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Alexandre Francisco Braga, Revista de Ciências do Estado

1 Introduco

Marcello Musto é um intelectual italiano que vem se destacando pelas recentes pesquisas sobre os últimos períodos de vida do pensador alemao Karl Marx (1818-1883). Musto, que é também professor de Sociologia na York University (Toronto, Canadá), já publicou Another Marx: Early Manuscripts to the International e Karl Marx: biografia intelectual e política, entre outros livros. Ou seja, ao longo da década de 2000 vem realizando uma proficua incursao no pensamento marxiano, ora para realizar uma descoberta de um Karl Marx quase desconhecido do grande público, ora para redescobrir pontos e análises conceituais que só agora tiveram a devida correqào no itineràrio que Marx tinha em mente ao dar inicio à sua crítica da sociedade civil burguesa.
Nessa seara, Marcello Musto realizou uma tarefa impecável, pois suas publicaqoes vao ajudar em muito na compreensao daquilo que Marx tinha como propósito analítico e como projeto político, a emancipaqào da classe trabalhadora. O livro de Marcello Musto – O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) -, em suas 158 páginas, contribui e contribuirá, sobremaneira, nessa direqáo, principalmente porque, após a dissoluqáo da Uniao Soviética, no ano de 1991, uma onda negacionista tomou conta dos debates políticos mundo afora, resultando num esquecimento quase que natural e numa crise do marxismo, que por pouco nao jogou por terra essa proposta de emancipaqào elaborada por Karl Marx, Friedrich Engels, Rosa Luxemburgo e toda uma geraqào de lutadores e lutadoras do povo em prol da classe do proletariado, nos últimos 200 anos.
Desse ponto de vista, ficou um vácuo de ideias progressistas, e para dificultar, surgiram pregaqoes que anunciavam o fim do Socialismo como decante e a vitória final da formaqào capitalista, como se a História fosse uma “planilha” que nao pudesse ser alterada pelo curso do desenvolvimento social, na sociedade, nas universidades e na militancia de esquerda. Portanto, a escrita de Marcello Musto e diversas outras publicaqoes que comeqam a circular nos meios académicos, desde 2008 retomam a discussao do projeto socialista e repoem o Marxismo no centro dos debates, seja no próprio meio universitário, seja nas redes sociais, ainda que o novo cenário apresenta um contexto de evoluqáo conservadora e reacionária.
Em seu livro, Musto traz quatro pontos importantíssimos para entendermos os últimos anos de vida de Karl Marx, entre os anos de 1881 e 1883: 1) O pardo da existencia e os novos horizontes de pesquisa; 2) A controvérsia sobre o desenvolvimento do capitalismo na Rùssia; 3) Os tormentos do “Velho Nick”; e 4) A última viagem do Mouro. Ao longo dos capítulos, o leitor se deparará com um Karl Marx nao só inédito, mas diferente daquilo que sempre se soube através dos escritos densos sobre economia política, temas internacionais e das agitaqoes
revolucionárias que abalaram o mundo de sua época. Aliás, nessa fase de maturidade, Marx se aventurou em temas como a matemática, a questao ecológica, temas americanos, botánica e os assuntos mais densos da luta que estava acontecendo em países como India, Egito e Argélia. Desta forma, nesse ciclo antes de seu passamento Marx era o “oposto de um autor eurocêntrico, economicista e absorvido exclusivamente pela luta de classes”, como prefacia Musto [1].

2 O gabinete da Rua Maitland Park Road

Mustojá começa a obra trazendo à tona fatos da intimidade pessoal de Karl Marx de pouco acesso de seus próprios leitores, inclusive dos círculos mais próximos de Marx, como a imersão do filósofo alemão em temas fora do eixo econômico-filosófico, como a preocupação de Marx com os assim chamados “temas americanos”, a redação dos cadernos sobre matemática, os estudos de fisiologia, de geologia, de agronomia, de química e de física, ou seja, uma série de temas multidisciplinares, boa parte deles localizados no escritório de uma casa alugada na Rua Maitland Park Road, situada na região periférica de Londres, onde era sua residência e da família Marx. Lá, moravam o Mouro [2], sua esposa Jenny (1814-1881), as filhas Eleanor (1855-1898) e Helene Demuth (1820-1890) e sua governanta de mais de 40 anos de convívio com o casal.A casa da Rua Maitland Park Road, número 41, era o refúgio para Karl Marx guardar seus mais de 2 mil volumes de livros, sobretudo acerca de Ciência Política, História alemã e Literatura Francesa, Italiana, Alemã e, desde 1869, sobre a Literatura Russa que Marx começou a estudar para melhor compreender o processo revolucionário russo. Nessa biblioteca, havia uma infinidade de autores como Shakespeare, Dickens, Molière, Racine, Montaigne, Bacon, Goethe, Voltaire, entre outras produções literárias. Além de serum reduto principal das visitas dos colaboradores, ativistas e líderes políticos dos mais diferentes locais do planeta, serviu, ainda, como centro de troca de correspondências internacionais entre os militantes socialistas, tanto que a caixa-postal da residência vivia abarrotada de cartas, de acordo com Musto [3]. Prova disso é que o próprio Friedrich Engels (1820-1895) se mudou para a vizinhança próxima à casa de Marx, na Rua Regent’ Park Road, número 122, há poucos metros de distância.Além do mais, o local era estratégico para a formação política da militância socialista, porque lá estavam guardadas publicações, documentos e resoluções mais importantes da AIT (Associação Internacional dos Trabalhadores), uma cópia de A Sagrada Família,escrita em coautoria com Engels, em 1845, da Miséria da Filosofia, também pelos dois amigos, e obras cruciais para o que se viria a ser conhecido depois como marxismo, como os livros Manifesto do Partido Comunista(1848), O 18 Brumário de Luís Bonaparte(1852), e o próprio O Capital, de 1867, sua obra-prima. No sótão da casa havia, ainda, sinopses e manuscritos inacabados, destinados à “crítica roedora dos ratos [4]”, cujo material literário situava-se perto de um divã de couro, onde Marx costumava descansar após horas de estudos em cima de materiais muitas vezes em língua original.Conforme Marcello Musto, no ano de 1881, Karl deu início aos estudos sobre Antropologia, indo estudar o livro A sociedade Antiga(1877), do antropólogo norte-americano Lewis Morgan (1818-1881), e resultando numa série de enxertos conhecidos como Cadernos Etnológicos. Essas anotações dispersas tratavam da colônia de Java na Indonésia, escrita por James Money (1818-1890), sobre a aldeia ariana na Índia, de autoria de Jonh Phear (1825-1905), e sobre história antiga das instituições, do historiador Enry Maine (1822-1888). Os Cadernos Etnológicos [5], de pouco mais de 100 folhas, não foram publicados por Marx, mas, posteriormente editados e lançados por Lawrence Krader (1919-1998) com o título de Cadernos Etnológicos de Karl Marx. Nos Cadernos Etnológicos, é possível encontrar outras anotações sobre a pré-história, o desenvolvimento dos vínculos familiares, as condições das mulheres, a origem das relações de propriedade, a formação da natureza e questões como as conotações racistas de alguns antropólogos da época e os efeitos do Colonialismo. Sobre isso Marx pensava:

a família moderna em germe não somente a servitus(a escravidão), mas também a servidão da gleba; desde o princípio, ela pôs suas relações a serviço da agricultura. Possui em miniatura todos os antagonismos que, mais tarde, se desenvolverão em massa na sociedade e em seu Estado […] na origem, era constituída diretamente de escravos [6].

Com isso, a palavra “família”, desde seu germe, tem haver com famulus(escravo, criado), e sem nenhuma relação com a criação de filhos pelos casais casados, mas, sim, com o conjunto de escravizados que são forçados a trabalhar para o patrão, regidos pelo poder do pater famílias. Isto é, foi a escravidão que esteve na orientação do princípio organizador da família, com seus antagonismos. Nesse aspecto, conforme Marcelo Musto, Marx dedicou especial atenção às condições das mulheres. Segundo a revisitação historiográfica que está sendo feita desde 2008 da posição marxiana sobre o tema, Marx observou que as sociedades antigas tinham melhor tratamento com as mulheres. A partir de dados elencados por Lewis Morgan, a mudança da descendência da linhagem materna para a paterna foi prejudicial para osexo feminino, entre os gregos, o que diminuiu o direito das esposas e mulheres, cujo modelo foi avaliado por Morgan como negativo. Na cultura grega da época a mulher passou a ser inferior, a “deusa da sabedoria saiu da cabeça de Zeus [7]”, como lembrou Marx.
Noutra ponta do debate histórico, Musto reforça em seu O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) a rejeição da ideia de que as mudanças sociais ocorreriam unicamente devido às transformações econômicas, uma vez que Karl Marx defendia, na verdade, a especificidade de cada condição histórica, as múltiplas possibilidades e a centralidade da ação humana para realizar as transformações, com clara condenação do avanço espontâneo do processo histórico. Principalmente, como acreditavam seus seguidores menos atentos, que a última fase burguesa se seguiria para o fim do capitalismo, automaticamente a ser superado pelo socialismo, o que resultou numa visão reformista que bloqueou o movimento operário e que negligenciava as próprias reflexões de Marx contrárias a essa interpretação. De acordo com Musto [8], Marx “jamais desejou um retorno ao passado, mas –como acrescentou na transcrição do livro de Morgan –vislumbrou um tipo de sociedade superior”. Isto porque, tanto como condenação do determinismo econômico como ponto de vista de que as contradições da civilização não eram estáticas e nem passivas, mas eram projetos realizados pelo esforço humano diante da necessidade de preservar a vida, e não pela evolução mecânica da sociedade. Ou falando de outra forma, pela ação consciente da classe trabalhadora [9].

