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O essencial de Marx e Engels (Book Launch)

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Marx e Engels: Marcello Musto comenta sobre a atualidade do pensamento dos clássicos

Após o que você chama de “conspiração de silêncio de vinte anos sobre Marx” e depois da “embalsamação de seu pensamento” pelo marxismo-leninismo, houve uma retomada do pensamento de Marx? Em que consistiu essa embalsamação?

Crítico rigorosíssimo e sempre insatisfeito com os pontos de chegada, Marx foi frequentemente associado a um dogmatismo grosseiro. Feroz defensor da auto-emancipação da classe operária, foi aprisionado em uma ideologia que defendia o primado das vanguardas políticas. Proponente da ideia de que a condição fundamental para o socialismo era a redução da jornada de trabalho, foi assimilado à crença produtivista do stakhanovismo.

Interessado como poucos outros pensadores no livre desenvolvimento das individualidades humanas, afirmando, contra o direito burguês que oculta as desigualdades sociais sob uma mera igualdade legal, que “o direito, em vez de ser igual, deveria ser desigual”, foi associado a uma concepção que neutralizou a riqueza da dimensão coletiva no indistinto da homogeneização. Contrário a “prescrever receitas para a taverna do futuro”, foi indevidamente transformado no pai de um sistema social muito diferente de suas ideias.

Alguns estudiosos de Marx privilegiaram o crítico do capitalismo, o economista, separando-o do filósofo e do político. Os numerosos inéditos de Marx, que estão sendo publicados na edição alemã MEGA2, oferecem, ao contrário, uma espécie de gênio, como foi Leonardo da Vinci.

Desde o período universitário, Marx adotou o hábito de compilar cadernos de extratos dos livros que lia, intercalados com as reflexões que esses lhe sugeriam. Os manuscritos de Marx contém cerca de 200 cadernos (muitos ainda inéditos) que são essenciais para a compreensão da gênese de sua teoria e para entender melhor as partes dela que ele não teve oportunidade de desenvolver como gostaria. Não é excessivo afirmar que, entre os clássicos do pensamento econômico e filosófico, Marx é o cujos traços mudaram mais ao longo dos últimos anos.

Ele escreveu seus extratos em oito línguas, extraídos de textos das mais variadas disciplinas. Também inclui anotações de centenas de relatórios parlamentares, estatísticas econômicas e relatórios de órgãos governamentais de meio mundo. Marx era um estudioso global e muito analítico. Nada de – como foi escrito – se limitar a destacar apenas o núcleo racional da dialética de Hegel.

É possível falar de um Marx, salvo os pontos centrais de seu pensamento, que nunca foi definitivo e esteve sempre em desenvolvimento?

O Capital não foi o único projeto que ficou incompleto. A convicção de Marx de que suas informações eram insuficientes e seus julgamentos ainda imaturos o impediu de publicar vários escritos que ficaram apenas esboçados ou fragmentados. Isso não significa que seus textos incompletos tenham o mesmo peso dos publicados. Devem ser distinguidos cinco tipos de escritos: as obras publicadas, seus manuscritos preparatórios, os artigos jornalísticos, as cartas e os cadernos de extratos.

Além disso, alguns dos textos publicados não devem ser considerados como sua palavra final sobre os temas em questão. Por exemplo, o Manifesto do Partido Comunista foi considerado por Engels e Marx como um documento histórico, não como o texto definitivo onde estavam enunciadas suas principais concepções políticas. Marx continuou a desenvolver suas ideias até a fase final de sua existência. Não por acaso, seu lema preferido era De omnibus dubitandum [Tudo deve ser questionado].

Marx publicou mais de 500 artigos, ele foi um importante jornalista?

Por mais de uma década, Marx foi um dos principais correspondentes europeus do New-York Tribune, o jornal mais difundido nos Estados Unidos na época. Nos diversos artigos que redigiu, ele tratou de todas as crises econômicas que se sucederam e dos principais eventos políticos da época, tornando-se um jornalista respeitado. Poucos sabiam que por trás daquela assinatura estava um impenitente revolucionário.

Alguns desses textos são úteis para entender o pensamento de Marx sobre questões que ele não pôde tratar de maneira sistemática. Por exemplo, ele escreveu sobre a Guerra da Crimeia de 1853-56 e, apesar de sempre ter se oposto às políticas de Moscovo, declarou, contra os liberais democratas que exaltavam a coalizão anti-russa: “É um erro definir a guerra contra a Rússia como um conflito entre liberdade e despotismo. A parte do fato de que, se isso fosse verdade, a liberdade seria atualmente representada por um Bonaparte, o objetivo manifesto da guerra é a manutenção dos tratados de Viena, ou seja, dos mesmos tratados que anulam a liberdade e a independência das nações”. Se substituíssemos Bonaparte pelos Estados Unidos e os tratados de Viena pela OTAN, essas observações parecem escritas para os dias de hoje.

Marx foi, de certa forma, um precursor da questão ecológica, quando falou não apenas da exploração do homem pelo homem, mas também da exploração da terra pelo capitalismo?

A relevância que Marx atribuiu à questão ecológica está no centro de alguns dos principais estudos dedicados à sua obra nos últimos vinte anos. Em diversas ocasiões, ele denunciou que a expansão do modo de produção capitalista aumenta não só a exploração da classe trabalhadora, mas também o saqueamento dos recursos naturais.

Em O Capital, Marx observou que, quando o proletariado instaura um modo de produção comunista, a propriedade privada do globo terrestre por indivíduos isolados pareceria tão absurda quanto a propriedade privada de um ser humano por outro ser humano. Ele manifestou sua crítica mais radical à ideia de posse destrutiva inerente ao capitalismo, lembrando que “uma nação inteira ou até todas as sociedades de uma mesma época, tomadas como um todo, não são proprietárias da terra”. Para Marx, os seres humanos são “apenas seus usufrutuários” e, portanto, têm “o dever de transmitir às gerações futuras um planeta melhor, como bons pais de família”.

Marx é contra as imigrações, se escreveu. Mas quando presidia a Primeira Internacional, quis operários irlandeses à frente da seção londrina. Qual é a verdade?

Trata-se de uma das maiores bobagens escritas sobre Marx nos últimos anos. Ele se interessou muito pelas migrações e, entre suas últimas anotações, há registros sobre o pogrom ocorrido em São Francisco, em 1877, contra os migrantes chineses. Marx atacou os demagogos anti-chineses que alegavam que os migrantes “fariam os proletários brancos passarem fome” e aqueles que tentavam convencer a classe operária a adotar posições xenofóbicas.

Pelo contrário, Marx mostrou que o movimento forçado de mão de obra gerado pelo capitalismo era uma parte muito importante da exploração burguesa e que a chave para combatê-lo era a solidariedade de classe entre os trabalhadores, independentemente de suas origens ou de qualquer distinção entre mão de obra local e importada.

Marx foi um autêntico anticolonialista, atento ao Sul Global, o que contribui para explicar sua popularidade fora do circuito europeu?

Marx realizou investigações aprofundadas sobre as sociedades extra-europeias e se expressou sempre sem ambiguidade contra as devastações do colonialismo. Essas considerações são óbvias para quem leu Marx, apesar do ceticismo que hoje prevalece em certos círculos acadêmicos.

Por exemplo, quando escreveu sobre a dominação britânica na Índia, afirmou que os britânicos só conseguiram “destruir a agricultura indígena e dobrar o número e a intensidade das fomes”. Durante os últimos anos de vida, ele desenvolveu uma concepção multilinear do progresso, o que o levou a olhar com mais atenção para as especificidades históricas e as desigualdades econômicas e políticas dos países do sul.

Ele acreditava que o desenvolvimento do capitalismo não era um pré-requisito necessário para a revolução; ela poderia começar também fora da Europa. A flexibilidade teórica de Marx – bem diferente das posições de alguns de seus seguidores – contribui para a nova onda de interesse por suas teorias, do Brasil à Índia.

E é verdade que Marx, para usar uma expressão de hoje, também foi atento às questões de gênero, como os socialistas utópicos Fourier e Saint-Simon, que você convida a reler?

Voltar a ler a história variada do movimento operário, prestando atenção a todas as lutas que o caracterizaram, ajuda a entender o quanto são erradas aquelas leituras que representam o socialismo como uma ideologia exclusivamente interessada no conflito entre capital e trabalho. Isso implica também superar a velha vulgata marxista que considerou o de Marx como o único “socialismo científico” e que usou o adjetivo “utópico” de forma puramente depreciativa. Para repensar a alternativa ao capitalismo, é necessário reutilizar todo o arsenal do pensamento socialista, embora Marx continue sendo o elemento central.

Sobre seu último livro, O Essencial de Marx e Engels, publicado em dezembro 2024, em 3 volumes – Escritos filosóficos (294 páginas); Escritos econômicos (310 páginas); Escritos políticos (335 páginas) – que reúne um vasto acervo da produção teórica de Marx e Engels. Como foi o processo de análise e seleção dos textos, capítulos, obras e documentos presentes na antologia?

A obra de Marx e Engels é composta por dezenas de livros, centenas de artigos em jornais e revistas, milhares de páginas de manuscritos preparatórios e de rascunhos de projetos inacabados, uma correspondência constituída por mais de 4 mil cartas encontradas, além de uma grande quantidade de cadernos de anotações, em grande parte ainda inéditos, contendo extratos e comentários dos livros que leu durante os muitos estudos realizados e sua longa atividade política. Selecionar 900 páginas “essenciais” dessa vasta massa de materiais – que, além disso, abrange os mais diversos campos do saber humano, foi redigida em várias línguas e inclui um número considerável de escritos incompletos e fragmentários – é uma tarefa muito complexa.

Deve-se também lembrar que existem escritos nos quais foram expostas ideias que foram superadas após novas pesquisas e que, portanto, não contêm as conclusões finais, relacionadas aos temas tratados, às quais chegaram seus autores. A necessidade de respeitar as dimensões convencionais dos livros de hoje tornou impossível incluir nesta antologia trechos de todos os principais escritos de Marx e Engels. Por questões de espaço, alguns deles tiveram que ser excluídos e, para outros, foi necessário escolher poucas linhas em vez do que merecia ser apresentado em várias páginas.

No entanto, um “Essencial” não tem a ambição de substituir a obra completa; ao contrário, tem o objetivo de estimular os leitores a descobrirem os textos em sua totalidade e maior complexidade.

Qual é o diferencial da obra que a torna uma das principais antologias produzidas em escala internacional dos textos teóricos de Marx e Engels?

Marx e Engels são indiscutivelmente dois clássicos. Eles têm uma contribuição da qual não se pode prescindir e que permanece indispensável apesar do passar do tempo. Aos clássicos retornamos continuamente para rediscutir as questões que mais contribuíram para entender e resolver, mas eles também são convocados em relação a novas temáticas que surgem com a transformação da sociedade e em relação a questões antigas que assumem nova relevância. É por essa razão que, a custo de sacrificar algumas páginas do Marx mais conhecido, não quis deixar de incluir alguns trechos, também inéditos em português, sobre ecologia, gênero, liberdade individual, tecnologia, nacionalismo, colonialismo e guerra – com prazer em destacar a importância da contribuição de Engels sobre esses pontos.

