocidente? A única resposta possível hoje é esta: se a Revolução Russa se tornar o sinal para uma revolução proletária no Ocidente, de forma que as duas se complementem, a atual propriedade comum russa da terra pode servir de ponto de partida para o desenvolvimento comunista (MARX, 1874-1888, p. 426).
A tese básica que Marx frequentemente expressara no passado permanecia a mesma, mas agora suas ideias estavam mais relacionadas com o contexto histórico e os vários cenários políticos que eles abriram.
As considerações densamente discutidas de Marx sobre o futuro da obshchina são polos distantes da equação do socialismo com as forças produtivas − uma concepção que envolve tons nacionalistas e simpatia pelo colonialismo, que se afirmou dentro da Segunda Internacional e dos partidos social-democratas. Eles também diferem profundamente do suposto “método científico” de análise social preponderante no século XX no movimento comunista internacional.
Compreendendo a história mundial e a oposição ao colonialismo no norte da África
Entre o outono de 1881 e o inverno de 1882, uma grande parte das energias intelectuais de Marx foi para os estudos históricos. Ele trabalhou intensamente nos Extratos cronológicos (Chronological extracts), uma linha do tempo anotada ano a ano de eventos mundiais a partir do primeiro século a.C., resumindo suas causas e características salientes.
Marx queria testar se suas concepções eram bem fundamentadas à luz dos principais desenvolvimentos políticos, militares, econômicos e tecnológicos do passado. Por algum tempo, ele tinha consciência de que o esquema de progressão linear através dos “modos de produção asiáticos, antigos, feudais e modernos da burguesia” (MARX, 1857-1861, p. 263), que ele havia desenhado no Prefácio a Uma contribuição para a crítica da economia política (A contribution to the critique of political economy) (1859), era completamente inadequado para uma compreensão do movimento da história, e que era realmente aconselhável evitar qualquer filosofia da história. O frágil estado de saúde o impediu de realizar outro encontro com os manuscritos inacabados de O capital. Ele provavelmente pensou que havia chegado a hora de voltar sua atenção novamente para a história mundial, particularmente a questão-chave da relação entre o desenvolvimento do capitalismo e o nascimento dos Estados modernos.
Marx baseou-se particularmente em dois textos principais para sua cronologia. O primeiro foi a História dos povos da Itália (History of the peoples of Italy) (1825), do historiador italiano Carlo Botta (1766-1837); e o segundo foi a amplamente lida e aclamada História mundial para o povo alemão (World history for the German people) (1844-1857), de Friedrich Schlosser (1776-1861), que em vida foi considerado o principal historiador alemão. Marx preencheu quatro grossos cadernos com anotações sobre essas duas obras, em uma caligrafia, quase ilegível, ainda menor do que de costume. As capas trazem os títulos que Engels lhes deu quando estava examinando a propriedade de seu amigo: “Extratos cronológicos. I: 96 a c. 1320; II: c. 1300 a c. 1470; III: c. 1470 a c. 1580; IV: c. 1580 a c. 1648”. Em alguns casos, Marx acrescentou considerações críticas sobre figuras significativas ou apresentou suas próprias interpretações de eventos históricos importantes, a partir dos quais podemos inferir sua discordância com a fé no progresso e os julgamentos morais expressos por Schlosser. Essa nova imersão na história não parou na Europa, mas se estendeu à Ásia, ao Oriente Médio, ao mundo islâmico e às Américas.
No primeiro caderno de seus Extratos cronológicos, baseando-se principalmente em Botta, Marx preencheu 143 páginas com uma cronologia de alguns dos principais eventos entre 91 a.C. e 1370 d.C. Começando com a Roma antiga, ele passou a considerar a queda do Império Romano, a ascensão da França, a importância histórica de Carlos Magno (742-814), o Império Bizantino e as várias características e desenvolvimento do feudalismo. Após a publicação de O capital, volume um, Marx já havia se ocupado várias vezes com a Idade Média, e seu conhecimento sobre ela havia aumentado consideravelmente em 1868, quando ele se interessou por questões históricas e agrícolas e compilou cadernos de trechos de obras de vários autores nesses campos. Particularmente importante para ele foi a Introdução à História constitutiva do marco, fazenda, vila, cidade e autoridade pública alemã (Introduction to the constitutive history of the German mark, farm, village, town and public authority) (1854) pelo teórico político e historiador jurídico Georg von Maurer.