3 A questão da comuna agrária russa

Outro ponto de especial atenção aos leitores e leitoras do livro de Marcello Mustoé a posição marxiana sobre a Rússia, que Marx considerava como o grande obstáculo à emancipação da classe trabalhadora, melhor dizendo: através de numerosas cartas e em artigos de grande repercussão internacional publicados no jornal New-York Tribune e na História Diplomática Secreta do Século XVIII (1856-1857),Marx considerava que o atraso das condições sociais, a lentidão do desenvolvimento econômico do país, o regime czarista de caráter despótico e a política externa conservadora levaram a uma postura contrarrevolucionária na Rússia. Porém, em sua fase de maturidade, e já tendo consolidada sua carreira como líder revolucionário e como agitador das massas proletárias, Karl Marx reviu boa parte dessas opiniões, na medida em que algumas transformações ocorridas nas condições sociais russas proporcionaram uma reviravolta e na mudança de rota, que agora poderiam viabilizar uma revolução mais intensa que a ocorrida na Inglaterra, por exemplo, uma vez que apesar de ser o berço do capitalismo e ter um maior contingente de operários fabris, o proletariado inglês havia perdido força por causa das algumas melhorias de suas situações de vida, como a redução da jornada de trabalho e o consequente reformismo dos sindicatos [10].
Karl Marx acompanhava a situação russa desde 1850, seja saudando as revoltas camponesas que resultaram a abolição da servidão, em 1861, seja através de estudos sobre estatísticas dos problemas locais, ou por meio do início do aprendizado da língua russa, oque o ajudou a melhor compreender esse cenário interno. A partir de 1881, as formas arcaicas de organização comunitária da Rússia levaram Marx a aprofundar os estudos e a troca de correspondências com militantes russos, como aquelas enviadas a militante do “RepartiçãoNegra”, Vera Zasulitch (1849-1919), que numa correspondência destinada a Marx, em 16 de fevereiro de 1881, resumiu quais eram os pontos centrais das discussões:

A comuna rural, liberada das exigências desmesuradas do fisco, dos pagamentos à nobreza e da administração arbitrária, é capaz de desenvolver-se pela via socialista, quer dizer, de organizar pouco a pouco sua produção e sua distribuição de produtos em bases coletivas. Nesse caso, os socialistas revolucionários devem envidar todos os esforços em prol da liberação da comuna e de seu desenvolvimento [11].

Nessa carta enviada a Karl Marx, Vera Zasulitchfazia uma consulta ao pensador alemão de como circulavam nos meios revolucionários e entre os ativistas a opinião de que a comuna rural era um atraso condenado à morte, e boa parte deles atribuiu ao próprio Marx a origem dessa opinião. Contrariamente, Zasulitch pensava que os revolucionários deviam dar todo apoio a essa comuna agrária de especificidade russa. O apelo da militante russa era para que Marx pudesse esclarecer tal dúvida, já que ele estava familiarizado com as relações comunitárias da época pré-capitalista. Em sua resposta, Marx relembrara que sua reflexão sobre o percurso seguido pela ordem econômica capitalista para sair do ventre da ordem econômica feudal era apenas uma referência à situação aplicada somente ao Velho Continente, diga-se Europa Ocidental, e que não servia para descrever outras situações em outras regiões do planeta, tendo em vista que seria necessário estudar separadamente cada um dos fenômenos e só depois confrontá-los. Resumindo: não havia a possibilidade de usar uma teoria histórico-filosófica geral para ser aplicada em casos diversos e diferentes [12].

4 1881, Karl Marx se torna “cidadão do mundo”

Na visão de Musto, ainda no ano de 1881, Karl Marx, apesar da profícua produção literária e sociológica, anda não era um teórico de referência internacional indubitável. Isso só veio a acontecer no século seguinte, no início do XX após as repercussões das resoluções adotadaspela Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) e pelo impacto provocado pela eclosão da Comuna de Paris, em 1871, que despertaram o interesse pela obra marxiana.
Mas a notoriedade como mentor político [13] de partidos políticos e lideranças sindicais veio em seguida à publicação de O Capital, reimpresso na Alemanha em 1873, o que em seu conjunto foram fatores que contribuíram para a expansão do pensamento de Karl Marx e da consolidação da figura de filósofo alemão como o grande expoente do movimento operário internacional, como aconteceu na construção de programas partidários e na redação de teses de cunho político, ou como Musto registrou [14]: “[…] em seus últimos anos Marx foi testemunha de um interesse cada vez maior, em muitos países europeus, por suas teorias –especialmente as contidas em seu magnum opus”. A título de exemplificação temos a influência de Karl Marx na redação do programa do Partido Social-Democrata dos Trabalhadores da Alemanha (SDAP), em 1875, na Federação do Partido dos Trabalhadores Socialistas da França (FPTSF), entre outras produções de ordem prática e nas quais sempre eram destacadas que a revolução não era uma derrubada simples do sistema, mas um processo longo e complexo [15].Se na esfera internacional Marx viu seus textos serem valorizados enquanto fonte de análises para deliberações filosóficas e políticas, no plano pessoal as coisas não andavam tão bem assim. Isto porque nas primeiras semanas de junho de 1881, sua esposa, Jenny von Westphalen, teve as condições de saúde pioradas por causa de um tratamento de câncer no fígado, obrigando Marx a se tornar seu mais íntimo enfermeiro e o casal indo morar em Eastbourne, próxima ao canal da Mancha [16]. E os infortúnios de Marx não cessariam tão cedo. Em 16 de agosto, sua filha Eleanor cai em depressão devido a um suposto noivado malsucedido; em outubro foi o próprio Marx que teve a saúde abalada, agora por uma forte bronquite, com risco de resultar em pneumonia, o que levou Marx a permanecer acamado por 12 dias; e no dia 2 de dezembro de 1881, aos 68 anos, falece sua esposa Jenny von Westphalen. Essa morte, nas palavras do Old Nick(gíria inglesa que significava “Velho Diabo”, e era assim que Karl Marx assinava na intimidade as cartas que enviava às filhas ou ao amigo Friedrich Engels), privaram-lhe de seu “maior tesouro [17].” A cronologia de dissabores levou Marx para um estado de convalescença e de um drama de acontecimentos familiares entretecedor, entre 1881 e 1882. Contudo, nesse curto período, Marx consegue tempo para se dedicar aos estudos sobre o desenvolvimento do Estado Moderno (século XV), consultando especialmente obras que resultaram nas Notas Sobre a história indiana, de 1879, inspiradas no livro História analítica da Índia,de Robert Sewell (1845-1925), História dos povos da Itália, do historiador Carlo Botta (1766-1837), e História do povo alemão,escrito por Friedrich Schlosser (1776-1861), totalizando 143 páginas sobre história. Todavia, a instabilidade de seu quadro de saúde interrompeu suas anotações sobre demais temas históricos da época, sob o risco de uma nova recaída na debilidade de saúde. Retrato disso é que em 1882 Marx foi obrigado a usar um respirador artificial, pelo qual os jornais alemães já tinham anunciado sua morte [18].

5 Os dias africanos de Karl Marx

Os 72 dias em que Karl Marx permaneceu em estadia no continente africano representam as últimas viagens do Mouro na procura para a cura de suas chagas. Obviamente, para o porte de um homem que estava em pleno exercício das funções cognitivas e teóricas, a conciliação entre o rigoroso tratamento médico e as expedições de análises políticas não deixou de ser realizadas, a partir da chegada do líder alemão à África, no dia 20 de fevereiro de 1882, após longas 34 horas de viagens até Argel, capital da Argélia. Marx foi ao continente africano à procura de soluções mais concretas para suas doenças, especialmente por tratamento mais eficaz contra a bronquite, a tosse ininterrupta e uma série de catarros que não lhe davam sossego, sendo prontamente acompanhado pelo juiz Albet Fermé, destacado militante socialista e único que conhecia a já famosa trajetória do paciente. Infelizmente, por infortúnio do destino, a época escolhida para as sessões de terapia foi de intensos períodos chuvosos e de frio, com o pior inverno que a cidade já tinha vivido. O médico de Karl Marx, Charles Stéphann (1840-1906), receitou, então, cuidados à base de xarope e de psicotrópicos, visando diminuir as dores de grande intensidade, e os mais intensos deles, reduzir drasticamente os esforços físicos, que significava para Marx abandonar qualquer trabalho de ordem intelectual, inclusive se preocupar com os problemas de ordem mundial. Na enfermaria, foi submetido à aplicação de medicamentos para estancar as dores, a proliferação de bolhas na região do tórax epara conter a insônia, além da tentativa de paralisar as feridas nas costas, na qual Marx queixou-se reclamando: “para uma mente sã num corpo são, ainda havia muito para fazer [19]”, numa alusão aos poucos resultados do longo e doloroso tratamento [20]. A última viagem do Mouro e única na região africana o impediu de fazer as correções da terceira edição alemã d’O Capital, de analisar a conjuntura política da época e de tecer comentários críticos sobre a propriedade comunal árabe, bem como de falar sobre a realidade argelina, pois fora realizada praticamente para se dedicar ao tratamento médico e para a cura de suas dores.Marx não deixou de observar da sacada do hotel em que estava sendo realizada a medicação que próximo ao local havia grupos de trabalhadores construindo casas, apesar de sadios, depois de três dias de trabalho, já apresentavam quadro de febre, e que parte do salário era para pagar despesas de medicamentos fornecidos pelos empreiteiros.Essas observações sobre a realidade árabe-argelina Marx as resumiram em 16 cartas redigidas às margens do Mar Mediterrâneo, com destaque para a visão anticolonial marxiana e sobre as relações sociais na cultura muçulmana. Um aspecto, nesse conjunto de cartas, que se destaca é a postura natural, elegante e digna do povo argelino, de vestimenta quase opulenta em contraste com a realidade europeia, principalmente a francesa, a qual registrou:

[…] a riqueza e pobreza não tornam os filhos de Maomé uns diferentes dos outros. A absoluta igualdade em suas relações sociais não é influenciada por elas. Pelo contrário, são notadas apenas pelos desonestos. Não que se refere ao ódio pelos cristãos e à esperança numa vitória definitiva sobre os infiéis, seus políticos consideram, com razão, que o sentimento e a prática de absoluta igualdade (não de riqueza e renda, mas da pessoa) são garantias para manter vivo o ódio e não abandonar a esperança. Ambos, no entanto, sem um movimento revolucionário, caminham para a ruína [21].