Como a obra contribui para aprimorar as interpretações sobre Marx e o marxismo na atualidade?

Todos esses temas que acabo mencionar têm importância crucial no debate atual, e as teorias de Marx e Engels continuam a oferecer interessantes pontos de reflexão sobre algumas das questões contemporâneas mais significativas. As publicações da Marx Engels Gesamtausgabe (MEGA²) desmentiram aqueles que afirmaram que Marx era um autor sobre o qual já se tinha dito e escrito tudo. Ainda há muito a aprender com Marx. Espero que esta antologia seja útil tanto para os especialistas que acreditam, erroneamente, saber tudo sobre Marx e Engels, quanto para uma nova geração de leitores que ainda não conhece seus escritos.

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Musto: A crítica de Marx ao colonialismo é mais relevante do que nunca

Durante as últimas duas décadas, temos assistido a um ressurgimento do interesse pelo pensamento e pela obra de Karl Marx, autor de importantes obras filosóficas, históricas, políticas e econômicas – e, claro, do Manifesto comunista, que é talvez o manifesto político mais popular do mundo. Este ressurgimento é resultado, em grande parte, das consequências devastadoras do neoliberalismo em todo o mundo. Isto é, níveis sem precedentes de desigualdade econômica, decadência social e descontentamento popular, bem como uma intensificação da degradação ambiental que aproxima o planeta cada vez mais de um precipício climático. Junta-se a isso a incapacidade das instituições formais da democracia liberal de resolver esta lista crescente de problemas sociais. Mas será que Marx ainda é relevante para o panorama socioeconômico e político que caracteriza o mundo capitalista de hoje? E o que dizer do argumento de que Marx era eurocêntrico e tinha pouco ou nada a contribuir sobre o colonialismo?

Marcello Musto, importante estudioso marxista e professor de sociologia na Universidade de York em Toronto, Canadá, tem participado desse ressurgimento do interesse por Marx. Musto afirma, numa entrevista exclusiva para a Truthout, que o autor do Manifesto ainda é muito relevante hoje, além de contestar a alegação de que ele era eurocêntrico. O professor argumenta que Marx foi, de fato, intensamente crítico do impacto do colonialismo.

C.J. Polychroniou: Na última década, houve um interesse renovado na crítica de Karl Marx ao capitalismo entre os intelectuais públicos de esquerda. No entanto, o capitalismo mudou drasticamente desde a época de Marx, e a ideia de que ele está fadado à autodestruição devido às contradições que surgem do funcionamento de sua própria lógica já não merece credibilidade intelectual. A classe trabalhadora de hoje é muito mais complexa e diversificada do que a da época da Revolução Industrial. Além disso, a missão histórica mundial imaginada por Marx não foi cumprida pela classe trabalhadora. Na verdade, foram estas considerações que deram origem ao pós-marxismo, uma postura intelectual em voga entre as décadas de 1970 e 1990, que ataca a noção marxista de análise de classe e subestima as causas materiais da ação política radical. Mas agora, ao que parece, há um regresso mais uma vez às ideias fundamentais de Marx. Como deveríamos explicar o renovado interesse por Marx? Na verdade, Marx ainda é relevante hoje?

Marcello Musto: A queda do Muro de Berlim foi seguida por duas décadas de conspiração de silêncio sobre a obra de Marx. Nas décadas de 1990 e 2000, a atenção dada a Marx era extremamente escassa e o mesmo pode ser dito sobre a publicação, e a discussão, dos seus escritos. O trabalho de Marx — já não identificado com a detestável função de instrumentum regni da União Soviética — tornou-se o foco de um renovado interesse global em 2008, após uma das maiores crises econômicas da história do capitalismo. Jornais de prestígio, bem como periódicos de amplo público, descreveram o autor de O capital como um teórico clarividente, cuja atualidade recebeu mais uma vez confirmação. Marx tornou-se, em quase toda parte, tema de cursos universitários e conferências internacionais. Os seus escritos reapareceram nas prateleiras das livrarias e a sua interpretação do capitalismo ganhou impulso renovado.

Nos últimos anos, assistiu-se também a uma reconsideração de Marx enquanto teórico político, fazendo com que muitos autores de visão progressista sustentassem que as suas ideias continuam a ser indispensáveis para quem acredita ser necessário construir uma alternativa à sociedade em que vivemos. O recente “renascimento de Marx” não se limita apenas à sua crítica à economia política, mas também à redescoberta da ideologia e das interpretações sociológicas do autor de O capital. Ao mesmo tempo, muitas teorias pós-marxistas demonstraram suas falácias e acabaram por aceitar os fundamentos concretos da sociedade — embora as desigualdades que a destroem e minam completamente a sua coexistência democrática estejam a crescer de formas cada vez mais dramáticas.

Certamente, a análise de Marx sobre a classe trabalhadora precisa de ser reformulada, uma vez que foi desenvolvida na observação de uma forma diferente de capitalismo. Se as respostas para muitos dos nossos problemas contemporâneos não podem ser encontradas em Marx, ele centra, no entanto, as questões essenciais. Penso que esta é a sua maior contribuição hoje: ele nos ajuda a fazer as perguntas certas, a identificar as principais contradições. Isso não me parece pouca coisa. Marx ainda tem muito a nos ensinar. A sua elaboração contribui para compreendermos melhor o quão indispensável ele é para traçar uma alternativa ao capitalismo — hoje, ainda mais urgentemente do que no seu tempo.

CJP: Os escritos de Marx incluem discussões sobre questões como natureza, migração e fronteiras, que recentemente receberam atenção renovada. Você pode discutir brevemente a abordagem de Marx à natureza e sua opinião sobre migração e fronteiras?

MM: Marx estudou muitos assuntos — no passado muitas vezes subestimados, ou mesmo ignorados, pelos seus estudiosos — que são de importância crucial para a agenda política dos nossos tempos. A relevância que Marx atribuiu à questão ecológica é o foco de alguns dos principais estudos dedicados à sua obra nas últimas duas décadas. Em contraste com interpretações que reduziam a concepção de socialismo de Marx ao mero desenvolvimento das forças produtivas (trabalho, instrumentos e matéria-prima), ele demonstrou grande interesse pelo que hoje chamamos de questão ecológica.

Em repetidas ocasiões, Marx argumentou que a expansão do modo de produção capitalista aumenta não só a exploração da classe trabalhadora, mas também contribui para o esgotamento dos recursos naturais. Ele denunciou que “todo progresso na agricultura capitalista é um progresso na arte, não apenas de roubar o trabalhador, mas também de roubar o solo”. Em O capital., Marx observou que a propriedade privada da terra por indivíduos é tão absurda quanto a propriedade privada de um ser humano por outro ser humano.

Marx também se interessou muito pela migração e entre os seus últimos estudos estão notas sobre o massacre ocorrido em São Francisco, em 1877, contra os migrantes chineses. Marx criticou os demagogos anti-chineses quando estes afirmavam que os migrantes fariam os proletários brancos morrer de fome. Sua crítica também foi contra aqueles que tentaram persuadir a classe trabalhadora a apoiar posições xenófobas. Assim, Marx mostrou que o movimento forçado de trabalho gerado pelo capitalismo era um componente muito importante da exploração burguesa e que a chave para combatê-lo era a solidariedade de classe entre os trabalhadores, independentemente das suas origens ou de qualquer distinção entre trabalho local e importado.

CJP: Uma das objeções mais ouvidas sobre Marx é que ele era eurocêntrico e que até justificou o colonialismo como necessário para a modernidade. No entanto, embora Marx nunca tenha desenvolvido a sua teoria do colonialismo tão extensivamente como a sua crítica da economia política, ele condenou o domínio britânico na Índia nos termos mais inequívocos, por exemplo, e criticou aqueles que não conseguiram ver as consequências destrutivas do colonialismo. Como você avalia Marx nessas questões?

MM: O hábito de usar citações descontextualizadas da obra de Marx data de muito antes do Orientalismo de Edward Said, um livro influente que contribuiu para o mito do alegado eurocentrismo de Marx. Hoje, leio frequentemente reconstruções das análises de Marx sobre processos históricos muito complexos que são puras invenções.

Já no início da década de 1850, nos seus artigos (contestados por Said) para o New-York Tribune — um jornal com o qual colaborou durante mais de uma década — Marx não tinha ilusões sobre as características básicas do capitalismo. Ele sabia muito bem que a burguesia nunca tinha “realizado um progresso sem arrastar indivíduos e pessoas em sangue e sujeira, através da miséria e da degradação”. Mas ele também estava convencido de que, através do comércio mundial, do desenvolvimento das forças produtivas e da transformação da produção em algo cientificamente capaz de dominar as forças da natureza, “a indústria e o comércio burgueses [criariam] estas condições materiais de um novo mundo.” Estas considerações refletiam apenas uma visão parcial e ingênua do colonialismo sustentada por um homem que escrevia um artigo jornalístico com apenas 35 anos de idade.

Mais tarde, Marx empreendeu extensas investigações sobre sociedades não europeias e o seu anticolonialismo ferrenho tornou-se ainda mais evidente. Estas considerações são óbvias para qualquer pessoa que tenha lido Marx, apesar do ceticismo em alguns círculos acadêmicos que representam uma forma bizarra de decolonialidade e assimilam Marx a pensadores liberais. Quando Marx escreveu sobre o domínio da Inglaterra na Índia, afirmou que os britânicos só conseguiram “destruir a agricultura nativa e duplicar o número e a intensidade da fome”. Para Marx, a supressão da propriedade coletiva da terra na Índia nada mais foi do que um ato de vandalismo inglês, empurrando o povo nativo para trás, e certamente não para a frente.

Em nenhum lugar das obras de Marx há a sugestão de uma distinção essencialista entre as sociedades do Oriente e do Ocidente. E, de fato, o anticolonialismo de Marx — particularmente a sua capacidade de compreender as verdadeiras raízes deste fenômeno — contribui para a nova onda contemporânea de interesse pelas suas teorias, do Brasil à Ásia.

CJP: A última viagem que Karl Marx empreendeu antes de morrer foi em Argel. Você pode destacar suas reflexões sobre o mundo árabe e o que ele achou da ocupação francesa na Argélia?

MM: Contei esta história — tão pouco conhecida — no meu livro, O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883). No inverno de 1882, último ano de sua vida, Marx teve uma grave bronquite e seu médico recomendou-lhe um período de descanso em um lugar quente como Argel, para escapar dos rigores do inverno. Foi a única vez em sua vida que passou fora da Europa.

Devido à sua saúde debilitada, Marx não conseguiu estudar a sociedade argelina como gostaria. Em 1879, já tinha examinado a ocupação francesa na Argélia e argumentado que a transferência da propriedade fundiária das mãos dos nativos para as dos colonos tinha um objetivo central: “a destruição da propriedade coletiva e sua transformação em objetos de compra e venda”. Marx notou que esta expropriação tinha dois propósitos: fornecer aos franceses o máximo de terras possível e arrancar os árabes dos seus laços naturais com o solo, o que significava mitigar qualquer perigo de rebelião. Marx comentou que esse tipo de individualização da propriedade da terra não só garantiu enormes benefícios econômicos para os invasores, mas também alcançou um objetivo político: “destruir os alicerces da sociedade”.