Marx disse a Engels que considerou os livros de Maurer ”extremamente significativos”, uma vez que abordavam de uma forma totalmente diferente, “[…] não apenas a era primitiva, mas também todo o desenvolvimento posterior das cidades imperiais livres, dos proprietários de terras com imunidade, da autoridade pública, e da luta entre o campesinato livre e a servidão” (MARX, 1864-1868, p. 557). Marx anotou atentamente tudo o que pôde ser útil para ele na análise dos sistemas tributários em vários países e épocas. Ele também teve grande interesse no papel especial da Sicília, nas margens do mundo árabe e da Europa, e nas repúblicas marítimas italianas e sua importante contribuição para o desenvolvimento do capitalismo mercantil. Finalmente, enquanto consultava outros livros que o ajudaram a integrar as informações fornecidas por Botta, Marx escreveu muitas páginas de notas sobre a conquista islâmica na África e no Oriente, as Cruzadas e os califados de Bagdá e Mosul.
No segundo caderno, compreendendo 145 páginas no período de 1308 a 1469, Marx continuou a transcrever notas sobre as cruzadas finais na “Terra Santa”. No entanto, a parte mais extensa novamente dizia respeito às repúblicas marítimas italianas e aos avanços econômicos na Itália, que Marx pensava como o início do capitalismo moderno. Também com base em Maquiavel, ele resumiu os principais acontecimentos nas lutas políticas da República de Florença. Ao mesmo tempo, com base na História Mundial de Schlosser para o Povo Alemão, Marx se debruçou sobre a situação política e econômica alemã nos séculos XIV e XV, bem como a história do Império Mongol durante e após a vida de Gengis Khan.
No terceiro caderno, de 141 páginas, Marx tratou dos principais conflitos políticos e religiosos do período de 1470 a c. 1580. Ele teve um interesse especial no confronto entre a França e a Espanha, as lutas dinásticas tumultuadas da monarquia inglesa, e a vida e influência de Girolamo Savonarola (1452-1498). Claro, ele também refez a história da Reforma Protestante, observando o apoio dado a ela pela classe burguesa emergente.
Finalmente, no quarto caderno de 117 páginas, Marx enfocou principalmente os numerosos conflitos religiosos na Europa entre 1580 e 1648. A seção mais longa tratou da Alemanha antes da eclosão da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e fez uma análise profunda deste período. Marx discorreu sobre os papéis do rei sueco Gustavus Adolphus (1594-1632), do cardeal Richelieu (1585-1642) e do cardeal Mazarin (1602-1661). Uma seção final é dedicada à Inglaterra após a morte de Elizabeth I (1533-1603).
Apesar de a Europa estar compreensivelmente no centro desses estudos, os quatro cadernos preenchidos durante esse período continham várias referências a países não europeus. Assim como em seus estudos econômicos, o velho continente não foi a única preocupação da pesquisa de Marx. Ele provavelmente deixou de lado o projeto de completar os Extratos cronológicos por causa dos graves problemas de saúde que estava sofrendo e, em fevereiro de 1882, foi convencido por seus amigos e médicos a visitar Argel para curar sua bronquite severa.