Por meio desse trecho da carta enviada à sua filha Laura Lafargue, em 13 de abril de 1882, Marx registra seus encantos e como ficou maravilhado com as relações sociais argelinas e da noção de igualdade crônica, porém ressaltou a necessidade de essa noção de igualdade ser permeada por um movimento de inspiração revolucionária que desse cabo a toda forma de opressão, destacadamente a colonial. Marx não deixou de perceber que na cultura muçulmana não havia a subordinação, a autoridade pregada pela cultura ocidental. Principalmente aquela oriunda das torturas contra os árabes e da brutalidade policial empregada pela autoridade colonial francesa. Feliz com o que viu, ficou mais lisonjeado, ainda maiscom os resultados dos tratamentos que finalmente deram certo, e Karl Marx pôde finalmente retornar à França, agora surpreendendo a todos, sem as longas madeixas e sem as barbas longas que o imortalizara.Assim, O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) é um livro que merece e precisa ser lido, pois possibilita redescobrir Karl Marx como homem, cidadão preocupado com o mundo e como uma pessoa comum que elabora e pensa os problemas sociais. Entretanto, merece uma discussão o deslize cometido pela edição brasileira da Boitempo, pois no original a obra foi publicada em italiano com o título “L’ ultimo Marx (1881-1883). Saggio di biografia intellectuale”. “Último Marx” atenderia melhor as exigências da luta contra o etarismo, e a categoria “velho” -, além de pejorativa para vários usos, carrega toda uma conotação de coisa que está em idade avançada, antiquada e em desuso, portanto, nada mais distante daquilo que o pensamento de Karl Marx se tornou, ao longo dos anos.

 

 

[1] MUSTO, Marcello. O velho Marx: uma biografía de seus últimos anos (1881-1883). Trad. Rubens Enderle. Sao Paulo: Boitempo, 2018, p. 11.

[2] Alusão à pele escura de Karl Marx que virou um apelido íntimo.

[3] MUSTO, O velho Marx, cit., p. 21.

[4] Marx assim se expressou porque estavam esquecidos em uma gaveta ou porque estavam proibidos de circular.

[5] MUSTO, O velho Marx, cit., p. 31.

[6] Morgan citado por Musto. Ibidem, p. 34.

[7] A deusa grega Atena era uma divindade no panteão grego, considerada a deusa da sabedoria, das habilidades e dos ofícios, da guerra. Ela ficou marcada por ter nascido ao sair da cabeça de seu pai, Zeus.

[8] MUSTO, O velho Marx, cit., p. 37.

[9] Idem.

[10] Ibidem, p. 59.

[11] Zasulitch citada por Musto.Ibidem, p. 61.

[12] Ibidem,p. 74-78.

[13] Apesar dessa nova situação de consulta às reflexões produzidas por Marx e Engels, com relação ao grande desconhecimento das décadas anteriores, é preciso salientar as limitações e a resistência enfrentada por Marx em diversas regiões da Europa.

[14] MUSTO, O velho Marx, cit., p.86.

[15] Musto refere-se ao O Capital.

[16] Marx citado por Musto.MUSTO, O velho Marx, cit., p. 101.

[17] Idem.

[18] Ibidem, p. 105-107.

[19] Conforme disse em carta enviada a Engels em 28 de março de 1882.

[20] MUSTO, O velho Marx, cit.,p. 111-113.

[21] Marx citado porMusto. MUSTO, O velho Marx, cit., p.117.

 

Referências bibliográficas

KRADER, Lawrence. Los apuntesetnológicos de Karl Marx.Trad. José María Ripalda. Madrid: Editorial Pablo Inglesias,1988. Disponível em: https://pensaryhacer.files.wordpress.com/2010/06/apuntes-etnologicos-de-carlos-marx.pdf.Acesso em: 24 fev. 2024.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro III: o processo global da produção capitalista. Trad.Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017.

MUSTO, Marcello. O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883). Trad.Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2018.

 

 

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Marcello Musto fala sobre O Renascimento de Marx e o futuro dos estudos sobre o tema

Marcello Musto é professor de sociologia da New York University, em Toronto, no Canadá. É autor e organizador de dezenas de livros e artigos sobre o pensador Karl Marx e o marxismo no Brasil. É autor de O velho Marx um biografia de seus últimos anos, da Boitempo, em 2018. Repensar Marx e marxismos, um guia para novas leituras, também da Boitempo, de 2022, e Karl Marx biografia intelectual e política, 1857-1883, pela Expressão Popular, em 2023. Ou seja, está super produtivo e agora a sua obra foi traduzida mundialmente em 25 idiomas. Para mais informações sobre o Marcello, os trabalhos, os estudos que ele faz, vocês podem visitar o site www.marcellomusto.org

O Renascimento de Marx é uma coletânea organizada por Marcello que conta com a colaboração valorosa de 22 autores e autoras. Foi publicada originalmente em inglês, traduzida no Brasil por Fábio Fernandes, da Autonomia Literária, parceira editorial da Fundação Perseu Abramo, cujo representante, Hugo, está conosco hoje e a quem desejamos boas vindas. O livro reúne grandes intelectuais de vários países, dois deles brasileiros reconhecidos, Michel Levy e Ricardo Antunes, que se debruçaram sobre a obra de Marx. A publicação está disponível para venda no site da Autonomia Literária.

O encontro com Marcello contou com as participações dos diretores da FPA, Carlos Árabe, Vivian Farias e Virgílio Guimarães, Rogério Chaves, coordenador editoral da FPA, Hugo Albuquerque, da editora parceira, além de convidados de fora de São Paulo, como o professor Juarez Guimarães, Antonio Rubim Albino e a pesquisadora Adriana Marinho. Acompanhe a seguir:

Marcello, é realmente uma obra de peso e de volume, com muitos artigos e vários aspectos do tema? Você pode nos fazer uma breve apresentação sobre o livro a partir do seu olhar de organizador da obra?

Marcello Musto: São 500 páginas com uma participação plural. Mas primeiro gostaria de agradecer pelo convite. É um prazer estar aqui com vocês. Esse livro é uma publicação que precisava ser organizada, porque a bibliografia de Marx nos últimos anos ganhou novas características. Começaria dizendo nos últimos quinze anos, porque, depois da crise econômica de 2008, Marx voltou ao interesse geral. Existe a clássica divisão entre o Marx economista, o filósofo, o sociólogo. Marx criticou o capitalismo, a economia política, o que outra vez chamou a atenção, depois de uma crise tão grande, tão forte, como foi a crise financeira mundial. Novos estudos sobre Marx permitiram resgatar o seu pensamento político, que é o que mais me interessa, e me libera para evitar esta divisão de disciplinas acadêmicas. Também porque os estudos publicados sobre ele nos últimos anos não só resgataram Marx, as ideias e interpretações desse autor, mas sobretudo porque Marx foi interrogado novamente em relação a novas questões.

Ou seja, eu falaria que sua obra mudou em alguns aspectos, chamando a atenção para questões que não eram vinculadas a Marx, erroneamente. Então, o primeiro ponto é: como é possível que Marx tenha mudado? Como é possível que um autor como Marx, tão estudado, tão influente politicamente e que tenha chamado a atenção desta forma diferente da que existia antes? Isso está relacionado a vários fatores. O primeiro deles é o fator político, e significa o fim do monopólio da interpretação de Marx, do marxismo leninismo, que fez tanto mal a Karl Marx por décadas: a ideia de que ele era a estátua que defendia o dogmatismo soviético, o Estado da Rússia, o assim chamado socialismo real. Mas há também a questão textual, que não é chata, só de acadêmicos e de especialistas. Marx era um autor muito ambicioso, crítico, autocrítico, então, muito diferente de muitos no marxismo, que era dogmático, e isso fez que ele tenha deixado muitos projetos inacabados. Ademais, Marx tinha a ideia de entender e ajudar o movimento dos trabalhadores a entender como funciona o capitalismo, o que é o modo de produção capitalista, e não só na Inglaterra ou na Europa, como falam hoje muitas pessoas que não o conhecem. Estava concentrado em entender isto como processo mundial, tornou-se verdadeira e completamente a ser pesquisador mundial, o que implicava a necessidade de ler e estudar sobre isso. Essa é a característica da obra de Marx que fez com que muitos documentos e textos que ele estava preparando não tenham sido publicados.

Nos últimos dez, quinze anos, essa nova edição nos está ajudando a olhar Marx de uma forma diferente. Porque muitos textos dele, que se consideram livros completos, não são, a maioria, na verdade. O manuscritos econômicos e filosóficos de 1844, A Ideologia alemã e os esboços preparatórios do Capital e o Teorias sobre a Mais-Valia, ou mesmo o segundo e terceiro livros de O Capital, e muitos outros textos filosóficos. Todos estes materiais agora são publicados de forma mais aberta, menos dogmática. A ideologia alemã não é como a bandeira do materialismo histórico dialético do Instituto Marx, Engels, Lenin, Stalin, mas um texto que possibilita olhar contradições também. Como agora todo O Capital está publicado em forma original, como era o manuscrito, entender quanto a pesquisa de Marx, em alguns pontos, ainda não era definitiva. Tudo isso é interessante para os militantes, partidos políticos e a esquerda porque estes documentos nos ajudam a olhar Marx de uma forma mais rigorosa como pesquisador e também conhecer o caminho que trilhou, mas que não foi capaz de terminar, por muitas razões. E depois há outras questões, quando algumas contradições tomam uma centralidade maior, penso que hoje as questões ecológica, de gênero, os processos migratórios na nossa sociedade são ainda mais importantes do que antes. Um pesquisador, um militante político não dogmático, se pergunta: mas é verdade que Marx não escreveu sobre isso, que Marx estava só interessado no trabalhador branco europeu, na contradição na fábrica? E a resposta é claramente não, não foi assim.

