I. Prólogo
Em razão de conflitos teóricos ou de acontecimentos políticos, o interesse pela obra de Marx nunca foi constante e, desde quando se manifestou, viveu momentos indiscutíveis de declínio. Da “crise do marxismo” à dissolução da Segunda Internacional, das discussões sobre os limites da teoria da mais valia às tragédias do comunismo soviético, as críticas às idéias de Marx pareceram, cada vez mais, superar de modo definitivo o seu horizonte conceitual. Porém, sempre houve um “retorno a Marx”.1 Constantemente se desenvolveu uma nova necessidade de voltar à sua obra que, através da crítica à economia política, das formulações sobre a alienação ou das brilhantes páginas dos phamphlet políticos, exerce um fascínio irresistível sobre seguidores e opositores.
Não obstante, com o findar do século, tivesse sido decretado por unanimidade o seu esquecimento, inesperado, há alguns anos por essa parte, Marx se reapresentou sobre o palco da história. Na verdade, houve uma real e verdadeira retomada de interesse a seu respeito e, nas estantes de bibliotecas da Europa, Estados Unidos e Japão, os seus escritos têm sido ressuscitados cada vez com maior frequência.
A redescoberta de Marx baseia-se na sua persistente capacidade explicativa do presente, do qual ele permanece como instrumento indispensável para poder compreendê-lo e transformar. Diante da crise da sociedade capitalista e das profundas contradições que a atravessam, volta-se a questionar esse autor deixado de lado, rápido demais, depois de 1989. Assim, a afirmação de Jacques Derrida – “será um erro não ler, reler e discutir Marx”2 – que poucos anos atrás parecia uma provocação isolada, tornou-se cada vez mais compartilhada. Do fim dos anos 90, de fato, semanários, periódicos, emissoras de rádio e TV não fazem outra coisa senão discutir sobre o pensador mais atual dos nossos tempos: Karl Marx. O primeiro artigo que produziu certo eco nesta direção foi “The Return of Karl Marx”, publicado na revista americana The New Yorker.3 Depois foi a vez da BBC, que em 1999 conferia a Marx o cetro de maior pensador do milênio.
Alguns anos mais tarde, o bimestral do Nouvel Observateur foi inteiramente dedicado ao tema “Karl Marx – le penseur du troisieme millenaire?”4 E, pouco depois, a Alemanha pagou o seu tri- buto àquele que havia obrigado ao exílio por quarenta anos: em 2004, mais de 500 mil telespectadores da televisão nacional ZDF indicaram Marx como a terceira personalidade alemã de todos os tempos (primeiro, ali- ás, na categoria “atualidade”) e, durante as últimas eleições políticas, a conhecida revista Der Spiegel retratava-o na capa, com o título “Ein Gespent kehrt zurük” (Um fantasma voltou), com os dedos em sinal de vitória.5 Para completar essa curiosa coleção, há uma pesquisa feita em 2005 pelo canal de rádio BBC 04 que deu a Marx a palma de filósofo mais amado pelos ouvintes ingleses.
Também a literatura sobre Marx, abandonada quase completamente há 15 anos, dá sinais efusivos de retomada, e, ao lado do florescer de novos estudos significativos, despontam, em várias línguas, opúsculos de título Why read Marx today? Um consenso análogo atinge as revistas internacionais abertas às contribuições concernentes a Marx e ao mar- xismo, assim como voltaram a ser de moda convenções, cursos e seminá- rios universitários dedicados a esse autor. Além disso, ainda que timidamente ou de forma um pouco confusa, da América Latina ao movimento alter-mundialista, uma nova exigência de Marx chega também da es- fera política.
Mais uma vez, o texto marxiano que mormente suscitou o envolvimento de leitores e estudiosos foi o Manifesto do Partido Comunista. Em 1998, de fato, por ocasião do 150o aniversário de sua publicação, o Manifesto de Marx e Engels foi impresso em dezenas de novas edições em todos os cantos do planeta e celebrado não só como a mais formidável previ- são do desenvolvimento do capitalismo em escala mundial, mas tam- bém como o texto político mais lido na história da humanidade.6 Por esse motivo, pode ser interessante retomar os acontecimentos que acompanharam a sua primeira difusão na Itália.