Embora Marx não pudesse prosseguir essa investigação, ele fez uma série de observações interessantes sobre o mundo árabe quando esteve em Argel. Ele atacou, com indignação, os abusos violentos dos franceses, os seus constantes atos provocativos, a sua arrogância descarada, a presunção e a obsessão em vingança — como Moloch face a cada ato de rebelião da população árabe local.

Nas suas cartas de Argel, Marx relatou que, quando um assassinato é cometido por um bando árabe, geralmente com a intenção de roubar, e os criminosos são devidamente detidos, julgados e executados, isso não é considerado castigo suficiente para a família do colono roubada. Exigem ainda a prisão de pelo menos meia dúzia de árabes inocentes: “Uma espécie de tortura é aplicada pela polícia, para forçar os árabes a ‘confessar’, tal como os britânicos fazem na Índia.” Marx escreveu que quando um colono europeu vive entre aqueles que são considerados “raças inferiores”, seja como colono ou simplesmente a negócios, geralmente considera-se mais inviolável do que o rei. E Marx também enfatizou que, na história comparada da ocupação colonial, “os britânicos e os holandeses superam os franceses”.

CJP: Estas reflexões lançam alguma luz sobre a perspectiva geral de Marx sobre o colonialismo?

MM: Marx sempre se expressou de forma inequívoca contra a devastação do colonialismo. É um erro sugerir o contrário, apesar do ceticismo instrumental tão em voga hoje em dia em certos meios acadêmicos liberais. Durante a sua vida, Marx observou de perto os principais acontecimentos na política internacional e, como podemos ver pelos seus escritos e cartas, expressou firme oposição à opressão colonial britânica na Índia, ao colonialismo francês na Argélia, e a todas as outras formas de dominação colonial. Ele era tudo menos eurocêntrico e fixado apenas no conflito de classes. Marx considerou fundamental o estudo de novos conflitos políticos e áreas geográficas periféricas para a sua crítica ao sistema capitalista. Mais importante ainda, ele sempre ficou do lado dos oprimidos contra os opressores.

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O Essencial de Marx e Engels (Book Launch)

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A genealogia do conceito de capitalismo

A palavra capitalismo raramente foi usada por Marx, e também estava ausente dos primeiros grandes clássicos da economia política

Embora Karl Marx seja considerado o principal crítico do capitalismo, ele raramente usou esse termo. A palavra também estava ausente dos primeiros grandes clássicos da economia política. Não só não tinha lugar nas obras de Adam Smith e David Ricardo, como também não foi usado nem por John Stuart Mill nem pela geração de economistas contemporâneos de Marx. Eles usaram o termo capital — comum desde o século XIII – mas não o termo capitalismo, que dele se deriva.

O termo capitalismo não apareceu até meados do século XIX. Era uma palavra usada principalmente por aqueles que se opunham à ordem existente das coisas, o qual tinha ademais uma conotação muito mais política do que econômica. Alguns pensadores socialistas foram os primeiros a usar essa palavra, sempre de forma depreciativa. Na França, em uma reedição da famosa obra L’organisation du travail, Louis Blanc argumentou que a apropriação do capital – e, através do próprio capital, do poder político – era monopolizada pelas classes abastadas.

Estas classes o concentraram em suas próprias mãos e, assim, restringiram o acesso a ele para outras classes sociais. Longe de tentar derrubar as bases econômicas da sociedade burguesa, Louis Blanc se declarou a favor da “supressão do capitalismo, mas não do capital”. Na Alemanha, o economista Albert Schäffle, ridicularizado com o epíteto de “socialista de poltrona”, em seu livro Capitalismo e socialismo, defendeu reformas do Estado para aliviar os amargos conflitos que se espalhavam amplamente, devido à “hegemonia do capitalismo”.

Desde seu primeiro uso, não havia uma definição compartilhada do conceito de capitalismo. Porém, essa dificuldade mudou mais tarde, quando o termo se espalhou amplamente e ganhou popularidade. As obras Capitalismo moderno, de Werner Sombart, e A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber, ambas publicadas no início do século XX, destinavam-se a mostrar – apesar de algumas diferenças – a essência do capitalismo no espírito de iniciativa, no cálculo racional frio e na busca sistemática do benefício pessoal.

Elas contribuíram muito para a popularização deste termo. No entanto, foi sobretudo graças à difusão da crítica marxista da sociedade que a palavra capitalismo – à qual a Enciclopédia Britânica não dedicou um verbete até 1922 – adquiriu um cartão de cidadania nas ciências sociais.

Além disso, depois de ter sido deixado à margem, se não explicitamente rejeitado, pelo discurso teórico das principais correntes da economia política, foi por meio da obra de Marx que o conceito de capitalismo ganhou centralidade mesmo nessa disciplina. Em vez de ser concebido como sinônimo de prática decisória política destinada a beneficiar as classes dominantes, por meio de Marx adquiriu o significado de um sistema específico de produção, baseado na propriedade privada das fábricas e na criação de mais-valia.

A contribuição involuntária de Marx para a propagação do termo “capitalismo” foi, de certa forma, paradoxal. Totalmente ausente dos livros que publicou, mesmo em seus manuscritos o termo Kapitalismus foi usado muito esporadicamente. Ele só apareceu em cinco ocasiões, sempre en passant, e sem que ele nunca fornecesse uma descrição específica da expressão. Marx provavelmente considerou que essa noção não estava suficientemente focada na economia política, mas, ao contrário, estava ligada a uma crítica da sociedade que era mais moral do que científica. De fato, quando teve que escolher o título de sua magnum opus, optou pelo uso do termo “capital” e não por “capitalismo”.

Em vez dessa palavra, ele preferiu outras que considerava mais apropriadas para definir o sistema econômico e social existente. Nos Grundrisse, ele se referiu ao “modo de produção do capital”, enquanto alguns anos depois, começando com os Manuscritos Econômicos de 1861-63, ele adotou a fórmula “modo de produção capitalista”. Essa expressão também aparece no Primeiro Livro de O capital, cujo famoso parágrafo inicial diz: “A riqueza das sociedades nas quais predomina o modo de produção capitalista aparece como uma imensa coleção de mercadorias”. A partir de então, na tradução francesa, bem como na segunda edição alemã, do Volume I de O capital, Marx também usou a fórmula “sistema capitalista”. Ele o repetiu nos rascunhos preliminares da famosa carta a Vera Zasulich em 1881.

Nesses e em vários outros escritos sobre a crítica da economia política, Karl Marx não forneceu uma definição concisa e sistemática do que era o modo de produção capitalista. O modus operandi do capitalismo só pode ser plenamente compreendido conectando as múltiplas descrições de sua dinâmica contidas em O capital.

No Volume I, Marx afirmou que “o traço característico da época capitalista é o fato de que a força de trabalho também assume a forma de uma mercadoria pertencente ao próprio trabalhador, enquanto seu trabalho assume a forma de trabalho assalariado”. A diferença crucial com o passado é que os trabalhadores não vendem os produtos de seu trabalho – que no capitalismo não são mais sua propriedade – mas o seu próprio trabalho.

Para Marx, o processo de produção capitalista se baseia na separação da força de trabalho e das condições de trabalho, condição que o capitalismo “reproduz e perpetua” para garantir a exploração permanente do proletariado. Este modo de produção “obriga o trabalhador a vender constantemente sua força de trabalho para viver e constantemente permite que o capitalista a compre para enriquecer”.

Além disso, Marx enfatizou que o capitalismo difere de todos os modos anteriores de organização produtiva por outra razão peculiar. Consiste na “unidade do processo de trabalho e do processo de criação de valor”. Ele descreveu o processo de produção capitalista como um modo de produção que tem uma natureza dupla: “por um lado, é um processo de trabalho social para a fabricação de um produto, por outro lado, é um processo de valorização do capital”.

O que impulsiona o modo de produção capitalista “não é o valor de uso ou o prazer, mas o valor de troca e [sua] multiplicação”. O capitalista foi descrito por Marx como um “fanático da valorização do valor”, um ser que “obriga inescrupulosamente a humanidade a produzir por produzir”.

Dessa forma, o modo de produção capitalista gera a expansão e concentração do proletariado, juntamente com um nível sem precedentes de exploração da força de trabalho.

Finalmente, embora certamente se concentre na economia, a análise de Marx do sistema capitalista não foi direcionada exclusivamente às relações de produção, mas constituiu uma crítica abrangente da sociedade burguesa que incluía a dimensão política, as relações sociais, as estruturas jurídicas e a ideologia, bem como as implicações que elas determinam em cada indivíduo.

Portanto, ele não considerava o capital como “uma coisa, mas como uma relação social específica de produção, pertencente a uma formação histórica específica da sociedade”. Portanto, não é eterno e pode ser substituído – através da luta de classes – por uma organização socioeconômica diferente.

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Virgínia Fontes, Le Monde Diplomatique Brasil

O sociólogo Marcello Musto, é um grande estudioso da obra de Marx e teve rara fineza ao definir a seleção para os três volumes que compõem O essencial de Marx e Engels. Entre os destaques está a coerência e a fidelidade à obra e trajetória de Marx e de Engels, aliadas à sensibilidade para a extração de textos que incidem, por exemplo, sobre a relação do Estado com as religiões (Estado teológico), a censura, o livre comércio, a brutalidade das colonizações capitalistas, o racismo, a desigualdade de gênero, a violência e a guerra. Temas dramáticos em nossos tempos.

O fio condutor da política, na obra de Marx, é a luta pela emancipação humana do jugo de um modo de produção histórico – o capital e o capitalismo – que expande as classes trabalhadoras por sucessivas expropriações, mas as subordina na extração de mais-valor e enreda no fetiche e na ideologia; que se apresenta como “natural e racional”; e que no século XIX avançava em direção a todos os quadrantes do planeta. Não há defesa de uma humanidade abstrata: a redução violenta da esmagadora maioria da população à mera condição de livres e necessitados vendedores de força de trabalho converte-se na universalidade da luta humana contra o capital, contra as burguesias, seu Estado e seus acólitos.

A política em Marx afasta-se determinadamente de uma “ciência política” liberal ordinária. Ela se explicita como ciência efetiva, como conhecimento das modalidades históricas do ser social sob o capital, das lutas sociais e de classe, das formas organizativas da classe trabalhadora em direção à revolução. Envolve uma crítica radical da “razão” burguesa em todas as suas manifestações. Contrapõe-se a uma suposta “política” ou um Estado neutros, fios condutores da dominação de classes, legitimação e cilada para enredar os subalternos.

A crítica de Marx desmente que o Estado possa ser a expressão da Razão (Hegel), pois é a forma política da dominação econômica. Em outros termos, não está acima e separado da sociedade civil, mas é seu fruto, assegurando o aprofundamento da exploração de classes que nela reina.