Com esses novos materiais, por exemplo, eu falaria que entre os livros mais importantes dos últimos anos sobre Marx seguramente estão muitos que falam de ecologia marxista. A questão é que Marx teve a possibilidade de olhar o mundo inteiro nos últimos quinze anos da vida muito mais que antes. E isso faz que se possa brincar com a biografia de Marx, um drama de seus amigos, como Berenguer, que sempre estiveram esperando que terminasse O Capital, mas ele tentou estudar novas coisas. Muitos marxistas não entenderam a centralidade da atividade política de Marx como organizador. Na verdade, o meu primeiro livro traduzido para o Brasil foi Trabalhadores com Livros, que é a história da Primeira Internacional. E é sobretudo sobre o quanto Marx aprendeu politicamente não só como pesquisador isolado na biblioteca do British Museum, mas como dirigente político, militante de processos políticos, como a Comuna de Paris, como a experiência dos populistas russos. Nos últimos anos da sua vida, ele pode finalmente pesquisar e estudar mais globalmente o mundo e olhar como o capitalismo estava se desenvolvendo em diferentes formas, nos Estados Unidos de forma muito diferente, muito mais rápida do que a do desenvolvimento clássico na Europa. Marx já estava odiando muito a Rússia e perguntando politicamente se era preciso que o capitalismo se desenvolvesse ou seria possível utilizar formas arcaicas de participação coletiva para futuras experiências socialistas e marxistas. Ele também estava completamente centrado em estudar países como Índia, Indonésia, Argélia, no Sul do mundo, pois entendia que a crítica colonial é fundamental.

Após a primeira exposição do autor, abrimos para que os participantes pudessem também fazer perguntas e comentários comentados por Marcello na sequência, que publicamos a seguir:

Hugo Albuquerque: Como é que você vê a questão do debate acerca da noção de dialética? Qual a importância de entender isso para entender o sistema de Marx de uma maneira mais geral?

Carlos Árabe: A primeira coisa que quero destacar é que ainda estamos na onda de apresentação de ampliação do conhecimento sobre o importante trabalho em que diversos autores se encontraram, através da coordenação e da direção do Marcello Musto, para falar da presença de Marx. Hoje isso é um acontecimento ao qual damos muita importância e insisto que ainda estamos nas primeiras ondas dessa apresentação, desse trabalho importante. Continuamos apostando no tsunami marxista.

Juarez Guimarães: Algumas décadas atrás, um pequeno livro do Pierre Anderson falava da divisão entre o marxismo russo e o marxismo ocidental, uma divisão que pode ser hoje problematizada, como ainda é um modo analítico precário, porque o marxismo ocidental, ele próprio, tem muitas divisões históricas desde o início do século 20. Mas ele apontava para um fenômeno importante, na minha opinião, que é uma separação entre os estudos marxistas que ocorriam no marxismo ocidental e os movimentos sociais e os partidos de esquerda. Isto é, estava se verificando um fenômeno de uma perda de organicidade entre a elaboração do marxismo e que não havia ocorrido nas primeiras gerações, já que o marxismo foi elaborado até a Segunda Internacional, muito inserido nas tradições de militância coletiva, seja dos partidos, seja de movimentos sociais. Talvez o Brasil hoje seja um dos melhores lugares do mundo para se testar a possibilidade de que um renascimento dos estudos de Marx seja enraizado e se relacione com as esquerdas formadas no país. Apesar de todas as limitações vividas de cultura política, institucionalidade e de fundamentos econômicos internacionais, a esquerda governa o país. É um dos raros países do mundo que conseguiram resistir à onda da extrema direita e de repor no centro da vida política do país um sentimento pelo menos de esquerda, e isso pode ser pensado do ponto de vista do marxismo. Então, uma oportunidade para alcançar uma audiência pública, de se tornar cultura política pública através da relação com esses partidos de esquerda e movimentos sociais.

Mas isso pode ser visto também do ponto de vista desses partidos e dos próprios movimentos sociais. Estou convencido que, sem uma cultura socialista democrática e reorganizada, os programas desses partidos e as plataformas reivindicatórias dos movimentos sociais apresentam limites fundamentais na luta contra o neoliberalismo. Isto é, eu aposto na possibilidade de uma fusão entre cultura marxista e partidos e movimentos sociais para se criar um contexto de superação possível do neoliberalismo. Penso, então, que esse trabalho em torno desse livro que nos reúne, que nos chama a reunir, traz um enorme potencial de reorganização da cultura do marxismo no Brasil. E nós, em Minas Gerais, estamos nos organizando para oferecer cursos a lideranças de movimentos sociais. Estamos organizando um circuito nas universidades mineiras a partir do marxismo de professores que estudam, se relacionam com o marxismo.

Adriana Marinho: Sou mestranda no programa de História Econômica da USP, orientanda do professor Lincoln Secco e quero saudar essa atividade que é super importante. Na história recente, algumas coisas levaram à noção de que a análise marxista sobre o capitalismo seria ultrapassada. Quero saber se o Marcello ressaltaria como contribuição para fazer frente a essa ideia alguns textos do Marx que acha mais importante. Porque acho que é uma ideia equivocada, ideológica, no sentido marxista da palavra. Quero que ele fale um pouco mais sobre como a crise de 2008 trouxe à tona novamente os escritos de Marx para os debates, principalmente na esquerda.

Vivian Farias: Quero saudar Marcello aqui, em nome da nossa instituição, do nosso presidente Paulo Okamotto, a importância do seu trabalho. Dizer que o nosso diretor, Carlos Henrique Árabe, já foi muito feliz no que tange ao nosso compromisso e à nossa perspectiva de não encerrar esse processo aqui, pois esse tipo de trabalho traz uma perspectiva de futuro. Toda a base ontológica que ele alicerça, o que temos enquanto esquerda, enquanto perspectiva de mudança de práxis, deve ser prioridade. E essa é a linha da nossa diretoria, do nosso presidente. Em tempos de governo, ainda mais do que antes, a gente precisa não errar os mesmos erros, e isso se sobrepõe à necessidade de voltar a ter uma densidade formativa em níveis diferentes.

Virgílio Guimarães: Muito obrigado, Marcello. A sua exposição, para mim equivale a um conhecimento e é também quase uma música para aqueles que sempre me dizem ser marxistas leninistas. Mas sou, como se dizia no século passado, o jovem Marx, que era visto ainda como alguém que sonhava e que fazia uma espécie de marxismo de alguma maneira utópico, e que o Marx, que não era ainda, no meu entendimento, recoberto da fuligem do socialismo real, do marxismo, da Terceira Internacional e mesmo de outras interpretações. Então, esse renascimento é, na verdade, uma redescoberta, uma reaplicação, do lado vivo do marxismo. Acho que isso merece também o Lênin, os marxistas leninistas não gostam do jovem Marx, chamado jovem no seu vigor, na sua vivacidade. Assim também que o jovem Marx, na sua vivacidade de pensar a transformação, revolucionário, mas também em o que está na cultura, no comunismo, é uma transformação cultural radical, a construção da sociedade comunista dos costumes. Isso que hoje falamos de pauta de costumes está no século XIX. Marx, na sociedade de homens, as mulheres livres, dá um repensar de família, de libertação pessoal da religião, aos dogmas impostos pela sociedade de classes e pela dominação que vem desde o escravismo, enfim, as diversas fases da vida social. Sobretudo hoje, quando vemos que a realidade que Marx colocou no local da transformação via desenvolvimento das forças produtivas, isso é uma realidade impressionante. Ou seja, a profecia de Marx é que no impacto do desenvolvimento das forças produtivas em níveis nunca antes imaginados, quando se pensava em ter acabado por tradição e de cidade, de campo e de trabalho manual e intelectual, pensamos que isso era utopia. Utopia coisa nenhuma. A realidade, que hoje está cada vez mais próxima de nós, os marxistas, ou seja, os revolucionários, os transformadores, os pensadores libertários, temos que saudar com muita paixão. Seu trabalho é também um renascimento da vivacidade da atualidade de Marx, renascendo, quem sabe, os próprios marxistas e esse pensamento marxista vivo que ficou encoberto por essa poeira.

Fernanda Estima: Quais os desafios para tornar Marx e seu pensamento mais popular? Carlos Henrique fala de um tsunami. Juarez tá lá, firme e forte, construindo um circuito de debate marxista. Nós temos aqui a militância conduzida pela nossa casa, pelo PT, na intenção também de fazer isso avançar. Mas nós precisamos que você dê essa resposta para a gente.

Antonio Albino Rubim: Como que o renascimento do pensamento de Marx tem tratado o tema da cultura e afins em um mundo que a disputa político cultural toma a forma de guerra cultural e marxismo cultural.

Marcello Musto: Eu dividiria a minha intervenção e a minha resposta em duas partes, porque acho que há uma parte mais teórica e depois uma parte de organização militante. Então, começaria com a teoria. E a pergunta de Hugo em relação à dialética de Hegel e o que Marx absorveu ou descartou da ideia. Acho que a dialética é um tema central e importante no pensamento do Marx. Dividiria a dialética e a relação com Hegel, com a escola da esquerda hegeliana fundamental pelo jovem Marx e também a ideia metodológica da dialética. Então, como olhar o capitalismo? Nos últimos anos, Marx desenvolveu muito esse tema e passou a uma concepção que era muito menos linear do desenvolvimento do capitalismo e que achava possível que a revolução, que os movimentos sociais não tinham de desenvolver, na forma clássica e mais esperada, mas onde o capitalismo estava mais desenvolvido não era assim. Ao mesmo tempo, Marx não mudou. Para Marx, o capitalismo é necessário, um momento importante do desenvolvimento, e os fatores econômicos claramente não precisam se desenvolver da mesma forma em todos os países. Essa me parece uma atuação da dialética de Marx em relação ao tema. Escolhi essa temática porque Adriana também está perguntando se a análise marxista do capitalismo é ultrapassada hoje. E falei que Marx tem de ser redescoberto. Uma das particularidades do livro O Renascimento de Marx é ser um convite a conhecê-lo. São 22 conceitos centrais do pensamento em Marx, verdadeiramente centrais, porque também há temas como arte, educação, nacionalismo, etnicidade e gênero, que foram centrais na análise de Marx, ainda que não sejam na leitura de muitos marxismos. Então aqui estamos falando o que Marx, e só ele, escreveu sobre estes temas, quais os limites destas interpretações hoje em um capitalismo que mudou e se desenvolveu muito. Mas também quais fundamentos de Marx são centrais para repensar todas essas questões. Esse tema, de que existe menos produção e que o setor produtivo tem menor peso, também é um tema muito difícil e complicado se lido na forma de uma sociologia do trabalho europeia, que fala de fim do trabalho, muitíssimo eurocêntrica e que não olha os processos que ocorrem no Sul global.