II. Karl Marx: o menosprezo italiano
Na Itália, as teorias de Marx gozaram de extraordinária popularida- de. Inspirando partidos, organizações sindicais e movimentos sociais, influíram, como nenhuma outra, na transformação da vida política nacio- nal. Difundidas em todos os campos da ciência e da cultura mudaram, irreversivelmente, a sua abordagem e até mesmo o léxico. Concorrendo para a tomada de consciência da própria condição de classes subalter- nas, foram o principal instrumento teórico no processo de emancipação de homens e mulheres.
O nível de difusão que alcançaram pode ser comparado ao de pou- cos países. É mister perguntar-se, portanto, sobre a origem desta noto- riedade. Isto é, quando se falou pela primeira vez de Karl Marx? Quando apareceu nos jornais esse nome, com base nos primeiros escritos tradu- zidos? Quando a fama se propagou no imaginário coletivo de operários e militantes socialistas? E, sobretudo, de que maneira e em que circunstâncias se consolidou a afirmação do seu pensamento?
As primeiríssimas traduções dos escritos de Marx, quase completa- mente desconhecido durante as ações revolucionárias de 1848, apare- ceram somente na segunda metade dos anos 60. Todavia, foram pouco numerosas e relacionadas somente à Mensagem Inaugural e aos Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores.7 Para esse atraso, sem dúvida concorreu o isolamento de Marx e Engels da Itália, com a qual, não obstante o fascínio que nutriam pela sua história e cultura e o interesse demonstrado pela sua realidade, não mantiveram correspondência epistolar até o ano de 1860 e relações políticas efetivas antes de 1870.8
Um primeiro interesse pela figura de Marx floresceu somente por co- incidência da experiência revolucionária da Comuna de Paris. Ao “funda- dor e chefe geral da Internacional”,9 de fato, a imprensa nacional, assim como a miríade de folhetins operários existentes, dedicaram, em poucas semanas, flashes biográficos e a publicação de extratos de cartas e de resoluções políticas (entre essas, A guerra civil na França). Mesmo nessa circunstância, os escritos impressos – que, incluindo aqueles de Engels, chegaram ao número de 85 somente no biênio 1871-1872 – referiam-se exclusivamente a documentos da Internacional, testemunho de uma aten- ção inicialmente política e só posteriormente de caráter teórico.10 Além disso, em alguns jornais apareceram descrições fantasiosas que colabo- raram para conferir à sua imagem uma aura legendária: “Carlo Marx é um homem astuto e corajoso a toda prova. Viagens rápidas entre um e ou- tro Estado, contínuas transformações, fazem com que atire sobre si a vigilância de todos os espiões policiais da Europa”.11
A autoridade que começou a envolver o seu nome foi tão grande quanto genérica.12 Durante esse período, de fato, manuais de propagan- da difundiram as concepções de Marx – ou pelo menos aquelas presumi- das como tais – juntamente àquelas de Darwin e Spencer.13 O seu pensa- mento foi considerado sinônimo de legalismo14 ou de positivismo.15 As suas teorias foram, de maneira inverossímil, sintetizadas com aquelas de seus opostos como Fourier, Mazzini, Bastiat.16 A sua figura, aproximada – segundo os equívocos – àquela de Garibaldi17 ou de Schäffle.18
O interesse dirigido a Marx, além de permanecer assim tão aproxi- mativo, não se traduziu nem mesmo numa adesão às suas posições po- líticas. Entre os internacionalistas italianos – que no confronto entre Marx e Bakunin tomaram parte de maneira quase maciça por este último –, de fato, a sua elaboração permaneceu quase desconhecida e o conflito no seio da Internacional foi percebido mais como um confronto pessoal en- tre os dois do que propriamente como uma contenda teórica.19
Não obstante tudo isso, no decênio seguinte, marcado pela hegemonia do pensamento anárquico – que se impôs facilmente na realidade italiana caracterizada mais pela ausência do modelo de um moderno capitalismo industrial e pela conseqüente limitada consistência da classe operária, do que pela viva tradição conspirativa reforçada pela recente revolução no país20 –, os elementos teóricos de Marx foram-se afirmando lentamente nas filas do movimento operário.21 Aliás, paradoxal- mente, conheceram uma primeira divulgação exatamente através dos anarquistas, que compartilhavam completamente as teorias da auto- emancipação operária e da luta de classes, presentes nos Estatutos e nas Mensagens e Instruções da Internacional.22 A seguir, eles continua- ram a publicar Marx, muitas vezes polemizando o socialismo que fora verbosamente revolucionário, mas que na prática era legalista e revisionista. A mais importante iniciativa realizada foi, sem dúvida, a pu- blicação, em 1879, do compêndio do primeiro livro de O Capital, organiza- do por Carlo Cafiero. Foi a primeira ocasião em que, mesmo de maneira popularizada, os principais conceitos teóricos de Marx puderam começar a circular na Itália.