Não se deve enganar o leitor: assim como a crítica da economia política, a crítica efetiva do Estado exige compreender que as massas vivem sob sua dominação, mas que também agem, atuam, reivindicam e conquistam vitórias. É preciso desvendar cada uma dessas conquistas, valorizando-as, ao mesmo tempo em que se evidenciam seus limites reais. Explicitar as contradições é um ponto crucial.

Não bastam as belas e emocionadas palavras com que alguns denunciam o Estado; é preciso entender (e sentir) que estamos imersos num processo sócio-histórico (e metabólico) e que é sob essa dominação que transcorrem as lutas de classes. Não escolhemos o terreno da luta.

A política e as lutas não se limitam ao Estado nem a suas instituições. Precisam enfrentá-lo, mas atingindo todo o arcabouço da vida social, a começar pela propriedade do capital. A institucionalidade estatal está contida na análise, mas não é o centro. Este é o da revolução, o da superação do capital e de seu Estado. A clareza do alvo revolucionário envolve a explicitação da necessidade de processos organizativos, do enfrentamento cotidiano das múltiplas formas de produção da subalternidade e da construção/socialização de um conhecimento ao mesmo tempo teórico e prático dos – e para os – trabalhadores. A exigência é da luta e da organização políticas contra a política e o Estado.

O livro incorpora passagens polêmicas, por exemplo sobre a colonização britânica da Índia, permitindo sua contextualização. Acompanha aprendizados de Marx ao longo do tempo, como a relação com o campesinato e as exigências derivadas das conjunturas das lutas – da Comuna de Paris ao crescimento da luta eleitoral –, sempre com o agudo fio revolucionário.

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Alexandre Francisco Braga, Revista de Ciências do Estado

1 Introduco

Marcello Musto é um intelectual italiano que vem se destacando pelas recentes pesquisas sobre os últimos períodos de vida do pensador alemao Karl Marx (1818-1883). Musto, que é também professor de Sociologia na York University (Toronto, Canadá), já publicou Another Marx: Early Manuscripts to the International e Karl Marx: biografia intelectual e política, entre outros livros. Ou seja, ao longo da década de 2000 vem realizando uma proficua incursao no pensamento marxiano, ora para realizar uma descoberta de um Karl Marx quase desconhecido do grande público, ora para redescobrir pontos e análises conceituais que só agora tiveram a devida correqào no itineràrio que Marx tinha em mente ao dar inicio à sua crítica da sociedade civil burguesa.
Nessa seara, Marcello Musto realizou uma tarefa impecável, pois suas publicaqoes vao ajudar em muito na compreensao daquilo que Marx tinha como propósito analítico e como projeto político, a emancipaqào da classe trabalhadora. O livro de Marcello Musto – O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) -, em suas 158 páginas, contribui e contribuirá, sobremaneira, nessa direqáo, principalmente porque, após a dissoluqáo da Uniao Soviética, no ano de 1991, uma onda negacionista tomou conta dos debates políticos mundo afora, resultando num esquecimento quase que natural e numa crise do marxismo, que por pouco nao jogou por terra essa proposta de emancipaqào elaborada por Karl Marx, Friedrich Engels, Rosa Luxemburgo e toda uma geraqào de lutadores e lutadoras do povo em prol da classe do proletariado, nos últimos 200 anos.
Desse ponto de vista, ficou um vácuo de ideias progressistas, e para dificultar, surgiram pregaqoes que anunciavam o fim do Socialismo como decante e a vitória final da formaqào capitalista, como se a História fosse uma “planilha” que nao pudesse ser alterada pelo curso do desenvolvimento social, na sociedade, nas universidades e na militancia de esquerda. Portanto, a escrita de Marcello Musto e diversas outras publicaqoes que comeqam a circular nos meios académicos, desde 2008 retomam a discussao do projeto socialista e repoem o Marxismo no centro dos debates, seja no próprio meio universitário, seja nas redes sociais, ainda que o novo cenário apresenta um contexto de evoluqáo conservadora e reacionária.
Em seu livro, Musto traz quatro pontos importantíssimos para entendermos os últimos anos de vida de Karl Marx, entre os anos de 1881 e 1883: 1) O pardo da existencia e os novos horizontes de pesquisa; 2) A controvérsia sobre o desenvolvimento do capitalismo na Rùssia; 3) Os tormentos do “Velho Nick”; e 4) A última viagem do Mouro. Ao longo dos capítulos, o leitor se deparará com um Karl Marx nao só inédito, mas diferente daquilo que sempre se soube através dos escritos densos sobre economia política, temas internacionais e das agitaqoes
revolucionárias que abalaram o mundo de sua época. Aliás, nessa fase de maturidade, Marx se aventurou em temas como a matemática, a questao ecológica, temas americanos, botánica e os assuntos mais densos da luta que estava acontecendo em países como India, Egito e Argélia. Desta forma, nesse ciclo antes de seu passamento Marx era o “oposto de um autor eurocêntrico, economicista e absorvido exclusivamente pela luta de classes”, como prefacia Musto [1].

2 O gabinete da Rua Maitland Park Road

Mustojá começa a obra trazendo à tona fatos da intimidade pessoal de Karl Marx de pouco acesso de seus próprios leitores, inclusive dos círculos mais próximos de Marx, como a imersão do filósofo alemão em temas fora do eixo econômico-filosófico, como a preocupação de Marx com os assim chamados “temas americanos”, a redação dos cadernos sobre matemática, os estudos de fisiologia, de geologia, de agronomia, de química e de física, ou seja, uma série de temas multidisciplinares, boa parte deles localizados no escritório de uma casa alugada na Rua Maitland Park Road, situada na região periférica de Londres, onde era sua residência e da família Marx. Lá, moravam o Mouro [2], sua esposa Jenny (1814-1881), as filhas Eleanor (1855-1898) e Helene Demuth (1820-1890) e sua governanta de mais de 40 anos de convívio com o casal.A casa da Rua Maitland Park Road, número 41, era o refúgio para Karl Marx guardar seus mais de 2 mil volumes de livros, sobretudo acerca de Ciência Política, História alemã e Literatura Francesa, Italiana, Alemã e, desde 1869, sobre a Literatura Russa que Marx começou a estudar para melhor compreender o processo revolucionário russo. Nessa biblioteca, havia uma infinidade de autores como Shakespeare, Dickens, Molière, Racine, Montaigne, Bacon, Goethe, Voltaire, entre outras produções literárias. Além de serum reduto principal das visitas dos colaboradores, ativistas e líderes políticos dos mais diferentes locais do planeta, serviu, ainda, como centro de troca de correspondências internacionais entre os militantes socialistas, tanto que a caixa-postal da residência vivia abarrotada de cartas, de acordo com Musto [3]. Prova disso é que o próprio Friedrich Engels (1820-1895) se mudou para a vizinhança próxima à casa de Marx, na Rua Regent’ Park Road, número 122, há poucos metros de distância.Além do mais, o local era estratégico para a formação política da militância socialista, porque lá estavam guardadas publicações, documentos e resoluções mais importantes da AIT (Associação Internacional dos Trabalhadores), uma cópia de A Sagrada Família,escrita em coautoria com Engels, em 1845, da Miséria da Filosofia, também pelos dois amigos, e obras cruciais para o que se viria a ser conhecido depois como marxismo, como os livros Manifesto do Partido Comunista(1848), O 18 Brumário de Luís Bonaparte(1852), e o próprio O Capital, de 1867, sua obra-prima. No sótão da casa havia, ainda, sinopses e manuscritos inacabados, destinados à “crítica roedora dos ratos [4]”, cujo material literário situava-se perto de um divã de couro, onde Marx costumava descansar após horas de estudos em cima de materiais muitas vezes em língua original.Conforme Marcello Musto, no ano de 1881, Karl deu início aos estudos sobre Antropologia, indo estudar o livro A sociedade Antiga(1877), do antropólogo norte-americano Lewis Morgan (1818-1881), e resultando numa série de enxertos conhecidos como Cadernos Etnológicos. Essas anotações dispersas tratavam da colônia de Java na Indonésia, escrita por James Money (1818-1890), sobre a aldeia ariana na Índia, de autoria de Jonh Phear (1825-1905), e sobre história antiga das instituições, do historiador Enry Maine (1822-1888). Os Cadernos Etnológicos [5], de pouco mais de 100 folhas, não foram publicados por Marx, mas, posteriormente editados e lançados por Lawrence Krader (1919-1998) com o título de Cadernos Etnológicos de Karl Marx. Nos Cadernos Etnológicos, é possível encontrar outras anotações sobre a pré-história, o desenvolvimento dos vínculos familiares, as condições das mulheres, a origem das relações de propriedade, a formação da natureza e questões como as conotações racistas de alguns antropólogos da época e os efeitos do Colonialismo. Sobre isso Marx pensava:

a família moderna em germe não somente a servitus(a escravidão), mas também a servidão da gleba; desde o princípio, ela pôs suas relações a serviço da agricultura. Possui em miniatura todos os antagonismos que, mais tarde, se desenvolverão em massa na sociedade e em seu Estado […] na origem, era constituída diretamente de escravos [6].

Com isso, a palavra “família”, desde seu germe, tem haver com famulus(escravo, criado), e sem nenhuma relação com a criação de filhos pelos casais casados, mas, sim, com o conjunto de escravizados que são forçados a trabalhar para o patrão, regidos pelo poder do pater famílias. Isto é, foi a escravidão que esteve na orientação do princípio organizador da família, com seus antagonismos. Nesse aspecto, conforme Marcelo Musto, Marx dedicou especial atenção às condições das mulheres. Segundo a revisitação historiográfica que está sendo feita desde 2008 da posição marxiana sobre o tema, Marx observou que as sociedades antigas tinham melhor tratamento com as mulheres. A partir de dados elencados por Lewis Morgan, a mudança da descendência da linhagem materna para a paterna foi prejudicial para osexo feminino, entre os gregos, o que diminuiu o direito das esposas e mulheres, cujo modelo foi avaliado por Morgan como negativo. Na cultura grega da época a mulher passou a ser inferior, a “deusa da sabedoria saiu da cabeça de Zeus [7]”, como lembrou Marx.
Noutra ponta do debate histórico, Musto reforça em seu O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) a rejeição da ideia de que as mudanças sociais ocorreriam unicamente devido às transformações econômicas, uma vez que Karl Marx defendia, na verdade, a especificidade de cada condição histórica, as múltiplas possibilidades e a centralidade da ação humana para realizar as transformações, com clara condenação do avanço espontâneo do processo histórico. Principalmente, como acreditavam seus seguidores menos atentos, que a última fase burguesa se seguiria para o fim do capitalismo, automaticamente a ser superado pelo socialismo, o que resultou numa visão reformista que bloqueou o movimento operário e que negligenciava as próprias reflexões de Marx contrárias a essa interpretação. De acordo com Musto [8], Marx “jamais desejou um retorno ao passado, mas –como acrescentou na transcrição do livro de Morgan –vislumbrou um tipo de sociedade superior”. Isto porque, tanto como condenação do determinismo econômico como ponto de vista de que as contradições da civilização não eram estáticas e nem passivas, mas eram projetos realizados pelo esforço humano diante da necessidade de preservar a vida, e não pela evolução mecânica da sociedade. Ou falando de outra forma, pela ação consciente da classe trabalhadora [9].