Afortunadamente, no Brasil há sociólogos importantes, como meu colega Ricardo Antunes, que fizeram desse sistema uma grande centralidade e também que circula no mundo contra esta interpretação de quais são, nos textos de Marx, para utilizar. Acho que é muito inédito aos que indicavam que são úteis somente para um público de especialistas do tema ou para um diretor acadêmico ou de pesquisadoras. Mas, ao mesmo tempo, acho que a responsabilidade de ter uma nova geração de estudiosos de Marx e organizar ontologias é ajudar os jovens, os ativistas, os militantes e todas as figuras, como lembrou Juarez, a ler uma crítica da nossa sociedade e não uma forma ontológica correta, porque às vezes essas antologias são muito perigosas. Agora precisamos reorganizar novos perfis de Marx e traduzir. E o último comentário que foi feito, sobre a biografia de Marx, acho que também é muito importante. Por isso passei muitos anos escrevendo sobre a biografia de Karl Marx, porque ajuda muito a entender o pensamento de Marx. É uma coisa muito importante para mim. Ajuda também a entender que antes era tudo maravilhoso e perfeito e hoje a esquerda está com enormes dificuldades. Antes também existiam grandíssimos problemas. Então, acho que estudar a história do movimento dos trabalhadores, as tantas dificuldades que passaram, nos ajuda a entender que nossos problemas contemporâneos são muitos, são graves, mas ao mesmo tempo históricos e podem ser mudados e melhorados. Com muita paixão, digo que algo precisa ser feito. Acho que a gente pode trabalhar muito sobre isso, mas não sou um autor de um campo que é importante, como nos anos 1960 e 1970. Há interesse para Marx, mas muito menor, digo que preciso de você e de muitas pessoas. Há a necessidade de fazer formação política em todos os lugares, porque o que existia antes desapareceu completamente. A minha história é biográfica, desde os meus primeiros anos como militante, como estudante na universidade. Venho de um país, a Itália, que tinha uma tradição, como talvez nenhum outro país do mundo, de formação política e da importância disso. Hoje não existe mais. É uma falha enorme no mundo da cultura, no mundo da universidade, no mundo da militância política. E acho que a maneira de organizar esta nova onda – e já estou preparando um segundo trabalho – também é importante agora preparar um trabalho de recepção, de entender o que é marxismo hoje e o que a esquerda precisa para fazer este trabalho de forma plural, de defender posições de formações políticas, mas ao mesmo tempo também de variedade geográfica.

O tema da cultura Marx e Engels sempre acharam importante. E é para mim um tema central, e vou chamar uma vez mais a atenção sobre esse tema que talvez seja prioritário hoje ou pela nossa tradição ou pela tradição do socialismo. Não é verdade que o socialismo é uma uma filosofia ou uma ideologia que se interessa exclusivamente ou quase exclusivamente pela luta de classes, na fábrica, o proletariado. O socialismo é uma ideia que é riquíssima, que se ocupa de todas as contradições do capitalismo e que tem na centralidade da cultura da educação grandíssimos autores e pensamentos que nos servem muito para hoje.

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Lançamento do livro O Renascimento de Marx (Book Launch)

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Os manuscritos de Marx (Book Launch)

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Marx foi um anticolonialista a favor da libertação do povo árabe

Quando viveu na Argélia, Marx atacou – com indignação – os abusos violentos dos franceses, seus atos provocativos repetidos, sua arrogância desavergonhada, presunção e obsessão em se vingar como Moloch diante de cada ato de rebelião da população árabe local.

“Uma espécie de tortura é aplicada aqui pela polícia, para forçar os árabes a ‘confessar’, assim como os britânicos fazem na Índia”, ele escreveu.

Marx: “O objetivo dos colonialistas é sempre o mesmo: destruir a propriedade coletiva indígena e transformá-la em objeto de compra e venda”.

O que Marx estava fazendo no Magrebe?

No inverno de 1882, durante o último ano de sua vida, Karl Marx teve uma bronquite grave e seu médico recomendou a ele um período de descanso em um lugar quente. Gibraltar foi descartada porque Marx precisaria de um passaporte para entrar no território, e como apátrida, ele não possuía um. O império bismarckiano estava coberto de neve e, de qualquer forma, ainda estava proibido para ele, enquanto a Itália estava fora de cogitação, uma vez que, como Friedrich Engels colocou, ‘a primeira condição quando se trata de convalescentes é que não haja assédio policial’.

Paul Lafargue, genro de Marx, e Engels convenceram o paciente a ir para Argel, que na época desfrutava de boa reputação entre os ingleses para escapar das rigores do inverno. Como lembrou mais tarde Eleanor Marx, filha de Marx, o que impulsionou Marx a fazer essa viagem incomum foi sua prioridade número um: concluir O Capital. Ele atravessou a Inglaterra e a França de trem e depois o Mediterrâneo de barco.

Ele viveu em Argel por 72 dias e essa foi a única vez em sua vida em que ele passou fora da Europa. À medida que os dias passavam, a saúde de Marx não melhorava. Seu sofrimento não era apenas físico. Ele se sentia muito solitário após a morte de sua esposa e escreveu a Engels que estava sentindo “ataques profundos de melancolia profunda, como o grande Dom Quixote”. Marx também sentia falta — devido a sua condição de saúde — de atividade intelectual séria, sempre essencial para ele.

Efeitos da introdução da propriedade privada pelos colonizadores franceses

Aprogressão de inúmeros eventos desfavoráveis não permitiu a Marx chegar ao fundo da realidade argelina, nem foi realmente possível para ele estudar as características da propriedade comum entre os árabes — um tópico que o interessava muito alguns anos antes. Em 1879, Marx copiou, em um de seus cadernos de estudo, trechos do livro do sociólogo russo Maksim Kovalevsky, Propriedade Comunal: Causas, Curso e Consequências de sua Declínio. Eles eram dedicados à importância da propriedade comum na Argélia antes da chegada dos colonizadores franceses, bem como às mudanças que eles introduziram. De Kovalevsky, Marx copiou: “A formação da propriedade privada da terra — aos olhos dos burgueses franceses – é uma condição necessária para todo progresso na esfera política e social. A manutenção contínua da propriedade comum, ‘como uma forma que apoia tendências comunistas nas mentes, é perigosa tanto para a colônia quanto para a pátria’. Ele também foi atraído pelos seguintes comentários: ‘a transferência da propriedade da terra das mãos dos nativos para as dos colonos foi perseguida pelos franceses sob todos os regimes. (…) O objetivo é sempre o mesmo: destruição da propriedade coletiva indígena e sua transformação em objeto de compra e venda livre, e por meio disso, a passagem final facilitada para as mãos dos colonos franceses”.

Quanto à legislação sobre a Argélia proposta pelo republicano de esquerda Jules Warnier e aprovada em 1873, Marx endossou a afirmação de Kovalevsky de que seu único propósito era a “expropriação do solo da população nativa pelos colonos europeus e especuladores”. A audácia dos franceses chegou ao ponto de “roubo direto”, ou conversão em “propriedade do governo” de todas as terras não cultivadas que permaneciam em comum para uso dos nativos. Esse processo foi projetado para produzir outro resultado importante: a eliminação do perigo de resistência pela população local. Novamente, através das palavras de Kovalevsky, Marx observou: “a base da propriedade privada e o estabelecimento de colonos europeus entre os clãs árabes se tornariam o meio mais poderoso para acelerar o processo de dissolução das uniões de clãs. (…) A expropriação dos árabes pretendida pela lei tinha dois objetivos: 1) fornecer aos franceses o máximo de terra possível; e 2) arrancar os árabes de seus laços naturais com a terra para quebrar a última força das uniões de clãs que estavam sendo dissolvidas, e assim qualquer perigo de rebelião”.

Marx comentou que esse tipo de individualização da propriedade da terra não apenas assegurou enormes benefícios econômicos para os invasores, mas também alcançou um “objetivo político: destruir a base dessa sociedade”.

Reflexões sobre o mundo árabe

Em fevereiro de 1882, quando Marx estava em Argel, um artigo no jornal local The News documentou as injustiças do sistema recém-criado. Teoricamente, qualquer cidadão francês na época poderia adquirir uma concessão de mais de 100 hectares de terra argelina, sem sequer sair de seu país, e então poderia revendê-la a um nativo por 40.000 francos. Em média, os colons vendiam cada pedaço de terra que compraram por 20 – 30 francos pelo preço de 300 francos.

Devido à sua saúde debilitada, Marx não pôde estudar esse assunto. No entanto, nas dezesseis cartas escritas por Marx

que sobreviveram (ele escreveu mais, mas foram perdidas), ele fez várias observações interessantes do sul do Mediterrâneo. As que se destacam são aquelas que lidam com as relações sociais entre os muçulmanos. Marx foi profundamente impressionado por algumas características da sociedade árabe. Para um “verdadeiro muçulmano”, ele comentou: “tais acidentes, bons ou maus, não distinguem os filhos de Maomé. A igualdade absoluta em sua interação social não é afetada. Pelo contrário, só quando corrompidos, eles se dão conta disso. Seus políticos consideram com razão esse mesmo sentimento e prática de igualdade absoluta como importante. No entanto, eles irão à ruína sem um movimento revolucionário”.

Em suas cartas, Marx atacou com desprezo os abusos violentos dos europeus e suas constantes provocações, e, não menos importante, sua “arrogância descarada e presunçosa em relação às ‘raças inferiores’, e sua obsessão sombria, como Moloch, com relação a qualquer ato de rebelião. Ele também enfatizou que, na história comparativa da ocupação colonial, “os britânicos e holandeses superam os franceses”. Em Argel em si, ele relatou a Engels que o juiz progressista Fermé, que ele encontrava regularmente, tinha visto, ao longo de sua carreira, “uma forma de tortura (…) para extrair ‘confissões’ dos árabes, naturalmente realizada (como os ingleses na Índia) pela polícia”. Ele tinha relatado a Marx que “quando, por exemplo, um assassinato é cometido por uma gangue árabe, geralmente com roubo em vista, e os criminosos reais são devidamente apreendidos, julgados e executados ao longo do tempo, isso não é considerado como expiação suficiente pela família colonista prejudicada. Eles exigem, além disso, a ‘detenção’ de pelo menos meia dúzia de árabes inocentes. (…) Quando um colono europeu mora entre aqueles que são considerados as ‘raças inferiores’, seja como colonizador ou apenas a negócios, geralmente se considera ainda mais inviolável do que o rei”.