III. Os anos 80 e o “marxismo sem Marx”
Os escritos de Marx não foram traduzidos nem mesmo nos anos 80. Exceto por pouquíssimos artigos publicados pela imprensa socialista, as únicas obras publicadas foram de Engels (O Socialismo Utópico e o Socia- lismo Científico, em 1883, e A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, em 1885) e vieram à luz – em edições de reduzidíssima difusão – somente graças à tão obstinada quanto virtuosa iniciativa do socialista de Benavento, Pasquale Martignetti. Por outro lado, começaram a ocupar-se de Marx setores importantes da cultura oficial, que nutriram a respeito dele menores dificuldades do que aquelas manifestadas, ao contrário, no âmbito alemão.
Assim, por iniciativa dos mais importantes níveis editoriais e acadêmicos, a prestigiadíssima Biblioteca do Economista, a mesma que Marx tinha consultado muitas vezes no curso das suas pesquisas do British Museum, publicou, entre os anos de 1882 e 1884, separadamente, e em 1886, em um único volume, o primeiro livro de O Capital. Diante da demonstração da vacuidade do movimento italiano, Marx fora informado sobre essa iniciativa, que foi a única tradução da obra realizada na Itália até depois da Segunda Guerra Mundial, só casualmente e dois meses antes da morte.23 Engels, ao contrário, somente em 1893!24
Mesmo numa realidade ainda limitada, como aquela que se tentou até aqui brevemente descrever, a primeira circulação do marxismo pode ser datada justamente nesse período. Todavia, por causa do número reduzidíssimo de traduções dos escritos de Marx e do difícil acesso a eles, essa difusão quase nunca aconteceu através de fontes originais, mas de referências indiretas, citações de segunda mão, compêndios por obra da miríade de escritores-leitores ou auto-proclamados continuadores, surgidos da noite para o dia.25
Durante esses anos, desenvolveu-se um verdadeiro processo de osmose cultural, que atingiu não só as diversas concepções socialistas presentes no território, mas também ideologias que nada tinham a ver com o socialismo. Estudiosos, agitadores políticos e jornalistas forma- ram as próprias idéias hibridando o socialismo com todos os outros ins- trumentos teóricos de que dispunham.26 E se o marxismo conseguiu se afirmar rapidamente em relação a outras doutrinas, justamente em ra- zão da ausência de um socialismo autóctone, o êxito dessa homogeneização cultural foi o nascimento de um marxismo empobreci- do e falsificado.27
Um marxismo passe-partout. Sobretudo, um marxismo sem consciência de Marx, visto que os socialistas italianos que o tinham lido nos seus textos originais podiam, ainda, ser contados nos dedos.28
Ainda que elementar e impuro, determinista, e em função das contin- gências políticas, esse marxismo foi, de qualquer forma, capaz de confe- rir uma identidade ao movimento dos trabalhadores, para afirmarem-se no Partido dos Trabalhadores Italianos, constituído em 1892, e até mes- mo ampliar a própria hegemonia na cultura e na ciência italiana.29
Do Manifesto do Partido Comunista, até o fim dos anos 80, não há ain- da nenhum traço. Não obstante isso, ele exercerá, junto com o seu prin- cipal intérprete, Antônio Labriola, um papel importante no rompimento daquele marxismo adulterado que tinha, até então, caracterizado a rea- lidade italiana. Porém, antes de falar disso é necessário voltar um pouco.