3 A questão da comuna agrária russa

Outro ponto de especial atenção aos leitores e leitoras do livro de Marcello Mustoé a posição marxiana sobre a Rússia, que Marx considerava como o grande obstáculo à emancipação da classe trabalhadora, melhor dizendo: através de numerosas cartas e em artigos de grande repercussão internacional publicados no jornal New-York Tribune e na História Diplomática Secreta do Século XVIII (1856-1857),Marx considerava que o atraso das condições sociais, a lentidão do desenvolvimento econômico do país, o regime czarista de caráter despótico e a política externa conservadora levaram a uma postura contrarrevolucionária na Rússia. Porém, em sua fase de maturidade, e já tendo consolidada sua carreira como líder revolucionário e como agitador das massas proletárias, Karl Marx reviu boa parte dessas opiniões, na medida em que algumas transformações ocorridas nas condições sociais russas proporcionaram uma reviravolta e na mudança de rota, que agora poderiam viabilizar uma revolução mais intensa que a ocorrida na Inglaterra, por exemplo, uma vez que apesar de ser o berço do capitalismo e ter um maior contingente de operários fabris, o proletariado inglês havia perdido força por causa das algumas melhorias de suas situações de vida, como a redução da jornada de trabalho e o consequente reformismo dos sindicatos [10].
Karl Marx acompanhava a situação russa desde 1850, seja saudando as revoltas camponesas que resultaram a abolição da servidão, em 1861, seja através de estudos sobre estatísticas dos problemas locais, ou por meio do início do aprendizado da língua russa, oque o ajudou a melhor compreender esse cenário interno. A partir de 1881, as formas arcaicas de organização comunitária da Rússia levaram Marx a aprofundar os estudos e a troca de correspondências com militantes russos, como aquelas enviadas a militante do “RepartiçãoNegra”, Vera Zasulitch (1849-1919), que numa correspondência destinada a Marx, em 16 de fevereiro de 1881, resumiu quais eram os pontos centrais das discussões:

A comuna rural, liberada das exigências desmesuradas do fisco, dos pagamentos à nobreza e da administração arbitrária, é capaz de desenvolver-se pela via socialista, quer dizer, de organizar pouco a pouco sua produção e sua distribuição de produtos em bases coletivas. Nesse caso, os socialistas revolucionários devem envidar todos os esforços em prol da liberação da comuna e de seu desenvolvimento [11].

Nessa carta enviada a Karl Marx, Vera Zasulitchfazia uma consulta ao pensador alemão de como circulavam nos meios revolucionários e entre os ativistas a opinião de que a comuna rural era um atraso condenado à morte, e boa parte deles atribuiu ao próprio Marx a origem dessa opinião. Contrariamente, Zasulitch pensava que os revolucionários deviam dar todo apoio a essa comuna agrária de especificidade russa. O apelo da militante russa era para que Marx pudesse esclarecer tal dúvida, já que ele estava familiarizado com as relações comunitárias da época pré-capitalista. Em sua resposta, Marx relembrara que sua reflexão sobre o percurso seguido pela ordem econômica capitalista para sair do ventre da ordem econômica feudal era apenas uma referência à situação aplicada somente ao Velho Continente, diga-se Europa Ocidental, e que não servia para descrever outras situações em outras regiões do planeta, tendo em vista que seria necessário estudar separadamente cada um dos fenômenos e só depois confrontá-los. Resumindo: não havia a possibilidade de usar uma teoria histórico-filosófica geral para ser aplicada em casos diversos e diferentes [12].

4 1881, Karl Marx se torna “cidadão do mundo”

Na visão de Musto, ainda no ano de 1881, Karl Marx, apesar da profícua produção literária e sociológica, anda não era um teórico de referência internacional indubitável. Isso só veio a acontecer no século seguinte, no início do XX após as repercussões das resoluções adotadaspela Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) e pelo impacto provocado pela eclosão da Comuna de Paris, em 1871, que despertaram o interesse pela obra marxiana.
Mas a notoriedade como mentor político [13] de partidos políticos e lideranças sindicais veio em seguida à publicação de O Capital, reimpresso na Alemanha em 1873, o que em seu conjunto foram fatores que contribuíram para a expansão do pensamento de Karl Marx e da consolidação da figura de filósofo alemão como o grande expoente do movimento operário internacional, como aconteceu na construção de programas partidários e na redação de teses de cunho político, ou como Musto registrou [14]: “[…] em seus últimos anos Marx foi testemunha de um interesse cada vez maior, em muitos países europeus, por suas teorias –especialmente as contidas em seu magnum opus”. A título de exemplificação temos a influência de Karl Marx na redação do programa do Partido Social-Democrata dos Trabalhadores da Alemanha (SDAP), em 1875, na Federação do Partido dos Trabalhadores Socialistas da França (FPTSF), entre outras produções de ordem prática e nas quais sempre eram destacadas que a revolução não era uma derrubada simples do sistema, mas um processo longo e complexo [15].Se na esfera internacional Marx viu seus textos serem valorizados enquanto fonte de análises para deliberações filosóficas e políticas, no plano pessoal as coisas não andavam tão bem assim. Isto porque nas primeiras semanas de junho de 1881, sua esposa, Jenny von Westphalen, teve as condições de saúde pioradas por causa de um tratamento de câncer no fígado, obrigando Marx a se tornar seu mais íntimo enfermeiro e o casal indo morar em Eastbourne, próxima ao canal da Mancha [16]. E os infortúnios de Marx não cessariam tão cedo. Em 16 de agosto, sua filha Eleanor cai em depressão devido a um suposto noivado malsucedido; em outubro foi o próprio Marx que teve a saúde abalada, agora por uma forte bronquite, com risco de resultar em pneumonia, o que levou Marx a permanecer acamado por 12 dias; e no dia 2 de dezembro de 1881, aos 68 anos, falece sua esposa Jenny von Westphalen. Essa morte, nas palavras do Old Nick(gíria inglesa que significava “Velho Diabo”, e era assim que Karl Marx assinava na intimidade as cartas que enviava às filhas ou ao amigo Friedrich Engels), privaram-lhe de seu “maior tesouro [17].” A cronologia de dissabores levou Marx para um estado de convalescença e de um drama de acontecimentos familiares entretecedor, entre 1881 e 1882. Contudo, nesse curto período, Marx consegue tempo para se dedicar aos estudos sobre o desenvolvimento do Estado Moderno (século XV), consultando especialmente obras que resultaram nas Notas Sobre a história indiana, de 1879, inspiradas no livro História analítica da Índia,de Robert Sewell (1845-1925), História dos povos da Itália, do historiador Carlo Botta (1766-1837), e História do povo alemão,escrito por Friedrich Schlosser (1776-1861), totalizando 143 páginas sobre história. Todavia, a instabilidade de seu quadro de saúde interrompeu suas anotações sobre demais temas históricos da época, sob o risco de uma nova recaída na debilidade de saúde. Retrato disso é que em 1882 Marx foi obrigado a usar um respirador artificial, pelo qual os jornais alemães já tinham anunciado sua morte [18].

5 Os dias africanos de Karl Marx

Os 72 dias em que Karl Marx permaneceu em estadia no continente africano representam as últimas viagens do Mouro na procura para a cura de suas chagas. Obviamente, para o porte de um homem que estava em pleno exercício das funções cognitivas e teóricas, a conciliação entre o rigoroso tratamento médico e as expedições de análises políticas não deixou de ser realizadas, a partir da chegada do líder alemão à África, no dia 20 de fevereiro de 1882, após longas 34 horas de viagens até Argel, capital da Argélia. Marx foi ao continente africano à procura de soluções mais concretas para suas doenças, especialmente por tratamento mais eficaz contra a bronquite, a tosse ininterrupta e uma série de catarros que não lhe davam sossego, sendo prontamente acompanhado pelo juiz Albet Fermé, destacado militante socialista e único que conhecia a já famosa trajetória do paciente. Infelizmente, por infortúnio do destino, a época escolhida para as sessões de terapia foi de intensos períodos chuvosos e de frio, com o pior inverno que a cidade já tinha vivido. O médico de Karl Marx, Charles Stéphann (1840-1906), receitou, então, cuidados à base de xarope e de psicotrópicos, visando diminuir as dores de grande intensidade, e os mais intensos deles, reduzir drasticamente os esforços físicos, que significava para Marx abandonar qualquer trabalho de ordem intelectual, inclusive se preocupar com os problemas de ordem mundial. Na enfermaria, foi submetido à aplicação de medicamentos para estancar as dores, a proliferação de bolhas na região do tórax epara conter a insônia, além da tentativa de paralisar as feridas nas costas, na qual Marx queixou-se reclamando: “para uma mente sã num corpo são, ainda havia muito para fazer [19]”, numa alusão aos poucos resultados do longo e doloroso tratamento [20]. A última viagem do Mouro e única na região africana o impediu de fazer as correções da terceira edição alemã d’O Capital, de analisar a conjuntura política da época e de tecer comentários críticos sobre a propriedade comunal árabe, bem como de falar sobre a realidade argelina, pois fora realizada praticamente para se dedicar ao tratamento médico e para a cura de suas dores.Marx não deixou de observar da sacada do hotel em que estava sendo realizada a medicação que próximo ao local havia grupos de trabalhadores construindo casas, apesar de sadios, depois de três dias de trabalho, já apresentavam quadro de febre, e que parte do salário era para pagar despesas de medicamentos fornecidos pelos empreiteiros.Essas observações sobre a realidade árabe-argelina Marx as resumiram em 16 cartas redigidas às margens do Mar Mediterrâneo, com destaque para a visão anticolonial marxiana e sobre as relações sociais na cultura muçulmana. Um aspecto, nesse conjunto de cartas, que se destaca é a postura natural, elegante e digna do povo argelino, de vestimenta quase opulenta em contraste com a realidade europeia, principalmente a francesa, a qual registrou:

[…] a riqueza e pobreza não tornam os filhos de Maomé uns diferentes dos outros. A absoluta igualdade em suas relações sociais não é influenciada por elas. Pelo contrário, são notadas apenas pelos desonestos. Não que se refere ao ódio pelos cristãos e à esperança numa vitória definitiva sobre os infiéis, seus políticos consideram, com razão, que o sentimento e a prática de absoluta igualdade (não de riqueza e renda, mas da pessoa) são garantias para manter vivo o ódio e não abandonar a esperança. Ambos, no entanto, sem um movimento revolucionário, caminham para a ruína [21].