Contra a presença colonial britânica no Egito

Da mesma forma, alguns meses depois, Marx não poupou críticas à presença britânica no Egito. A guerra de 1882, liderada por tropas do Reino Unido, encerrou a chamada revolta de Urabi, que havia começado em 1879, e permitiu aos britânicos estabelecer um protetorado no Egito. Marx ficou furioso com as pessoas progressistas que se mostraram incapazes de manter uma posição de classe autônoma, e alertou que era absolutamente necessário para os trabalhadores se oporem às instituições e retórica do estado.

Quando Joseph Cowen, um deputado e presidente do Congresso Cooperativo — considerado por Marx “o melhor dos parlamentares ingleses” — justificou a invasão britânica do Egito, Marx expressou sua total desaprovação.

Acima de tudo, ele censurou o governo britânico: “Muito bem! Na verdade, não poderia haver exemplo mais flagrante de hipocrisia cristã do que a ‘conquista’ do Egito — conquista em meio à paz!” Mas Cowen, em um discurso em 8 de janeiro de 1883 em Newcastle, expressou sua admiração pelo “feito heróico” dos britânicos e pelo “deslumbramento de nosso desfile militar”; ele também “não podia deixar de sorrir com a perspectiva encantadora de todas aquelas posições ofensivas fortificadas entre o Atlântico e o Oceano Índico e, de quebra, um ‘Império Britânico na África’ do Delta ao Cabo”. Era o “estilo inglês”, caracterizado pela “responsabilidade” com o “interesse doméstico”. Na política externa, Marx concluiu, Cowen era um exemplo típico “daqueles pobres burgueses britânicos, que gemem à medida que assumem cada vez mais ‘responsabilidades’ no serviço de sua missão histórica, enquanto protestam em vão contra ela”.

Marx empreendeu investigações aprofundadas das sociedades fora da Europa e expressou claramente sua oposição aos estragos do colonialismo. É um erro sugerir o contrário, apesar do ceticismo instrumental tão na moda nos dias de hoje em certos círculos acadêmicos liberais.

Durante sua vida, Marx observou de perto os principais eventos da política internacional e, como podemos ver em seus escritos e cartas, na década de 1880 ele expressou firme oposição à opressão colonial britânica na Índia e no Egito, bem como ao colonialismo francês na Argélia. Ele estava longe de ser eurocêntrico e obcecado apenas pelo conflito de classes. Marx considerava o estudo de novos conflitos políticos e áreas geográficas periféricas como fundamental para sua crítica contínua do sistema capitalista. O mais importante é que ele sempre tomou o partido dos oprimidos contra os opressores.

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O mito do “jovem Marx” (Book Launch)

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Precisamos repensar Marx? (Book Launch)

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El último Marx sobre el sur-global? (Talk)

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El último Marx sobre el sur-global

Comentários de: Leda Paulani, Ruy Braga e Douglas Rodrigues Barros.

Mediação: Jean Tible

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O renascimento de Marx após a queda do Muro de Berlim

Negligência desdenhosa e hostilidade intempestiva, rejeição arrogante e adoção marginal, cooptação seletiva e revisionismo seletivo: essas são algumas das estratégias adotadas pelos intelectuais do establishment ao longo dos anos em resposta ao desafio do pensador nascido 205 anos atrás em Trier. No entanto, cá estamos no início da terceira década do século XXI e às vezes parece que as ideias reais de Karl Marx nunca foram tão atuais nem atraíram tanto respeito e interesse quanto hoje.

Desde que a última crise do capitalismo eclodiu em 2008, Marx voltou à moda. Ao contrário das previsões após a queda do Muro de Berlim, quando ele foi condenado ao esquecimento perpétuo, as ideias de Marx são mais uma vez objeto de análise, desenvolvimento e debate. Muitos começaram a fazer novas perguntas sobre um pensador que muitas vezes foi erroneamente identificado com o “socialismo realmente existente” e depois rapidamente descartado depois de 1989.

Jornais e periódicos de prestígio com um grande número de leitores têm descrito Marx como um teórico altamente atual e perspicaz. Em todos os lugares, ele agora é tema de cursos universitários e conferências internacionais. Seus escritos, reimpressos ou lançados em novas edições, reapareceram nas prateleiras das livrarias e o estudo de sua obra, depois de 20 anos de silêncio virtual, ganhou impulso crescente, às vezes produzindo resultados importantes e inovadores. Os anos de 2017 e 2018 trouxeram mais intensidade a este “renascimento de Marx”, graças a muitas iniciativas em todo o mundo ligadas ao 150º aniversário da publicação de O Capital e o bicentenário do nascimento de Marx.

Armas críticas

De particular valor para uma reavaliação geral da obra de Marx foi a retomada da publicação, em 1998, da Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA), a edição histórico-crítica das obras completas de Marx e Engels. 28 volumes já apareceram, e outros estão no decorrer da preparação.

Esses volumes contêm novas versões de alguns das obras de Marx (como A Ideologia Alemã), todos os seus manuscritos preparatórios de O Capital de 1857 a 1881, todas as cartas que enviou e recebeu durante sua vida, e aproximadamente duzentos cadernos contendo excertos da sua leitura e reflexões às quais deram origem. Estes últimos formam a oficina de sua teoria crítica, mostrando-nos o complexo itinerário de seu pensamento e as fontes em que ele se baseou para desenvolver suas ideias.

“Marx empreendeu investigações minuciosas de sociedades fora da Europa e expressou-se inequivocamente contra as devastações do colonialismo.”

Esses volumes inestimáveis ​​da edição MEGA – muitos disponíveis apenas em alemão e, portanto, ainda confinados a pequenos círculos de pesquisadores – mostram um autor muito diferente daquele que numerosos críticos, ou autodenominados seguidores, apresentaram por tanto tempo. A publicação de materiais anteriormente desconhecidos de Marx, juntamente com interpretações inovadoras de seu trabalho, abriu novos horizontes de pesquisa e demonstrou mais claramente que, no passado, sua capacidade de examinar o contradições da sociedade capitalista em escala global e em esferas além do conflito entre capital e trabalho. Não é exagero dizer que, dos grandes clássicos do pensamento político, econômico e filosófico, Marx é aquele cuja as ideias mais impactaram e mudaram o mundo nas primeiras décadas do século XXI.

Os avanços da pesquisa, juntamente com as mudanças nas condições políticas, sugerem que a renovação na interpretação do pensamento de Marx é um fenômeno destinado a continuar. Publicações recentes mostraram que Marx se aprofundou em muitas questões – muitas vezes subestimadas, ou mesmo ignoradas, pelos estudiosos de sua obra – que estão adquirindo importância crucial para a agenda política do nosso tempo. Entre elas estão as questão ecológica, a migração, a crítica do nacionalismo, a liberdade individual na esfera econômica e política, a emancipação de gênero, o potencial emancipatório da tecnologia e formas de propriedade coletiva não controladas pelo Estado.

Anticolonial, extremamente atual e nada economicista

Além disso, Marx empreendeu investigações minuciosas de sociedades fora da Europa e expressou-se inequivocamente contra as devastações do colonialismo. Ele também criticou os pensadores que utilizavam categorias peculiares ao contexto europeu em suas análises de áreas periféricas do globo.

Ele advertiu contra aqueles que não observavam as distinções necessárias entre os fenômenos e, principalmente, após seus avanços teóricos na década de 1870, exercia uma grande cautela ao transferir categorias interpretativas entre campos históricos ou geográficos completamente diferentes. Tudo isso é mais evidente hoje, apesar do ceticismo ainda em voga em certos rincões acadêmicos. Assim, 30 anos após a queda do Muro de Berlim, tornou-se possível ler um Marx muito diferente do teórico dogmático, economicista e eurocêntrico que foi exibido por tanto tempo.

“Para Marx, a possibilidade de transformar a sociedade dependia da classe trabalhadora e de sua capacidade, através da luta, de mudar o mundo.”

Claro, pode-se encontrar no enorme legado literário de Marx uma série de afirmações que sugerem que o desenvolvimento das forças produtivas leva à dissolução do modo de produção capitalista. Mas seria errado atribuir a ele qualquer ideia de que o advento do socialismo é uma inevitabilidade histórica. De fato, para Marx, a possibilidade de transformar a sociedade dependia da classe trabalhadora e de sua capacidade, através da luta, de mudar o mundo.

Se as ideias de Marx forem reconsideradas à luz das mudanças que ocorreram desde a sua morte, serão de grande utilidade para a compreensão da sociedade capitalista, mas também lançarão luz sobre o fracasso das experiências socialistas no século XX. Para Marx, o capitalismo não é uma organização de sociedade em que os seres humanos, protegidos por normas jurídicas imparciais capazes de garantir a justiça e a equidade, gozam de verdadeira liberdade e vivem numa democracia plenamente realizada. Na realidade, eles são degradados em meros objetos, cuja função primária é produzir mercadorias e gerar lucros para outros. Mas se o comunismo pretende ser uma forma superior de sociedade, deve promover as condições para o “desenvolvimento pleno e livre de cada indivíduo”. Em contraste com o equacionamento do comunismo com a “ditadura do proletariado”, que muitos dos “Estados comunistas” adotaram em sua propaganda, é necessário olhar novamente para a definição que Marx dava da sociedade comunista como “uma associação de seres humanos livres”.

No livro O renascimento de Marx – que contém contribuições de renomados acadêmicos internacionais – apresenta um Marx em muitos aspectos diferentes daquele que é conhecido das correntes dominantes do socialismo do século XX. Seu duplo objetivo é reabrir para discussão, de forma crítica e inovadora, os temas clássicos do pensamento de Marx e desenvolver uma análise mais profunda de certos questões às quais foi dada relativamente pouca atenção até agora. Espera-se que o livro ajude, portanto, a aproximar Marx tanto daqueles que pensam que tudo já foi escrito sobre sua obra quanto para uma nova geração de leitores que ainda não foram seriamente confrontados com seus escritos.

É desnecessário dizer que hoje não podemos simplesmente confiar no que Marx escreveu há um século e meio. Mas tampouco devemos desconsiderar levianamente o conteúdo e a clareza de suas análises ou deixar de empunhar as armas críticas que ele ofereceu para um novo pensamento sobre uma sociedade alternativa ao capitalismo.