IV. As primeiras publicações do Manifesto na Itália
O prólogo à primeira impressão do Manifesto do Partido Comunista anunciava a sua publicação “em inglês, francês, alemão, italiano, flamengo e dinamarquês”.30 Na verdade, esse propósito não foi realizado. Ou, como seria melhor afirmar, o Manifesto tornou-se um dos escritos mais difundi- dos na história da humanidade, mas não segundo os planos dos seus autores.
A primeira tentativa de tradução do Manifesto para o italiano e para o espanhol foi realizada em Paris, por Hermann Ewerbeck, membro dirigente da Liga dos Comunistas da capital francesa.31 Todavia, não obstante a distância de anos, e no Herr Vogt Marx apontasse erroneamente a existência de uma edição italiana,32 essa empresa nunca foi realizada. Do projeto inicial, a única tradução realizada foi a inglesa de 1850, precedida da sueca de 1848. Sucessivamente, em seguida àquela das re- voluções do biênio 1848-1849, o Manifesto foi esquecido. As únicas reimpressões, duas nos anos 50 e três nos anos 60, apareceram em língua alemã, e pelo aparecimento de novas traduções seria necessário esperar duas décadas. Em 1869, de fato, foi enviada para a tradução a edição russa e, em 1871, a sérvia. No mesmo período, em Nova Iorque, veio à luz a primeira versão inglesa publicada nos Estados Unidos (1871) e a primeira tradução francesa (1872). Ainda em 1872, saiu em Madri a primeira tradução espanhola, seguida, no ano seguinte, da portugue- sa, feita a partir daquela.33
Nessa época, na Itália, o Manifesto ainda era desconhecido. A sua primeira breve exposição, composta de resumos e trechos de texto, apa- receu somente em 1875, na obra de Vito Cusumano, Le scuole economiche della Germania in rapporto alla questione sociale. Lia-se nela: “do ponto de vista do proletariado este programa é tão importante quanto a Declara- ção dos Direitos do Homem para a burguesia: esse é um dos fatos impor- tantes do século XIX, um daqueles fatos que caracterizam, que dão nome e endereço a um século”.34 Posteriormente, as referências ao Manifesto foram pouco freqüentes. Porém, o escrito foi citado, em 1883, nos artigos que deram notícia sobre a morte de Marx. O folhetim socialista La Plebe falava dele como um “dos documentos fundamentais do socialismo con- temporâneo […] símbolo da maioria do proletariado socialista do ocidente e da América do Norte”.35 O quotidiano burguês Gazzetta Piemontese, ao contrário, apresentava Marx como o autor do “famoso Manifesto Comunista, que se tornou o lábaro do socialismo militante, o catecismo dos deserdados, o evangelho sob o qual votam, juram, combatem os operários alemães e a maior parte dos operários ingleses”.36 A despeito dessas apreciações, a sua impressão teve, porém, de esperar ainda mais.