Nesse período, Marx também teve uma forte posição anticolonial. Na guerra de 1882, que se opôs às forças egípcias comandadas por Ahmad Urabi (1841-1911) e às tropas do Reino Unido, ele não poupou aqueles que se mostravam incapazes de manter uma posição de classe autônoma, e advertiu que isso era absolutamente necessário para os trabalhadores se oporem às instituições e à retórica do Estado. Quando Joseph Cowen (1829-1900), um MP e presidente do Congresso Cooperativo − Marx o considerava “o melhor dos parlamentares ingleses” −, justificou a invasão britânica do Egito, Marx expressou sua total desaprovação. Acima de tudo, ele criticou o governo britânico: “Muito bom! Na verdade, não poderia haver exemplo mais flagrante de hipocrisia cristã do que a ‘conquista’ do Egito − conquista no meio da paz!”
Mas Cowen, em um discurso em 8 de janeiro de 1883 em Newcastle, expressou sua admiração pela “façanha heroica dos britânicos” e pelo “deslumbramento de nossa parada militar”; ele também “não poderia deixar de sorrir com a pequena perspectiva fascinante de todas aquelas posições ofensivas fortificadas entre o Atlântico e o Oceano Índico e, na barganha, um ‘Império Africano-Britânico’ do Delta ao Cabo”. Era o “estilo inglês”, caracterizado pela “responsabilidade”, pelo “interesse doméstico”. Em política externa, concluiu Marx, Cowen era um exemplo típico dos “[…] pobres burgueses britânicos, que gemem ao assumirem cada vez mais ‘responsabilidades’ no serviço de sua missão histórica, enquanto protestam em vão contra ela” (MARX, 1880-1883a, p. 422-423).
Conclusões
Por meio de seu estudo das mudanças sociais e políticas nos Estados Unidos e na Rússia, suas esperanças de um fim à opressão colonial, sua análise do capitalismo e especulações sobre a próxima crise econômica possível, Marx observou constantemente os sinais de conflito social se desenvolvendo em todas as latitudes ao redor do mundo. Ele tentou acompanhar esses sinais onde quer que surgissem. Não sem razão, poderia dizer de si mesmo: “Sou um cidadão do mundo e ajo onde quer que esteja” (LAFARGUE, 1957, p. 73). Os últimos anos de sua vida não desmentiram esse modo de existência.
Os trabalhos finais de Marx foram certamente difíceis, mas também foram importantes teoricamente. Em contraste com o autor deturpado por seus biógrafos por tanto tempo, Marx não havia exaurido sua curiosidade intelectual e parado de trabalhar. De 1879 a 1882, ele não apenas continuou suas pesquisas, mas também as estendeu a novas disciplinas. Além disso, Marx examinou novos conflitos políticos (como a luta do movimento populista na Rússia após a abolição da servidão, a oposição à opressão colonial na Argélia, Egito e Índia, ou a discriminação contra trabalhadores migrantes chineses na Califórnia); novas questões teóricas (como formas comunais de propriedade em sociedades pré-capitalistas, a possibilidade de revolução socialista em países não capitalisticamente desenvolvidos ou o nascimento do Estado moderno); e novas áreas geográficas (como Rússia, Norte da África ou Índia).
A investigação dessas questões permitiu-lhe desenvolver conceitos mais matizados, influenciados pelas particularidades de países fora da Europa Ocidental. A publicação de materiais até então desconhecidos de Marx (cf. MUSTO, 2007; 2020a). juntamente a interpretações inovadoras de sua obra, está abrindo novos horizontes de pesquisa e demonstrando, mais claramente do que no passado, sua capacidade de examinar as contradições da sociedade capitalista em escala global e em esferas além do conflito entre capital e trabalho. É também claro que Marx sempre destacou a especificidade das condições históricas e a centralidade da intervenção humana na formação da realidade e na realização da mudança e, portanto, sua diferença com muitos “marxismos” dogmáticos do século XX.