Por meio desse trecho da carta enviada à sua filha Laura Lafargue, em 13 de abril de 1882, Marx registra seus encantos e como ficou maravilhado com as relações sociais argelinas e da noção de igualdade crônica, porém ressaltou a necessidade de essa noção de igualdade ser permeada por um movimento de inspiração revolucionária que desse cabo a toda forma de opressão, destacadamente a colonial. Marx não deixou de perceber que na cultura muçulmana não havia a subordinação, a autoridade pregada pela cultura ocidental. Principalmente aquela oriunda das torturas contra os árabes e da brutalidade policial empregada pela autoridade colonial francesa. Feliz com o que viu, ficou mais lisonjeado, ainda maiscom os resultados dos tratamentos que finalmente deram certo, e Karl Marx pôde finalmente retornar à França, agora surpreendendo a todos, sem as longas madeixas e sem as barbas longas que o imortalizara.Assim, O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) é um livro que merece e precisa ser lido, pois possibilita redescobrir Karl Marx como homem, cidadão preocupado com o mundo e como uma pessoa comum que elabora e pensa os problemas sociais. Entretanto, merece uma discussão o deslize cometido pela edição brasileira da Boitempo, pois no original a obra foi publicada em italiano com o título “L’ ultimo Marx (1881-1883). Saggio di biografia intellectuale”. “Último Marx” atenderia melhor as exigências da luta contra o etarismo, e a categoria “velho” -, além de pejorativa para vários usos, carrega toda uma conotação de coisa que está em idade avançada, antiquada e em desuso, portanto, nada mais distante daquilo que o pensamento de Karl Marx se tornou, ao longo dos anos.

 

 

[1] MUSTO, Marcello. O velho Marx: uma biografía de seus últimos anos (1881-1883). Trad. Rubens Enderle. Sao Paulo: Boitempo, 2018, p. 11.

[2] Alusão à pele escura de Karl Marx que virou um apelido íntimo.

[3] MUSTO, O velho Marx, cit., p. 21.

[4] Marx assim se expressou porque estavam esquecidos em uma gaveta ou porque estavam proibidos de circular.

[5] MUSTO, O velho Marx, cit., p. 31.

[6] Morgan citado por Musto. Ibidem, p. 34.

[7] A deusa grega Atena era uma divindade no panteão grego, considerada a deusa da sabedoria, das habilidades e dos ofícios, da guerra. Ela ficou marcada por ter nascido ao sair da cabeça de seu pai, Zeus.

[8] MUSTO, O velho Marx, cit., p. 37.

[9] Idem.

[10] Ibidem, p. 59.

[11] Zasulitch citada por Musto.Ibidem, p. 61.

[12] Ibidem,p. 74-78.

[13] Apesar dessa nova situação de consulta às reflexões produzidas por Marx e Engels, com relação ao grande desconhecimento das décadas anteriores, é preciso salientar as limitações e a resistência enfrentada por Marx em diversas regiões da Europa.

[14] MUSTO, O velho Marx, cit., p.86.

[15] Musto refere-se ao O Capital.

[16] Marx citado por Musto.MUSTO, O velho Marx, cit., p. 101.

[17] Idem.

[18] Ibidem, p. 105-107.

[19] Conforme disse em carta enviada a Engels em 28 de março de 1882.

[20] MUSTO, O velho Marx, cit.,p. 111-113.

[21] Marx citado porMusto. MUSTO, O velho Marx, cit., p.117.

 

Referências bibliográficas

KRADER, Lawrence. Los apuntesetnológicos de Karl Marx.Trad. José María Ripalda. Madrid: Editorial Pablo Inglesias,1988. Disponível em: https://pensaryhacer.files.wordpress.com/2010/06/apuntes-etnologicos-de-carlos-marx.pdf.Acesso em: 24 fev. 2024.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro III: o processo global da produção capitalista. Trad.Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017.

MUSTO, Marcello. O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883). Trad.Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2018.

 

 

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Marcello Musto fala sobre O Renascimento de Marx e o futuro dos estudos sobre o tema

Marcello Musto é professor de sociologia da New York University, em Toronto, no Canadá. É autor e organizador de dezenas de livros e artigos sobre o pensador Karl Marx e o marxismo no Brasil. É autor de O velho Marx um biografia de seus últimos anos, da Boitempo, em 2018. Repensar Marx e marxismos, um guia para novas leituras, também da Boitempo, de 2022, e Karl Marx biografia intelectual e política, 1857-1883, pela Expressão Popular, em 2023. Ou seja, está super produtivo e agora a sua obra foi traduzida mundialmente em 25 idiomas. Para mais informações sobre o Marcello, os trabalhos, os estudos que ele faz, vocês podem visitar o site www.marcellomusto.org

O Renascimento de Marx é uma coletânea organizada por Marcello que conta com a colaboração valorosa de 22 autores e autoras. Foi publicada originalmente em inglês, traduzida no Brasil por Fábio Fernandes, da Autonomia Literária, parceira editorial da Fundação Perseu Abramo, cujo representante, Hugo, está conosco hoje e a quem desejamos boas vindas. O livro reúne grandes intelectuais de vários países, dois deles brasileiros reconhecidos, Michel Levy e Ricardo Antunes, que se debruçaram sobre a obra de Marx. A publicação está disponível para venda no site da Autonomia Literária.

O encontro com Marcello contou com as participações dos diretores da FPA, Carlos Árabe, Vivian Farias e Virgílio Guimarães, Rogério Chaves, coordenador editoral da FPA, Hugo Albuquerque, da editora parceira, além de convidados de fora de São Paulo, como o professor Juarez Guimarães, Antonio Rubim Albino e a pesquisadora Adriana Marinho. Acompanhe a seguir:

Marcello, é realmente uma obra de peso e de volume, com muitos artigos e vários aspectos do tema? Você pode nos fazer uma breve apresentação sobre o livro a partir do seu olhar de organizador da obra?

Marcello Musto: São 500 páginas com uma participação plural. Mas primeiro gostaria de agradecer pelo convite. É um prazer estar aqui com vocês. Esse livro é uma publicação que precisava ser organizada, porque a bibliografia de Marx nos últimos anos ganhou novas características. Começaria dizendo nos últimos quinze anos, porque, depois da crise econômica de 2008, Marx voltou ao interesse geral. Existe a clássica divisão entre o Marx economista, o filósofo, o sociólogo. Marx criticou o capitalismo, a economia política, o que outra vez chamou a atenção, depois de uma crise tão grande, tão forte, como foi a crise financeira mundial. Novos estudos sobre Marx permitiram resgatar o seu pensamento político, que é o que mais me interessa, e me libera para evitar esta divisão de disciplinas acadêmicas. Também porque os estudos publicados sobre ele nos últimos anos não só resgataram Marx, as ideias e interpretações desse autor, mas sobretudo porque Marx foi interrogado novamente em relação a novas questões.

Ou seja, eu falaria que sua obra mudou em alguns aspectos, chamando a atenção para questões que não eram vinculadas a Marx, erroneamente. Então, o primeiro ponto é: como é possível que Marx tenha mudado? Como é possível que um autor como Marx, tão estudado, tão influente politicamente e que tenha chamado a atenção desta forma diferente da que existia antes? Isso está relacionado a vários fatores. O primeiro deles é o fator político, e significa o fim do monopólio da interpretação de Marx, do marxismo leninismo, que fez tanto mal a Karl Marx por décadas: a ideia de que ele era a estátua que defendia o dogmatismo soviético, o Estado da Rússia, o assim chamado socialismo real. Mas há também a questão textual, que não é chata, só de acadêmicos e de especialistas. Marx era um autor muito ambicioso, crítico, autocrítico, então, muito diferente de muitos no marxismo, que era dogmático, e isso fez que ele tenha deixado muitos projetos inacabados. Ademais, Marx tinha a ideia de entender e ajudar o movimento dos trabalhadores a entender como funciona o capitalismo, o que é o modo de produção capitalista, e não só na Inglaterra ou na Europa, como falam hoje muitas pessoas que não o conhecem. Estava concentrado em entender isto como processo mundial, tornou-se verdadeira e completamente a ser pesquisador mundial, o que implicava a necessidade de ler e estudar sobre isso. Essa é a característica da obra de Marx que fez com que muitos documentos e textos que ele estava preparando não tenham sido publicados.

Nos últimos dez, quinze anos, essa nova edição nos está ajudando a olhar Marx de uma forma diferente. Porque muitos textos dele, que se consideram livros completos, não são, a maioria, na verdade. O manuscritos econômicos e filosóficos de 1844, A Ideologia alemã e os esboços preparatórios do Capital e o Teorias sobre a Mais-Valia, ou mesmo o segundo e terceiro livros de O Capital, e muitos outros textos filosóficos. Todos estes materiais agora são publicados de forma mais aberta, menos dogmática. A ideologia alemã não é como a bandeira do materialismo histórico dialético do Instituto Marx, Engels, Lenin, Stalin, mas um texto que possibilita olhar contradições também. Como agora todo O Capital está publicado em forma original, como era o manuscrito, entender quanto a pesquisa de Marx, em alguns pontos, ainda não era definitiva. Tudo isso é interessante para os militantes, partidos políticos e a esquerda porque estes documentos nos ajudam a olhar Marx de uma forma mais rigorosa como pesquisador e também conhecer o caminho que trilhou, mas que não foi capaz de terminar, por muitas razões. E depois há outras questões, quando algumas contradições tomam uma centralidade maior, penso que hoje as questões ecológica, de gênero, os processos migratórios na nossa sociedade são ainda mais importantes do que antes. Um pesquisador, um militante político não dogmático, se pergunta: mas é verdade que Marx não escreveu sobre isso, que Marx estava só interessado no trabalhador branco europeu, na contradição na fábrica? E a resposta é claramente não, não foi assim.

Com esses novos materiais, por exemplo, eu falaria que entre os livros mais importantes dos últimos anos sobre Marx seguramente estão muitos que falam de ecologia marxista. A questão é que Marx teve a possibilidade de olhar o mundo inteiro nos últimos quinze anos da vida muito mais que antes. E isso faz que se possa brincar com a biografia de Marx, um drama de seus amigos, como Berenguer, que sempre estiveram esperando que terminasse O Capital, mas ele tentou estudar novas coisas. Muitos marxistas não entenderam a centralidade da atividade política de Marx como organizador. Na verdade, o meu primeiro livro traduzido para o Brasil foi Trabalhadores com Livros, que é a história da Primeira Internacional. E é sobretudo sobre o quanto Marx aprendeu politicamente não só como pesquisador isolado na biblioteca do British Museum, mas como dirigente político, militante de processos políticos, como a Comuna de Paris, como a experiência dos populistas russos. Nos últimos anos da sua vida, ele pode finalmente pesquisar e estudar mais globalmente o mundo e olhar como o capitalismo estava se desenvolvendo em diferentes formas, nos Estados Unidos de forma muito diferente, muito mais rápida do que a do desenvolvimento clássico na Europa. Marx já estava odiando muito a Rússia e perguntando politicamente se era preciso que o capitalismo se desenvolvesse ou seria possível utilizar formas arcaicas de participação coletiva para futuras experiências socialistas e marxistas. Ele também estava completamente centrado em estudar países como Índia, Indonésia, Argélia, no Sul do mundo, pois entendia que a crítica colonial é fundamental.