Em 1885, depois de ter recebido uma cópia do Manifesto de Engels, Martignetti fez uma primeira tradução. Mas, por falta de dinheiro, a edição nunca foi publicada. A primeira tradução italiana apareceu, com mais de quarenta anos de atraso, somente em 1889, ano em que já tinham sido publicadas 21 edições em alemão, 12 em russo, 11 em francês, 8 em inglês, 4 em espanhol, 3 em dinamarquês (a primeira em 1884), 2 em sueco, e 1, respectivamente, em língua portuguesa, checa (1882), polonesa (1883), norueguesa (1886) e iídiche (1889). O texto italiano foi enviado para o prelo com o título de Manifesto dei socialisti redatto da Marx e Engels (Manifesto dos socialistas redigido por Marx e Engels), em dez fascículos entre agosto e novembro, no jornal democrático de Cremona L’Eco del Popolo. Essa versão, porém, distinguiu-se pela péssi- ma qualidade, em que faltavam os prefácios de Marx e Engels, a terceira seção (“Literatura socialista e comunista”) e diversas outras partes que foram omitidas ou resumidas. Além disso, a tradução de Leonida Bissolati, feita a partir da edição alemã de 1883 e confrontada com aquela france- sa de 1885, organizada por Laura Lafargue, simplificava as expressões mais complicadas. Portanto, mais que uma tradução, tratou-se da popularização de um escrito, com certo número de passagens textual- mente traduzidos.37
A segunda edição italiana, que foi a primeira editada em brochura, foi publicada em 1891. A tradução, realizada a partir da francesa de 1885 do jornal parisiense Le Socialiste, e o prefácio foram obra do anarquista Pietro Gori. O texto é marcado pela ausência do preâmbulo e pela presença de diversos erros. O editor Flaminio Fantuzzi, também próximo às posições anarquistas, advertiu Engels apenas superficialmente sobre os fatos e este, em uma carta a Martignetti, expressou o seu desconforto pelos “prefácios de desconhecidos tipo Gori”.38
A terceira tradução italiana saiu em 1892, em folhetim no periódico Lotta di Classe, de Milão. Essa versão, que se apresentava como a primei- ra e única tradução italiana do Manifesto, “e que não é uma traição”,39 foi feita por Pompeo Bettini a partir da edição alemã de 1883. Ainda que também apresentasse erros e simplificações de algumas passagens, so- bressaiu-se às outras, teve numerosas reedições até 1926 e deu início ao processo de formação da terminologia marxista na Itália.40 No ano seguinte, com algumas correções e melhoramentos de estilo e com a indicação de que “a versão completa [tinha sido] feita a partir da 5a edição alemã (Berlim, 1891)”,41 essa tradução apareceu em brochura, em mil cópias. Em 1896, houve a reimpressão de duas mil cópias. O texto continha os prefácios de 1872, 1883 e 1890, traduzidos por Filippo Turati, diretor de Critica Sociale, à época a principal revista do socialismo italiano, e o apropriado prefácio “Ao leitor italiano”, conseguido com êxi- to junto a Engels para a ocasião, a fim de distinguir a nova edição da- quelas que tinham-na precedido. O prefácio italiano foi o último escrito para o Manifesto por um de seus autores.
Nos anos seguintes foram publicadas duas outras edições que, ain- da que carentes da indicação do tradutor, retomavam pontualmente a versão de Bettini. A primeira – na qual faltava, porém, o prefácio – e a terceira edição foram realizadas para dar ao Manifesto uma edição popu- lar e barata. Ela foi promovida por ocasião do 1o de Maio de 1897, pela revista Era Nuova, e surgiu em Diano Marina (Ligúria) em oito mil cópias. A segunda, sem prefácio, em Firenze, pelo editor Nerbini, em 1901.
V. O Manifesto entre fins de Oitocentos e o fascismo
Nos anos 90, o processo de difusão dos escritos de Marx e Engels teve um grande progresso. A consolidação das estruturas editoriais, da- quele que tinha-se tornado o Partido Socialista Italiano, a obra realizada por diversos jornais e pequenos editores e a colaboração de Engels à Critica Sociale foram circunstâncias que concorreram para determinar um conhecimento maior da obra de Marx. Isso não bastou, porém, para de- ter o processo de alteração que acompanhava a sua divulgação. A esco- lha de combinar as concepções de Marx com as teorias mais disparata- das foi obra tanto daquele fenômeno denominado “socialismo catedráti- co” quanto do movimento operário, cujas contribuições teóricas, mesmo tendo-se tornado pouco consistentes, ainda se caracterizavam por um dificílimo conhecimento dos escritos de Marx.