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Maurício Vieira Martins, Marxismo21

O escritor japonês Kohei Saito vendeu cerca de meio milhão de cópias em seu país com o livro O capital no antropoceno, que analisa a partir de uma perspectiva marxista as causas que promovem a aguda deterioração ambiental do planeta. Já o periódico alemão conservador Der Spiegel, na sua última edição de 2022, traz na capa um Marx de visual contemporâneo (com mangas curtas e braços tatuados…) e estampa a pergunta: “Afinal, Marx estava certo?”. Estes são apenas alguns exemplos de uma retomada do interesse pela obra de Marx que
vem ocorrendo no século XXI, a partir das evidências muito contundentes da gravidade das contradições da economia capitalista. Também no Brasil a produção de livros marxistas encontra um espaço próprio, ao qual vem se somar a recente tradução para o português do livro Repensar Marx e o Marxismo: guia para novas leituras, de autoria do pesquisador italiano Marcello Musto, professor da York University no Canadá. Dois livros de Musto já haviam sido publicados no Brasil: Trabalhadores, uni-vos!: Antologia política da I Internacional, publicado também pela Boitempo e O velho Marx: Uma biografia de seus últimos anos Boitempo (uma parceria da Boitempo e com a Fundação Perseu Abramo).

O conjunto de temas abordado por Repensar o marxismo é amplo:
dividido em dez capítulos, o livro abrange desde ensaios que se ocupam de alguns momentos determinados da biografia e do pensamento de Marx, como seus anos de juventude (capítulos 1 e 2), passando pelos estudos de economia política e jornalismo na década de 50 para o New-York Tribune (capítulo 4), chegando até o período de redação de O capital (capítulo 7). Há também dois capítulos dedicados à elaboração e posterior repercussão dos Grundrisse e de sua Introdução, famosos rascunhos preparatórios de O capital (capítulos 5 e 6). Além disso, o leitor encontrará um debate sobre a pertinência da oposição entre o chamado jovem Marx e o Marx da maturidade (capítulo 3), debate que encontra desdobramentos na investigação sobre o conceito de alienação (capítulo 8), desde sua apropriação por Marx até as repercussões na sociologia e na filosofia contemporâneas. Já o capítulo 9, “Evitar o capitalismo” discute a primeira recepção de Marx na Rússia, ainda durante sua vida. O livro se encerra no capítulo 10 com uma apresentação das novas descobertas da MEGA² -MarxEngels-Gesamtausgabe -, projeto editorial ainda em curso, responsável pela publicação da obra integral de Marx e Engels.

Dada a amplitude da investigação realizada por Musto, seria impossível comentar no presente texto cada capítulo do livro. Aqui, a opção será destacar alguns aspectos que me parecem particularmente fecundos [1], neste livro que consegue atingir tanto o leitor que tenha um conhecimento apenas inicial de Marx, como aquele que já dispõe de um trajeto na obra do pensador.

No meu entender, o primeiro aspecto a ser destacado diz respeito a uma ampliação da visão sobre qual foi o campo temático pesquisado por Marx ao longo de sua vida. Com efeito, os novos volumes publicados pelo projeto MEGA² nos apresentam um autor que inclui em seus estudos não somente a crítica da economia política e o conflito entre as classes sociais (temas classicamente associados ao nome do pensador alemão), como também outras preocupações que ingressaram com força na agenda teórica e política de homens e mulheres dos séculos XX e XXI. Dentre eles, merece destaque o interesse de Marx pela devastação ambiental levada a cabo pela produção capitalista. Nas palavras de Musto, “Marx se interessou cada vez mais pelo que hoje chamamos de ‘ecologia’, em particular pela erosão do solo e pelo desmatamento” (p. 310). [2]
Diferentemente de um elogio unilateral das forças produtivas – que supõe ingenuamente que o simples desenvolvimento tecnológico associado ao progresso da ciência seria capaz de produzir uma emancipação humana – encontramos em Marx uma preocupação com a devastação da natureza levada adiante pela racionalidade mercantil capitalista. Leitor atento das descobertas das ciências naturais de sua época – como atesta seu interesse pela obra, dentre outros, do cientista e bioquímico Justus von Liebig -, ele escreve em 1868: “o cultivo que, quando progride de maneira primitiva, não conscientemente controlada (obviamente, isso não se consegue sendo burguês), deixa desertos atrás de si” (apud p. 311). Ao invés do culto unilateral do produtivismo, encontramos em Marx a radiografia da destruição ambiental que a lógica do lucro traz em si.

O acesso a uma gama mais ampla de textos de Marx nos mostra também um pensador muito crítico à dominação colonial levada a cabo pela Europa ao redor do mundo. De modo diverso de um Edward Said que no seu célebre livro Orientalismo afirmava que Marx, excessivamente preso à ótica de sua época, não teria conseguido enxergar a alteridade de outras culturas, Musto escreve que “Entre os interesses de Marx, um lugar nada secundário foi ocupado pelo estudo
das sociedades não europeias e do papel destrutivo do colonialismo nas periferias do mundo” (p. 18). Notemos que tal alerta é oportuno tendo em vista que também alguns dos chamados estudos decoloniais mais recentes categorizam Marx como um pensador eurocêntrico, a ser sumariamente despachado para uma espécie de museu dos equívocos cometidos no passado. Todavia, quando se leva em conta principalmente os escritos tardios de Marx sobre, por exemplo, a violenta predação exercida pela Inglaterra sobre a Índia, vemos uma fisionomia bem diferente do pensador, que veicula uma crítica contundente ao próprio modo de produção vigente em sua Europa nativa. Nos Cadernos Etnológicos marxianos podemos ler: “a supressão da propriedade comum do solo não passou de um ato
de vandalismo inglês, que não impulsionou o povo indiano para frente, mas o empurrou para trás” (apud p. 266). Longe de um elogio da cultura europeia, Marx radiografa, no calor da hora, a violência estrutural e constitutiva de seu modo de produção capitalista.

Dito isso, é preciso reconhecer que descoberta de novos rascunhos, manuscritos preparatórios e cartas de Marx e Engels – missivistas contumazes – complexifica de modo considerável o trabalho dos pesquisadores que se dedicam com seriedade à obra dos autores. Basta lembrar que a MEGA² prevê a publicação de 114 volumes (cada um com dois tomos), colocando à disposição do público um material até então inédito. Esta é aliás uma dificuldade adicional para os leitores de Marx e Engels, que se veem diante de uma obra monumental, que simplesmente não cabe nos estreitos escaninhos da atual divisão do trabalho acadêmica, donde a observação: “a obra de Marx é uma gigantesca cultura de teoria crítica, que transita entre inúmeras disciplinas do conhecimento humano, cuja síntese representa uma tarefa árdua para todo leitor rigoroso.” (p.11)

Tal tarefa que se apresenta aos pesquisadores marxistas por vezes faz
pensar, acrescento, na saborosa referência do escritor argentino Jorge Luis Borges ao procedimento do Colégio de Cartógrafos de um Império fictício. Desconhecendo o princípio mais produtivo de uma cartografia – o de que o mapa deve ter uma escala significativamente diferente do objeto a ser mapeado – os cartógrafos produziram um gigantesco “Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia ponto a ponto com ele” [3].  Mas Marcello Musto está bem longe deste perigo: ele consegue ter uma notável capacidade de síntese que lhe permite transitar por um número muito grande de temas biográficos e conceituais dentro da obra de Marx e de alguns de seus sucessores, mantendo sempre uma bússola que assegura o tônus da argumentação ao longo do livro.

Igualmente merecedor de atenção em Repensar Marx e os marxismos
vem a ser a refutação da ideia, amplamente difundida entre os críticos de Marx, de um suposto dogmatismo do autor, como alguém que veicularia certezas definitivas sobre os temas que pesquisa. Também aqui a leitura da correspondência de Marx e dos materiais preparatórios de seus livros nos mostra um pensador que, quando confrontado com limites de seu trabalho, se retifica de modo consistente. A este respeito, as sucessivas modificações que Marx imprimiu ao capítulo 1 de O capital são exemplares: ele se convence que a forma da exposição de fato não estava satisfatória. Em carta a Kugelmann de outubro de 1866, escreve abertamente: “mesmo as pessoas inteligentes não entenderam adequadamente a questão, em outras palavras, deve ter havido defeitos na primeira apresentação” (p. 204)

Mais do que isso, o próprio caráter processual do objeto de seus estudos – o modo de produção capitalista – lhe impunha a atualização permanente de suas teses. Basta lembrar o interesse com que Marx se dedica a estudar os mercados financeiros nos anos finais de sua vida, ciente das transformações que eles traziam para a acumulação capitalista: “Desde o outono de 1868 até a primavera de 1869, determinado a dar conta dos últimos desenvolvimentos do capitalismo, Marx compilou copiosos excertos de textos sobre os mercados financeiros e monetários…” (p. 209). Assim, ao invés de “vestir” a realidade com categorias previamente construídas (e aqui, a meu ver, o contraste com o tipo ideal de Weber é quase palpável), Marx se dedica a construir uma malha categorial que espelhe seu caráter processual e histórico.

Considerações adicionais sobre a disponibilidade de Marx em alterar aqueles tópicos de seu pensamento quando confrontado com questionamentos pertinentes podem ser encontradas no capítulo 9, intitulado “Evitar o capitalismo”. Nele, Musto detalha os esforços de Marx para combater uma imagem que começou a se formar já durante a sua vida, que afirmava que ele havia apresentado uma teoria universal do desenvolvimento das sociedades. O cotejamento com Nikolai Mikhailovsky e Vera Ivanovna Zasulitch sobre os possíveis desdobramentos da obshchina – comunidade rural presente numa imensa extensão territorial russa – evidencia um autor cauteloso ao lidar com questões que envolviam uma avaliação de sua própria teoria. Os longos rascunhos que precederam, por exemplo, a resposta às indagações de Zasulich sobre as transformações da obshchina mostram Marx explorando as diferentes variáveis a serem levadas em conta – sempre ligadas ao contexto histórico de cada formação social -, ao invés de pretender fornecer uma resposta pronta à sua interlocutora.
Nas palavras de Musto: “Por quase três semanas, Marx permaneceu imerso em suas cartas, ciente de que deveria fornecer uma resposta a um questionamento teórico de grande envergadura” (p. 264). Esta disponibilidade para uma atualização da teoria será reencontrada também na revisão da edição francesa de O capital, que envolve acréscimos e modificações em relação à edição alemã, a ponto de Marx atribuir à primeira “um valor científico independente do original” (apud p. 210).