Os avanços da pesquisa, juntamente às condições políticas alteradas, sugerem que a renovação da interpretação do pensamento de Marx é um fenômeno destinado a continuar. Publicações recentes têm mostrado que Marx se aprofundou em muitos assuntos − muitas vezes subestimados, ou mesmo ignorados, pelos estudiosos de sua obra − que estão adquirindo importância crucial para a agenda política de nosso tempo. Entre eles, estão a questão ecológica, a migração, a crítica do nacionalismo, a liberdade individual na esfera econômica e política, a emancipação do gênero, o potencial emancipatório da tecnologia e as formas de propriedade coletiva não controladas pelo Estado. Ainda há muito a aprender com Marx (cf. MUSTO, 2020b). Hoje é possível fazer isso não apenas estudando o que ele escreveu em suas obras publicadas, mas também as questões e dúvidas contidas em seus manuscritos inacabados.
References
1. Uma seção das notas de Marx sobre Kovalevsky, que inclui algumas das citações fornecidas aqui, ainda não foi traduzida para o inglês.
2. Anderson (2010, p. 223-224) sugeriu que a diferença com a Índia se deve em parte ao fato de que “a Índia foi colonizada em um período posterior por uma potência capitalista avançada, a Grã-Bretanha, que ativamente tentou criar propriedade privada individual nas aldeias)”.
3. Ver Marx (1975, p. 388). As palavras adicionadas por Marx estão entre aspas simples. Kevin Anderson (2010, p. 233) oas relacionou ao significado das “formas comunais da Índia” para Marx como “locais potenciais de resistência ao colonialismo e ao capital”.
4. O ato pelo qual um homem livre se coloca em uma relação de dependência (implicando certas obrigações de serviço) de um poder superior em troca de “proteção” ou reconhecimento de sua propriedade na terra.
5. Para uma análise das posições de Kovalevsky e de certas diferenças com as de Marx, consulte o capítulo “Kovalevsky sobre a comunidade da aldeia e propriedade da terra no Oriente”, em Krader (1975, p. 190-213), e Hudis (2010, p. 84). As palavras entre colchetes são de Marx.
6. As palavras entre aspas simples são dos Annales de Assemblée Nationale, VIII, Paris, 1873, incluídos no livro de Kovalevsky.
7. De acordo com Anderson (2010, p. 216 e 218), “essas passagens indicam uma mudança da visão [Marx] de 1853 da passividade indiana em face da conquista”; ele “muitas vezes ridiculariza ou exclui […] passagens de Sewell retratando a conquista britânica da Índia como uma luta heroica contra a barbárie asiática”. Desde os artigos sobre a revolta dos Sepoys, que Marx publicou no New-York Tribune em 1857, sua “simpatia” pela resistência indiana “apenas aumentou”.
8. Marx se referia à Segunda Guerra Afegã (1878-1880) e ao conflito sangrento na África do Sul conhecido como Guerra Anglo-Zulu (1879).
9. Este título foi dado postumamente por Lawrence Krader (1919-1998), o editor desses manuscritos. No entanto, o conteúdo desses estudos está mais relacionado à antropologia.
10. As partes de Phear e Maine foram incluídas em Marx (1972, p. 243-336).
11. De acordo com Bloch (1983), Marx queria antes de tudo “reconstruir uma história geral e uma teoria da sociedade para explicar o surgimento do capitalismo”.
12. A gens era uma unidade “[…] consistindo em parentes de sangue com uma descendência comum […]”, ver Morgan (1877, p. 35).
13. Neste trabalho, Engels realmente publicou alguns dos comentários de Marx sobre o livro de Morgan.
14. Cf. Dunayevskaya (1991, p. 173): “Marx […] mostrou que os elementos de opressão em geral, e das mulheres em particular, surgiram de dentro do comunismo primitivo, e não apenas relacionados à mudança do ‘matriarcado’”.
15. Cf. Brown (2013, p. 172): “Na Grécia antiga […] as mulheres eram claramente oprimidas, mas, para Marx, sua mitologia tinha o potencial de ilustrar para elas […] o quanto elas poderiam ser mais livres”.
16. Brown (2013) compilou diligentemente muitas outras considerações que atraíram a atenção de Marx.
17. Brown (2013, p. 123, 104, 164 e 136). Id., ibid., p. 123 e 104; id., ibid., p. 164 e 136. Veja Godelier (1977a, p. 67-68 e 101-102).