Marx já gozava de indiscutível notoriedade, mas ainda era conside- rado um primus inter pares na multidão dos socialistas existentes.42 Sobretudo, fora colocado em circulação por péssimos intérpretes do seu pensamento. Tome-se o exemplo daquele que foi considerado “o mais socialista, o mais marxista […] dos economistas italianos”,43 Achille Loria, corretor e aperfeiçoador daquele Marx que ninguém conhecia suficien- temente para dizer em que tivesse sido melhorado. Já que é conhecida a sua descrição ilustrada por Engels no “Prefácio ao Livro III” de O Capi- tal – “indiscrição ilimitada, agilidade de enguia para escapar de situa- ções insustentáveis, heróico desdém aos golpes recebidos, prontidão em apropriar-se de produtos alheios”44 –, para melhor descrever a falsi- ficação sofrida por Marx, pode ser útil lembrar uma anedota contada, em 1896, por Benedetto Croce. Em 1867, em Napoli, por ocasião da constituição da primeira seção italiana da Internacional, um desconheci- do personagem estrangeiro, “muito alto e muito loiro, de modos pareci- dos com os dos antigos conspiradores e de fala misteriosa”, interveio para convalidar o nascimento do círculo.
Por muitos anos, um advogado napolitano, presente no encontro, continuou convicto de que “aquele homem alto e loiro tivesse sido Karl Marx”,45 e foi necessário um grande esforço para que se conseguisse convencê-lo do contrário. Vez que na Itália muitos conceitos marxistas foram introduzidos pelo “ilustre Loria”,46 pode-se concluir que o que fora inicialmente divulgado foi um Marx desnaturado, um Marx, também esse, “alto e loiro”.47
Tal realidade mudou somente graças à obra de Labriola, que primei- ro introduziu na Itália o pensamento marxista de maneira autêntica. Mais que ser interpretado, atualizado ou “completado” com outros autores, pode-se afirmar que, graças a ele, Marx foi revelado pela primeira vez.48 Esta empresa deu-se através dos Saggi sulla concezione materialistica della storia (Ensaios sobre a concepção materialista da história), publicados por Labriola entre 1895 e 1897. O primeiro desses, In memoria del Mani- festo dei comunisti (Em memória do Manifesto dos comunistas), consistia justamente em um estudo sobre a gênese do Manifesto que, posterior- mente à aprovação alcançada junto a Engels pouco antes da sua mor- te,49 tornou-se o seu mais importante comentário e a interpretação oficial da parte “marxista”.
Muitos dos limites da realidade italiana puderam assim ser enfrentados. Segundo Labriola, a revolução “não pode proceder a partir do tumulto de uma turba guiada por alguns, mas deve ser e será o resultado dos próprios proletários”.50 “O comunismo crítico [que para o filósofo napolitano era o nome mais apropriado para descrever as teorias de Marx e Engels] não fabrica as revoluções, não prepara as insurreições, não arma os tumultos […], enfim, não é um seminário em que se forme o estado maior dos capitães da revolução proletária; mas é somente a consciência de tal revolução”.51 O Manifesto, portanto, não é “o vademecum da revolução proletária”,52 mas o instrumento para desmascarar a ingenuidade do socialismo que se pensa possível “sem a revolução, ou se- ja, sem uma fundamental mutação da estrutura elementar e geral da sociedade”.53
Com Labriola, o movimento operário italiano teve, finalmente, um teórico capaz de, contemporaneamente, igualar-se aos níveis máximos da filosofia e do marxismo europeu. Todavia, o rigor de seu marxismo, problemático pelas imediatas circunstâncias políticas e crítico dos com- promissos teóricos, decretou também a sua desatualização.54
Encravada entre os dois séculos, de fato, a publicação de La filosofia di Marx (A filosofia de Marx), de Giovanni Gentile (livro marcado posterior- mente, por Lênin, como “digno de atenção”55), dos escritos de Croce que proclamavam a “morte do socialismo”56 e – no âmbito militar – dos valo- res de Francesco Saverio Merlino57 e de Antonio Graziadei,58 também ins- piraram na Itália o vento da “crise do marxismo”. Contudo, no Partido Socialista Italiano não havia, como na Alemanha, um marxismo ortodoxo e, na realidade, o embate foi travado entre dois “revisionismos”, um reformista e outro sindical-revolucionário.59
Nesse mesmo período, a partir de 1899 e até 1902, deu-se uma proliferação de traduções de Marx e Engels que forneceram ao leitor italiano boa parte das obras disponíveis à época. Foi nesse contexto que, em 1902, como apêndice à 3a edição do escrito de Labriola (Em memó- ria do Manifesto dos comunistas), apareceu uma nova tradução do Mani- festo, a última feita na Itália até o fim da Segunda Guerra Mundial. Essa – cuja paternidade foi dada por alguns a Labriola e, por outros, à sua mulher Rosalia Carolina De Sprenger – continha algumas inexatidões e omissões e foi retomada em poucas reedições do texto.