Após a primeira exposição do autor, abrimos para que os participantes pudessem também fazer perguntas e comentários comentados por Marcello na sequência, que publicamos a seguir:

Hugo Albuquerque: Como é que você vê a questão do debate acerca da noção de dialética? Qual a importância de entender isso para entender o sistema de Marx de uma maneira mais geral?

Carlos Árabe: A primeira coisa que quero destacar é que ainda estamos na onda de apresentação de ampliação do conhecimento sobre o importante trabalho em que diversos autores se encontraram, através da coordenação e da direção do Marcello Musto, para falar da presença de Marx. Hoje isso é um acontecimento ao qual damos muita importância e insisto que ainda estamos nas primeiras ondas dessa apresentação, desse trabalho importante. Continuamos apostando no tsunami marxista.

Juarez Guimarães: Algumas décadas atrás, um pequeno livro do Pierre Anderson falava da divisão entre o marxismo russo e o marxismo ocidental, uma divisão que pode ser hoje problematizada, como ainda é um modo analítico precário, porque o marxismo ocidental, ele próprio, tem muitas divisões históricas desde o início do século 20. Mas ele apontava para um fenômeno importante, na minha opinião, que é uma separação entre os estudos marxistas que ocorriam no marxismo ocidental e os movimentos sociais e os partidos de esquerda. Isto é, estava se verificando um fenômeno de uma perda de organicidade entre a elaboração do marxismo e que não havia ocorrido nas primeiras gerações, já que o marxismo foi elaborado até a Segunda Internacional, muito inserido nas tradições de militância coletiva, seja dos partidos, seja de movimentos sociais. Talvez o Brasil hoje seja um dos melhores lugares do mundo para se testar a possibilidade de que um renascimento dos estudos de Marx seja enraizado e se relacione com as esquerdas formadas no país. Apesar de todas as limitações vividas de cultura política, institucionalidade e de fundamentos econômicos internacionais, a esquerda governa o país. É um dos raros países do mundo que conseguiram resistir à onda da extrema direita e de repor no centro da vida política do país um sentimento pelo menos de esquerda, e isso pode ser pensado do ponto de vista do marxismo. Então, uma oportunidade para alcançar uma audiência pública, de se tornar cultura política pública através da relação com esses partidos de esquerda e movimentos sociais.

Mas isso pode ser visto também do ponto de vista desses partidos e dos próprios movimentos sociais. Estou convencido que, sem uma cultura socialista democrática e reorganizada, os programas desses partidos e as plataformas reivindicatórias dos movimentos sociais apresentam limites fundamentais na luta contra o neoliberalismo. Isto é, eu aposto na possibilidade de uma fusão entre cultura marxista e partidos e movimentos sociais para se criar um contexto de superação possível do neoliberalismo. Penso, então, que esse trabalho em torno desse livro que nos reúne, que nos chama a reunir, traz um enorme potencial de reorganização da cultura do marxismo no Brasil. E nós, em Minas Gerais, estamos nos organizando para oferecer cursos a lideranças de movimentos sociais. Estamos organizando um circuito nas universidades mineiras a partir do marxismo de professores que estudam, se relacionam com o marxismo.

Adriana Marinho: Sou mestranda no programa de História Econômica da USP, orientanda do professor Lincoln Secco e quero saudar essa atividade que é super importante. Na história recente, algumas coisas levaram à noção de que a análise marxista sobre o capitalismo seria ultrapassada. Quero saber se o Marcello ressaltaria como contribuição para fazer frente a essa ideia alguns textos do Marx que acha mais importante. Porque acho que é uma ideia equivocada, ideológica, no sentido marxista da palavra. Quero que ele fale um pouco mais sobre como a crise de 2008 trouxe à tona novamente os escritos de Marx para os debates, principalmente na esquerda.

Vivian Farias: Quero saudar Marcello aqui, em nome da nossa instituição, do nosso presidente Paulo Okamotto, a importância do seu trabalho. Dizer que o nosso diretor, Carlos Henrique Árabe, já foi muito feliz no que tange ao nosso compromisso e à nossa perspectiva de não encerrar esse processo aqui, pois esse tipo de trabalho traz uma perspectiva de futuro. Toda a base ontológica que ele alicerça, o que temos enquanto esquerda, enquanto perspectiva de mudança de práxis, deve ser prioridade. E essa é a linha da nossa diretoria, do nosso presidente. Em tempos de governo, ainda mais do que antes, a gente precisa não errar os mesmos erros, e isso se sobrepõe à necessidade de voltar a ter uma densidade formativa em níveis diferentes.

Virgílio Guimarães: Muito obrigado, Marcello. A sua exposição, para mim equivale a um conhecimento e é também quase uma música para aqueles que sempre me dizem ser marxistas leninistas. Mas sou, como se dizia no século passado, o jovem Marx, que era visto ainda como alguém que sonhava e que fazia uma espécie de marxismo de alguma maneira utópico, e que o Marx, que não era ainda, no meu entendimento, recoberto da fuligem do socialismo real, do marxismo, da Terceira Internacional e mesmo de outras interpretações. Então, esse renascimento é, na verdade, uma redescoberta, uma reaplicação, do lado vivo do marxismo. Acho que isso merece também o Lênin, os marxistas leninistas não gostam do jovem Marx, chamado jovem no seu vigor, na sua vivacidade. Assim também que o jovem Marx, na sua vivacidade de pensar a transformação, revolucionário, mas também em o que está na cultura, no comunismo, é uma transformação cultural radical, a construção da sociedade comunista dos costumes. Isso que hoje falamos de pauta de costumes está no século XIX. Marx, na sociedade de homens, as mulheres livres, dá um repensar de família, de libertação pessoal da religião, aos dogmas impostos pela sociedade de classes e pela dominação que vem desde o escravismo, enfim, as diversas fases da vida social. Sobretudo hoje, quando vemos que a realidade que Marx colocou no local da transformação via desenvolvimento das forças produtivas, isso é uma realidade impressionante. Ou seja, a profecia de Marx é que no impacto do desenvolvimento das forças produtivas em níveis nunca antes imaginados, quando se pensava em ter acabado por tradição e de cidade, de campo e de trabalho manual e intelectual, pensamos que isso era utopia. Utopia coisa nenhuma. A realidade, que hoje está cada vez mais próxima de nós, os marxistas, ou seja, os revolucionários, os transformadores, os pensadores libertários, temos que saudar com muita paixão. Seu trabalho é também um renascimento da vivacidade da atualidade de Marx, renascendo, quem sabe, os próprios marxistas e esse pensamento marxista vivo que ficou encoberto por essa poeira.

Fernanda Estima: Quais os desafios para tornar Marx e seu pensamento mais popular? Carlos Henrique fala de um tsunami. Juarez tá lá, firme e forte, construindo um circuito de debate marxista. Nós temos aqui a militância conduzida pela nossa casa, pelo PT, na intenção também de fazer isso avançar. Mas nós precisamos que você dê essa resposta para a gente.

Antonio Albino Rubim: Como que o renascimento do pensamento de Marx tem tratado o tema da cultura e afins em um mundo que a disputa político cultural toma a forma de guerra cultural e marxismo cultural.

Marcello Musto: Eu dividiria a minha intervenção e a minha resposta em duas partes, porque acho que há uma parte mais teórica e depois uma parte de organização militante. Então, começaria com a teoria. E a pergunta de Hugo em relação à dialética de Hegel e o que Marx absorveu ou descartou da ideia. Acho que a dialética é um tema central e importante no pensamento do Marx. Dividiria a dialética e a relação com Hegel, com a escola da esquerda hegeliana fundamental pelo jovem Marx e também a ideia metodológica da dialética. Então, como olhar o capitalismo? Nos últimos anos, Marx desenvolveu muito esse tema e passou a uma concepção que era muito menos linear do desenvolvimento do capitalismo e que achava possível que a revolução, que os movimentos sociais não tinham de desenvolver, na forma clássica e mais esperada, mas onde o capitalismo estava mais desenvolvido não era assim. Ao mesmo tempo, Marx não mudou. Para Marx, o capitalismo é necessário, um momento importante do desenvolvimento, e os fatores econômicos claramente não precisam se desenvolver da mesma forma em todos os países. Essa me parece uma atuação da dialética de Marx em relação ao tema. Escolhi essa temática porque Adriana também está perguntando se a análise marxista do capitalismo é ultrapassada hoje. E falei que Marx tem de ser redescoberto. Uma das particularidades do livro O Renascimento de Marx é ser um convite a conhecê-lo. São 22 conceitos centrais do pensamento em Marx, verdadeiramente centrais, porque também há temas como arte, educação, nacionalismo, etnicidade e gênero, que foram centrais na análise de Marx, ainda que não sejam na leitura de muitos marxismos. Então aqui estamos falando o que Marx, e só ele, escreveu sobre estes temas, quais os limites destas interpretações hoje em um capitalismo que mudou e se desenvolveu muito. Mas também quais fundamentos de Marx são centrais para repensar todas essas questões. Esse tema, de que existe menos produção e que o setor produtivo tem menor peso, também é um tema muito difícil e complicado se lido na forma de uma sociologia do trabalho europeia, que fala de fim do trabalho, muitíssimo eurocêntrica e que não olha os processos que ocorrem no Sul global.

Afortunadamente, no Brasil há sociólogos importantes, como meu colega Ricardo Antunes, que fizeram desse sistema uma grande centralidade e também que circula no mundo contra esta interpretação de quais são, nos textos de Marx, para utilizar. Acho que é muito inédito aos que indicavam que são úteis somente para um público de especialistas do tema ou para um diretor acadêmico ou de pesquisadoras. Mas, ao mesmo tempo, acho que a responsabilidade de ter uma nova geração de estudiosos de Marx e organizar ontologias é ajudar os jovens, os ativistas, os militantes e todas as figuras, como lembrou Juarez, a ler uma crítica da nossa sociedade e não uma forma ontológica correta, porque às vezes essas antologias são muito perigosas. Agora precisamos reorganizar novos perfis de Marx e traduzir. E o último comentário que foi feito, sobre a biografia de Marx, acho que também é muito importante. Por isso passei muitos anos escrevendo sobre a biografia de Karl Marx, porque ajuda muito a entender o pensamento de Marx. É uma coisa muito importante para mim. Ajuda também a entender que antes era tudo maravilhoso e perfeito e hoje a esquerda está com enormes dificuldades. Antes também existiam grandíssimos problemas. Então, acho que estudar a história do movimento dos trabalhadores, as tantas dificuldades que passaram, nos ajuda a entender que nossos problemas contemporâneos são muitos, são graves, mas ao mesmo tempo históricos e podem ser mudados e melhorados. Com muita paixão, digo que algo precisa ser feito. Acho que a gente pode trabalhar muito sobre isso, mas não sou um autor de um campo que é importante, como nos anos 1960 e 1970. Há interesse para Marx, mas muito menor, digo que preciso de você e de muitas pessoas. Há a necessidade de fazer formação política em todos os lugares, porque o que existia antes desapareceu completamente. A minha história é biográfica, desde os meus primeiros anos como militante, como estudante na universidade. Venho de um país, a Itália, que tinha uma tradição, como talvez nenhum outro país do mundo, de formação política e da importância disso. Hoje não existe mais. É uma falha enorme no mundo da cultura, no mundo da universidade, no mundo da militância política. E acho que a maneira de organizar esta nova onda – e já estou preparando um segundo trabalho – também é importante agora preparar um trabalho de recepção, de entender o que é marxismo hoje e o que a esquerda precisa para fazer este trabalho de forma plural, de defender posições de formações políticas, mas ao mesmo tempo também de variedade geográfica.