18. As palavras entre colchetes foram adicionadas por Marx. Ver Marx([1880-1882], p. 139).
19. Ver Godelier (1977b, p. 124). Para uma crítica de qualquer possível “retorno a um estado original de unidade”, ver Webb (2000).
20. Engels erroneamente acreditava que as posições políticas de Morgan eram muito progressistas. Veja, por exemplo, Friedrich Engels para Friedrich Adolph Sorge, 7 de março de 1884, onde ele escreveu que a Sociedade Antiga foi “uma exposição magistral dos tempos primitivos e seu comunismo. [Morgan] redescobriu a teoria da história de Marx por conta própria, […] tirando inferências comunistas em relação aos dias atuais” (ENGELS, 1883-1886, p. 115-116). Marx nunca se expressou nesses termos. Sobre o pensamento do antropólogo americano, ver Moses (2009).
21. De acordo com Krader ([1880-1882, p. 14): “Marx deixou claro, ao contrário de Morgan, que esse processo de reconstituição ocorrerá em outro nível que o antigo, que é um esforço humano, do homem para e por si mesmo, que os antagonismos da civilização são não estáticos ou passivos, mas são constituídos por interesses sociais que se articulam a favor e contra o resultado da reconstituição, e esta será determinada de forma ativa e dinâmica”. Como Godelier (2012, p. 78) apontou, em Marx nunca houve qualquer “’ideia de um primitivo’ El Dorado”. Ele nunca se esqueceu de que nas “sociedades sem classes” primitivas havia “pelo menos três formas de desigualdade: entre homens e mulheres, entre as gerações mais velhas e mais novas, e entre autóctones e estrangeiros”.
22. Neste trabalho, Marx analisou a “oposição” entre “sociedade civil” e “o Estado”. O Estado não está “dentro” da sociedade, mas fica “contra ela”. “Na democracia, o Estado como particular é meramente particular. […] Os franceses interpretaram isso recentemente como significando de que na verdadeira democracia o Estado político é aniquilado. Isso é correto na medida em que o Estado político […] não passa mais para o todo” (MARX, 1843-1844, p. 30). Sobre o ‘jovem Marx’ ver também Musto (2019).
23. Trinta anos depois, a crítica é mais contundente: “No mesmo ritmo em que o progresso da indústria moderna se desenvolveu, se alargou, intensificou o antagonismo de classe entre capital e trabalho, o poder do Estado assumiu cada vez mais o caráter de poder nacional de capital sobre o trabalho, de uma força pública organizada para a escravidão social, de uma máquina de despotismo de classe” (MARX, 1870-1871, p. 329). Ver também Musto (2005, p. 161-178).
24. Ver Tichelman (1983, p. 18). Ver também a visão de Engels sobre o dinheiro: “Seria uma coisa boa se alguém se desse ao trabalho de lançar luz sobre a proliferação do estado socialismo, recorrendo a um exemplo extremamente florescente da prática em Java. Todo o material encontra-se em Java, How to Manage a Colony […]. Aqui se vê como os holandeses, com base no comunismo secular das comunidades, organizaram a produção para o benefício do Estado e garantiram que o povo desfrutasse do que é, em sua própria avaliação, uma existência bastante confortável; a consequência é que as pessoas são mantidas em um estado de estupidez primitiva e o tesouro holandês arrecada 70 milhões de marcos por ano“ (cf. ENGELS, 1883-1886, p. 102-103, Friedrich Engels a Karl Kautsky, 16 de fevereiro de 1884).
25. Walicki (1969, p. 192) observa corretamente que os estudos de Marx sobre a Sociedade Antiga de Morgan “permitiram-lhe olhar de novo para o populismo russo, que era então a tentativa mais significativa de encontrar o que há de mais novo no mais antigo”.