Repensar Marx e os marxismos aborda também o debate em torno da
periodização da obra do pensador. Conforme é sabido, ao longo do século XX ganhou prestígio uma partição da obra que opunha o jovem Marx – que afirmava uma peculiar forma de humanismo – ao velho Marx, crítico da economia política burguesa. Por esta via, a bibliografia do século criou uma espécie de personagem que atenderia pelo nome de jovem Marx e que encontraria sua produção mais emblemática nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. Levando isso em conta, em mais de um capítulo de Repensar Marx e os marxismos são feitas
referências a estes Manuscritos, apresentando seus méritos, mas também seus
limites reais. O texto de 1844 enfrenta de forma original questões que não eram tradicionalmente associadas ao marxismo, como aquelas referentes tanto à alienação objetiva como subjetiva dos trabalhadores, com toda a objetificação que o fenômeno acarreta nas relações humanas. A perspectiva emancipatória subjacente aos Manuscritos – publicados em sua íntegra apenas em 1932 – opunha-se à interpretação predominante de uma ortodoxia marxista, daí ser preciso enfatizar o “efeito disruptivo gerado por um texto inédito tão diferente dos cânones do marxismo dominante” (p. 94).

Levando em conta a existência de aquisições substantivas ocorridas na
juventude de Marx, Musto afirma que elas não autorizam uma partição tão excludente da obra entre o jovem Marx e o Marx da maturidade. Aqui, algumas palavras duras são dirigidas a Louis Althusser, o autor que mais difundiu a noção de uma ruptura epistemológica que separaria radicalmente diferentes fases da obra de Marx. Ocorre que a pesquisa textual e filológica posterior não corrobora tal hipótese, sustentada por Althusser mesmo em seus Elementos de autocrítica.
Lembrando que a categoria da alienação (Entfremdung) percorre a quase totalidade da obra de Marx, Musto aponta para a impossibilidade de que o suposto corte epistemológico “tivesse acontecido no desenrolar de algumas poucas semanas e pudesse ter sido concebido como algo tão rígido” (p. 84).

Contudo, feito o registro da importância de algumas categorias
desenvolvidas nos escritos de juventude de Marx, Musto não esconde suas próprias preferências: afirma que os longos anos de estudo de economia política e outras disciplinas levaram-no a alcançar patamares de investigação compreensivelmente mais elevados do que aqueles de sua juventude. Por esta razão, não é possível endossar a hipótese que seria como que a inversa da ruptura epistemológica: aquela que supõe existir uma identidade plena no interior do pensamento marxiano, “como se a obra de Marx fosse um único escrito, indistinto
e atemporal” (p. 96). Caso adotássemos esta via, ficaria interditada a apreensão do imenso esforço teórico realizado por Marx, esforço que lhe apresentou questões novas – referentes à estruturação econômica e política do modo de produção capitalista – para as quais simplesmente não dispunha de respostas em sua juventude.

Já no que diz respeito ao capítulo 8, “A concepção de alienação segundo Marx e nos marxismos do século XX”, parece-me que uma de suas implicações mais relevantes é colocar em xeque a perspectiva que supõe existir uma progressiva evolução das Ciências Sociais como um todo ao longo do tempo.
Amplamente difundida em vários ambientes acadêmicos, tal perspectiva afirma que a ciência temporalmente mais recente é necessariamente melhor do que a anterior (daí para se erradicar dos currículos universitários os autores do século XIX será apenas um passo…). Mas, ora, durante a leitura da apropriação que, por exemplo, a sociologia estadunidense do século XX fez da categoria alienação, é
impossível não pensar que tal sociologia ficou aquém da formulação original de Marx. Pois o que era nos textos deste último uma abordagem que apontava para um fenômeno social com uma fisionomia bem definida (a alienação enraizada no modo de produção da vida de uma sociedade capitalista), acaba adquirindo os contornos de uma condição humana universal. Na pena de autores como Melvin
Seeman ou Robert Blauner (escrevendo nas décadas de 50 e 60 do século XX) ocorre uma “espécie de hiperpsicologização da análise do conceito – que foi assumida na sociologia, bem como na psicologia, não mais como uma questão social, mas como uma patologia individual” (p. 231).

Se voltarmos agora a atenção para o debate político em torno do legado de Marx, o capítulo 10 de Repensar Marx e os marxismos traz vários elementos que atestam o visível contraste entre o projeto político e societário do autor e as experiências socialistas do século XX. Não seria este o momento para analisar um tema da magnitude das distorções do pensamento de Marx ocorridas nos manuais produzidos pela União Soviética, e mais ainda no cotidiano daquela sociedade. De todo modo, Musto chama a atenção para a distância existente entre
este último e o projeto societário encontrável na obra de Marx. Basta lembrar que: “Proponente da ideia de que a condição fundamental para o amadurecimento das habilidades humanas era a redução da jornada de trabalho, ele [Marx] foi assimilado ao credo produtivista do stakhanovismo. Convicto defensor da abolição do Estado, viu-se identificado como seu baluarte” (pp. 289-290). Alerta oportuno a ser feito, principalmente tendo em vista que o pensamento conservador continua a atribuir a Marx (falecido em 1883, não custa lembrar…)
a configuração assumida pela União Soviética mais de décadas após o seu falecimento. Cabe a nós, homens e mulheres do século XXI, relançar a originalidade de um projeto que esteja à altura do sentido emancipatório de seus fundadores.

Por fim, uma menção especial ao capítulo 7, intitulado “A escrita de O
capital: a crítica inacabada”. Alternando informações biográficas com decisões conceituais de Marx, nele encontramos nosso autor mergulhado na dificílima tarefa de concluir a redação do volume 1 de O capital. Musto persegue eficazmente seu objetivo de mostrar o erro que é considerar O Capital como uma obra acabada, trazendo material que atesta o seu caráter in progress, a ser aprimorado mediante o cotejamento com a realidade. No que diz respeito ao trabalho conceitual, merece destaque a importante carta a Engels, de 24 de agosto de 1867, onde Marx anuncia, orgulhoso, aqueles que lhe pareciam ser os dois melhores aspectos do volume I: “1. (isto é fundamental para toda a compreensão dos fatos) o duplo caráter do trabalho conforme se expressa em valor de uso ou valor de troca, que é trazido logo no primeiro capítulo; 2. O tratamento do maisvalor independentemente de suas formas particulares, como lucro, juros, renda da terra etc.” (apud p. 207). Incidentalmente, menciono que caberia talvez neste capítulo 7 um desdobramento, ainda que breve, do duplo caráter do trabalho a que Marx se refere. Isso nos levaria à categoria do trabalho abstrato, apontada por estudiosos contemporâneos (como Sohn-Rethel, W. Bonefeld, A. Jappe)
como uma das contribuições mais originais da economia política marxiana. [4]

Já no que tange as dificuldades pessoais de Marx enfrentadas para
concluir a redação de O capital, Musto detalha com segurança suas diferentes facetas. Num aspecto mais biográfico, salta aos olhos a situação de extrema pobreza em que vivia o autor de O capital. Acossado por credores, colocando seus bens na loja de penhores, impossibilitado de fornecer à sua família condições adequadas de vida (“as crianças não [tinham] roupas ou sapatos para sair”, ele escreve em 1863, apud p. 191), Marx estava em tudo distante da realidade vivida,
desnecessário dizer, por acadêmicos de países do dito primeiro mundo. A estas condições objetivas, soma-se também seu nível de autoexigência muito elevado, que raramente se dava satisfeito com o que escrevia (“também possuo o hábito de encontrar falhas em qualquer coisa que escrevi”, apud p. 185), modificando constantemente o material preparatório do que viria a ser O capital.
Adicionalmente, uma consciência aguda das transformações da economia capitalista o obrigava a incluir estudos suplementares, por exemplo, sobre o crescente papel dos mercados financeiros. Tudo isso resultava numa rotina de trabalho estafante: dedicando “dez horas por dia ao trabalho sobre economia” e muitas vezes sem dormir “antes das quatro da manhã”. As pressões externas e internas estouravam em seu próprio corpo. Marx passou a ser assolado com frequência por carbúnculos infecciosos que surgiam alternadamente em todas as
partes do corpo, causando-lhe um indescritível sofrimento que é descrito em detalhes em suas cartas. Marx, o mestre da pesquisa das contradições, se vê atravessado em seu organismo por elas. Descreve-se “como um verdadeiro Lázaro […], golpeado por todos os lados ao mesmo tempo’” (apud p. 194).

Para o leitor contemporâneo que acompanhe o detalhamento do
sofrimento contundente vivido por Marx e se pergunte sobre qual foi a eficácia, afinal, do trabalho estafante demandado pela redação de sua obra magna, acredito que o próprio pensador forneça a resposta. Referindo-se ao volume 1 de O Capital, ele escreve em 1864 ao metalúrgico Carl Kings: “Espero que eu agora possa, finalmente, terminá-lo em alguns meses e dê à burguesia um golpe teórico
do qual nunca se recuperará” (apud p. 281).
Não resta dúvida: o golpe foi dado.

 

 

[1] Agradeço a João Leonardo Medeiros pela cuidadosa leitura e sugestões feitas a esta resenha.
[2] Exceto quando houver indicação em contrário, as citações desta resenha são do livro de Marcello Musto. Quando sucedidas por apud, tratam-se de referências de Marx, citadas por Musto.
[3] Jorge Luis Borges. “Del rigor en la ciencia”. In El hacedor. Obra Completa, Buenos Aires: Emecé Editores, 1974, p. 847.
[4] Por esta via, seria possível chegar também a um novo sentido do que seja abstração em Marx, afirmada não apenas como um produto do pensamento, mas como processo que transcorre no próprio real. “Essa abstração de trabalho humano geral existe…”. Marx, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 56.

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