O tema da cultura Marx e Engels sempre acharam importante. E é para mim um tema central, e vou chamar uma vez mais a atenção sobre esse tema que talvez seja prioritário hoje ou pela nossa tradição ou pela tradição do socialismo. Não é verdade que o socialismo é uma uma filosofia ou uma ideologia que se interessa exclusivamente ou quase exclusivamente pela luta de classes, na fábrica, o proletariado. O socialismo é uma ideia que é riquíssima, que se ocupa de todas as contradições do capitalismo e que tem na centralidade da cultura da educação grandíssimos autores e pensamentos que nos servem muito para hoje.

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Lançamento do livro O Renascimento de Marx (Book Launch)

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Os manuscritos de Marx (Book Launch)

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Marx foi um anticolonialista a favor da libertação do povo árabe

Quando viveu na Argélia, Marx atacou – com indignação – os abusos violentos dos franceses, seus atos provocativos repetidos, sua arrogância desavergonhada, presunção e obsessão em se vingar como Moloch diante de cada ato de rebelião da população árabe local.

“Uma espécie de tortura é aplicada aqui pela polícia, para forçar os árabes a ‘confessar’, assim como os britânicos fazem na Índia”, ele escreveu.

Marx: “O objetivo dos colonialistas é sempre o mesmo: destruir a propriedade coletiva indígena e transformá-la em objeto de compra e venda”.

O que Marx estava fazendo no Magrebe?

No inverno de 1882, durante o último ano de sua vida, Karl Marx teve uma bronquite grave e seu médico recomendou a ele um período de descanso em um lugar quente. Gibraltar foi descartada porque Marx precisaria de um passaporte para entrar no território, e como apátrida, ele não possuía um. O império bismarckiano estava coberto de neve e, de qualquer forma, ainda estava proibido para ele, enquanto a Itália estava fora de cogitação, uma vez que, como Friedrich Engels colocou, ‘a primeira condição quando se trata de convalescentes é que não haja assédio policial’.

Paul Lafargue, genro de Marx, e Engels convenceram o paciente a ir para Argel, que na época desfrutava de boa reputação entre os ingleses para escapar das rigores do inverno. Como lembrou mais tarde Eleanor Marx, filha de Marx, o que impulsionou Marx a fazer essa viagem incomum foi sua prioridade número um: concluir O Capital. Ele atravessou a Inglaterra e a França de trem e depois o Mediterrâneo de barco.

Ele viveu em Argel por 72 dias e essa foi a única vez em sua vida em que ele passou fora da Europa. À medida que os dias passavam, a saúde de Marx não melhorava. Seu sofrimento não era apenas físico. Ele se sentia muito solitário após a morte de sua esposa e escreveu a Engels que estava sentindo “ataques profundos de melancolia profunda, como o grande Dom Quixote”. Marx também sentia falta — devido a sua condição de saúde — de atividade intelectual séria, sempre essencial para ele.

Efeitos da introdução da propriedade privada pelos colonizadores franceses

Aprogressão de inúmeros eventos desfavoráveis não permitiu a Marx chegar ao fundo da realidade argelina, nem foi realmente possível para ele estudar as características da propriedade comum entre os árabes — um tópico que o interessava muito alguns anos antes. Em 1879, Marx copiou, em um de seus cadernos de estudo, trechos do livro do sociólogo russo Maksim Kovalevsky, Propriedade Comunal: Causas, Curso e Consequências de sua Declínio. Eles eram dedicados à importância da propriedade comum na Argélia antes da chegada dos colonizadores franceses, bem como às mudanças que eles introduziram. De Kovalevsky, Marx copiou: “A formação da propriedade privada da terra — aos olhos dos burgueses franceses – é uma condição necessária para todo progresso na esfera política e social. A manutenção contínua da propriedade comum, ‘como uma forma que apoia tendências comunistas nas mentes, é perigosa tanto para a colônia quanto para a pátria’. Ele também foi atraído pelos seguintes comentários: ‘a transferência da propriedade da terra das mãos dos nativos para as dos colonos foi perseguida pelos franceses sob todos os regimes. (…) O objetivo é sempre o mesmo: destruição da propriedade coletiva indígena e sua transformação em objeto de compra e venda livre, e por meio disso, a passagem final facilitada para as mãos dos colonos franceses”.

Quanto à legislação sobre a Argélia proposta pelo republicano de esquerda Jules Warnier e aprovada em 1873, Marx endossou a afirmação de Kovalevsky de que seu único propósito era a “expropriação do solo da população nativa pelos colonos europeus e especuladores”. A audácia dos franceses chegou ao ponto de “roubo direto”, ou conversão em “propriedade do governo” de todas as terras não cultivadas que permaneciam em comum para uso dos nativos. Esse processo foi projetado para produzir outro resultado importante: a eliminação do perigo de resistência pela população local. Novamente, através das palavras de Kovalevsky, Marx observou: “a base da propriedade privada e o estabelecimento de colonos europeus entre os clãs árabes se tornariam o meio mais poderoso para acelerar o processo de dissolução das uniões de clãs. (…) A expropriação dos árabes pretendida pela lei tinha dois objetivos: 1) fornecer aos franceses o máximo de terra possível; e 2) arrancar os árabes de seus laços naturais com a terra para quebrar a última força das uniões de clãs que estavam sendo dissolvidas, e assim qualquer perigo de rebelião”.

Marx comentou que esse tipo de individualização da propriedade da terra não apenas assegurou enormes benefícios econômicos para os invasores, mas também alcançou um “objetivo político: destruir a base dessa sociedade”.

Reflexões sobre o mundo árabe

Em fevereiro de 1882, quando Marx estava em Argel, um artigo no jornal local The News documentou as injustiças do sistema recém-criado. Teoricamente, qualquer cidadão francês na época poderia adquirir uma concessão de mais de 100 hectares de terra argelina, sem sequer sair de seu país, e então poderia revendê-la a um nativo por 40.000 francos. Em média, os colons vendiam cada pedaço de terra que compraram por 20 – 30 francos pelo preço de 300 francos.

Devido à sua saúde debilitada, Marx não pôde estudar esse assunto. No entanto, nas dezesseis cartas escritas por Marx

que sobreviveram (ele escreveu mais, mas foram perdidas), ele fez várias observações interessantes do sul do Mediterrâneo. As que se destacam são aquelas que lidam com as relações sociais entre os muçulmanos. Marx foi profundamente impressionado por algumas características da sociedade árabe. Para um “verdadeiro muçulmano”, ele comentou: “tais acidentes, bons ou maus, não distinguem os filhos de Maomé. A igualdade absoluta em sua interação social não é afetada. Pelo contrário, só quando corrompidos, eles se dão conta disso. Seus políticos consideram com razão esse mesmo sentimento e prática de igualdade absoluta como importante. No entanto, eles irão à ruína sem um movimento revolucionário”.

Em suas cartas, Marx atacou com desprezo os abusos violentos dos europeus e suas constantes provocações, e, não menos importante, sua “arrogância descarada e presunçosa em relação às ‘raças inferiores’, e sua obsessão sombria, como Moloch, com relação a qualquer ato de rebelião. Ele também enfatizou que, na história comparativa da ocupação colonial, “os britânicos e holandeses superam os franceses”. Em Argel em si, ele relatou a Engels que o juiz progressista Fermé, que ele encontrava regularmente, tinha visto, ao longo de sua carreira, “uma forma de tortura (…) para extrair ‘confissões’ dos árabes, naturalmente realizada (como os ingleses na Índia) pela polícia”. Ele tinha relatado a Marx que “quando, por exemplo, um assassinato é cometido por uma gangue árabe, geralmente com roubo em vista, e os criminosos reais são devidamente apreendidos, julgados e executados ao longo do tempo, isso não é considerado como expiação suficiente pela família colonista prejudicada. Eles exigem, além disso, a ‘detenção’ de pelo menos meia dúzia de árabes inocentes. (…) Quando um colono europeu mora entre aqueles que são considerados as ‘raças inferiores’, seja como colonizador ou apenas a negócios, geralmente se considera ainda mais inviolável do que o rei”.

Contra a presença colonial britânica no Egito

Da mesma forma, alguns meses depois, Marx não poupou críticas à presença britânica no Egito. A guerra de 1882, liderada por tropas do Reino Unido, encerrou a chamada revolta de Urabi, que havia começado em 1879, e permitiu aos britânicos estabelecer um protetorado no Egito. Marx ficou furioso com as pessoas progressistas que se mostraram incapazes de manter uma posição de classe autônoma, e alertou que era absolutamente necessário para os trabalhadores se oporem às instituições e retórica do estado.

Quando Joseph Cowen, um deputado e presidente do Congresso Cooperativo — considerado por Marx “o melhor dos parlamentares ingleses” — justificou a invasão britânica do Egito, Marx expressou sua total desaprovação.

Acima de tudo, ele censurou o governo britânico: “Muito bem! Na verdade, não poderia haver exemplo mais flagrante de hipocrisia cristã do que a ‘conquista’ do Egito — conquista em meio à paz!” Mas Cowen, em um discurso em 8 de janeiro de 1883 em Newcastle, expressou sua admiração pelo “feito heróico” dos britânicos e pelo “deslumbramento de nosso desfile militar”; ele também “não podia deixar de sorrir com a perspectiva encantadora de todas aquelas posições ofensivas fortificadas entre o Atlântico e o Oceano Índico e, de quebra, um ‘Império Britânico na África’ do Delta ao Cabo”. Era o “estilo inglês”, caracterizado pela “responsabilidade” com o “interesse doméstico”. Na política externa, Marx concluiu, Cowen era um exemplo típico “daqueles pobres burgueses britânicos, que gemem à medida que assumem cada vez mais ‘responsabilidades’ no serviço de sua missão histórica, enquanto protestam em vão contra ela”.

Marx empreendeu investigações aprofundadas das sociedades fora da Europa e expressou claramente sua oposição aos estragos do colonialismo. É um erro sugerir o contrário, apesar do ceticismo instrumental tão na moda nos dias de hoje em certos círculos acadêmicos liberais.

Durante sua vida, Marx observou de perto os principais eventos da política internacional e, como podemos ver em seus escritos e cartas, na década de 1880 ele expressou firme oposição à opressão colonial britânica na Índia e no Egito, bem como ao colonialismo francês na Argélia. Ele estava longe de ser eurocêntrico e obcecado apenas pelo conflito de classes. Marx considerava o estudo de novos conflitos políticos e áreas geográficas periféricas como fundamental para sua crítica contínua do sistema capitalista. O mais importante é que ele sempre tomou o partido dos oprimidos contra os opressores.

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