26. Ver, por exemplo, Said (1995, p. 153-156). Said (1935-2003) não apenas argumentou que “as análises econômicas de Marx são perfeitamente ajustadas […] a um empreendimento orientalista padrão”, mas também insinuou que dependiam da “distinção milenar entre Oriente e Ocidente” (SAID, 1995, p. 154). Na realidade, a leitura de Said da obra de Marx foi unilateral e superficial. O primeiro a revelar as falhas em sua interpretação foi Sadiq Jalal al-Azm (1934-2016) que, no artigo “Orientalism and orientalism”, escreveu: ‘”Este relato das visões e análises de Marx de processos e situações históricas altamente complexas é uma farsa. […] não há nada específico para a Ásia ou o Oriente no ‘corpo da obra’ de Marx” (AL-AZM, 1980, p. 14-15). No que diz respeito a “capacidades produtivas, organização social, ascendência histórica, poder militar e desenvolvimento tecnológico, […] Marx, como qualquer outra pessoa, sabia da superioridade da Europa moderna sobre o Oriente. Mas acusá-lo […] de transformar este fato contingente em uma realidade necessária para sempre é simplesmente absurdo” (AL-AZM, 1980, p. 15-16). Da mesma forma, Ahmad (1992) bem demonstrou, como Said, “citações descontextualizadas” da obra de Marx, com pouco sentido para o que a passagem em questão representava, simplesmente para encaixá-las em seu “arquivo orientalista” (AHMAD, 1992, p. 231 e 223). Sobre as limitações dos artigos jornalísticos de Marx de 1853, ver Lindner (2010, p. 27-41).
27. Para Hobsbawm (1964, p. 50): “A crescente preocupação de Marx com o comunalismo primitivo: seu ódio e desprezo crescentes pela sociedade capitalista. […] Parece provável que Marx, que antes havia saudado o impacto do capitalismo ocidental como uma força desumana, mas historicamente progressiva, nas estagnadas economias pré-capitalistas, ficou cada vez mais chocado com essa desumanidade “.
29. Veja as interpretações de Wada (1984, p. 60), nas quais é argumentado que os rascunhos mostraram uma “mudança significativa” desde a publicação de O capital em 1867. Da mesma forma, Dussel (1990) falou de uma “mudança de curso” (WADA, 1984, p. 260, 268-269). Outros autores sugeriram uma leitura “terceiro-mundista” do falecido Marx, em que os sujeitos revolucionários não são mais os trabalhadores da fábrica, mas as massas do campo e da periferia. Reflexões e várias interpretações sobre essas questões também podem ser encontradas em Melotti (1977); Mohri (1979, p. 32-43); e Tible (2018).
30. Veja Sawer (1977, p. 67): “O que aconteceu, em particular na década de 1870, não foi que Marx mudou de ideia sobre o caráter das comunidades das aldeias, ou decidiu que elas podiam servir de base para o socialismo como eram; em vez disso, ele chegou a considerar a possibilidade de que as comunidades pudessem ser revolucionadas não pelo capitalismo, mas pelo socialismo. […] Ele parece ter nutrido seriamente a esperança de que, com a intensificação da comunicação social e a modernização dos métodos de produção, o sistema de vilas pudesse ser incorporado a uma sociedade socialista. Em 1882, isso ainda parecia a Marx uma alternativa genuína para a desintegração completa da obshchina sob o impacto do capitalismo”.
31. Cf. Venturi (1972, p. XLI): “Em suma, Marx acabou aceitando as ideias de Chernyshevsky”. Isso é semelhante à visão de Walicki (1969) em Controversy over capitalismo: “O raciocínio de Marx tem muita semelhança com a Crítica dos preconceitos filosóficos contra a propriedade comunal da terra de Chernyshevsky”. Se os populistas tivessem sido capazes de ler os rascunhos preliminares da carta a Zasulich, “[…] eles sem dúvida teriam visto neles uma justificativa confiável e inestimável de suas esperanças” (VENTURI, 1972, p. 189).
32. A forma artel de associação cooperativa, de origem tártara, baseava-se em laços consanguíneos e atendia à responsabilidade coletiva de seus associados perante o Estado e terceiros.
33. Segundo Walicki (1969, p. 180), o breve texto de 1882 “reafirmou a tese de que o socialismo tem uma chance melhor nos países altamente desenvolvidos, mas ao mesmo tempo pressupõe [d] que o desenvolvimento econômico dos países atrasados pode ser essencialmente modificado sob a influência das condições internacionais”.
34. Veja, ao contrário, Musto (2008, p. 3-32).
35. Veja Krätke (2018, p. 123) que, em sua reconstrução desses quatro cadernos, argumenta que Marx concebeu o nascimento dos Estados modernos como um processo relacionado ao “[…] desenvolvimento do comércio, agricultura, mineração, fiscalismo e infraestrutura espacial”. Krätke (2018, p. 92) também argumentou que Marx compilou essas notas na crença de longa data de que ele estava “[…] dando ao movimento socialista uma base científica social sólida em vez de uma filosofia política”.
36. Em alguns casos, o conteúdo dos cadernos difere ligeiramente das datas indicadas por Engels. A única parte publicada compreende aproximadamente um sexto do total do terceiro e do quarto cadernos, sendo a maior parte das páginas retiradas deste último. Esses materiais apareceram em 1953, em uma antologia sem referências textuais preparada por Harich (1953). Oito anos depois, o título mudou para Karl Marx e Friedrich Engels, Über Deutschland und die deutsche Arbeiterbewegung. As seções extraídas dos Chronological extracts estão incluídas no Band 1: Von der Frühzeit bis zum 18. Jahrhundert. Berlim: Dietz, 1973. p. 285-516.
37. Krätke (2018, p. 104) argumentou que “Marx não deu espaço ao eurocentrismo; ele considerou a história mundial de forma alguma, sinônimo de ’história europeia’”.
38. Veja o publicado recentemente MARX, Karl. Exzerpte aus Georg Ludwig von Maurer: Einleitung zur Geschichte der Mark-, Hof-, Dorf- und Stadt-Verfassung und der öffentlichen Gewalt. MEGA2, v. IV/18, p. 542-559, p. 563-577, p. 589-600.
39. Sobre o estudo de Marx sobre a obra de Maurer, veja Saito (2017, p. 264-265).
40. Krätke (2018, p. 111) sustentou que Marx situou “[…] os primórdios do capitalismo moderno […]” no “[…] desenvolvimento econômico das cidades-repúblicas italianas no final do século XIII”.
41. Krätke (2018, p. 112) argumentou que a queda do Estado mongol “[…] convida [d] Marx a refletir sobre os limites do poder político sobre vastos territórios”.
42. As partes desses extratos publicados na edição de Harich em 1953 totalizaram mais de 90 páginas: ver Marx e Engels (1978, p. 424-516).
43. Krätke (2018, p. 6) afirmou que o quarto caderno dos Extratos cronológicos mostra “a força de Marx como um cientista social historicamente bem informado, que facilmente alterna do desenvolvimento interno de países específicos para as principais políticas europeias e internacionais sem, no entanto, perder de vista os fundamentos econômicos do todo”. Junto aos quatro cadernos de trechos de Botta e Schlosser, Marx compilou outro caderno com as mesmas características, contemporâneo dos demais e relacionado à mesma pesquisa. Ele usou a História da República de Florença (1875) de Gino Capponi (1792-1876) e a História do povo inglês (1877) de John Green (1837-1883). O estado flutuante de sua saúde não lhe permitiu avançar mais. Suas anotações pararam com as crônicas da Paz de Westfália, que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos em 1648.
44. A guerra de 1882 terminou com a batalha de Tell al-Kebir (13 de setembro de 1882), que pôs fim à chamada revolta de Urabi, iniciada em 1879, e permitiu aos britânicos estabelecer um protetorado sobre o Egito.
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