A versão mais utilizada até a segunda metade do pós-guerra foi, então, aquela de Bettini, reproduzida em numerosas reimpressões.
A uma primeira, de 1910, seguiram-se diversas, organizadas pela Sociedade Editora Avanti, que se tornou o principal veículo de propaganda do Partido Socialista. Particularmente duas, em 1914, das quais a segunda continha Os fundamentos do comunismo de Engels. Ainda entre 1914 e 1916 (reimpressa no biênio 1921-1922), foi inserida no primeiro tomo da edição das Obras de Marx e Engels, que, a despeito da confusão geral dominante, na Itália – como na Alemanha – foram reunidas, junto àque- las de Lassalle. Depois, em 1917, por duas vezes em 1918, tendo como apêndice os 14 pontos da Conferência de Kienthal e o manifesto da Con- ferência de Zimmerwald, em 1920 (com duas reimpressões em 1922) em uma tradução revista por Gustavo Sacerdote, e, enfim, em 1925. A essas edições Avanti, acrescentem-se outras sete reimpressões que aparece- ram, em editoras menores, entre 1920 e 1926.
Durante a primeira década do século, o marxismo se despediu da prática política quotidiana do Partido Socialista Italiano. Em um famoso debate parlamentar de 1911, de fato, o presidente do conselho, Giovanni Giolitti, afirmava: “o Partido Socialista moderou demais o seu programa. Karl Marx fora mandado para a geladeira”.60 Os comentários aos textos de Marx, que pouco tempo antes tinham invadido o mercado literário, arrefeceram. E, se se exclui o “retorno a Marx” dos estudos filosóficos de Rodolfo Mondolfo,61 além de outras poucas exceções, o mesmo se verifi- cou durante os anos 10. Quanto às iniciativas por obra de outras realida- des, o campo burguês havia há tempos celebrado a “dissolução do mar- xismo”, enquanto na Igreja Católica as condenações preconceituosas prevaleceram sobre as tentativas de análise.
Em 1922, irrompe a barbárie fascista. Em 1923, todos os exemplares do Manifesto foram retirados das bibliotecas públicas e das universida- des. Em 1924, todas as publicações de Marx e aquelas ligadas ao movi- mento operário foram queimadas.62 As leis “fascistíssimas” de 1926, en- fim, decretaram a dissolução dos partidos de oposição e deram início ao período mais trágico da história moderna italiana.
Se não se levam em consideração algumas edições datilografadas e mimeografadas, os poucos escritos de Marx publicados em língua italiana entre 1926 e 1943 apareceram no exterior (entre os quais se destacam duas versões do Manifesto impressas na França, em 1931 e 1939, e uma outra publicada em Moscou, em 1944, com uma nova tradução de Palmiro Togliatti). Únicas exceções a tal complô de silêncio foram três diferentes edições do Manifesto do Partido Comunista. Duas delas apareceram, “para uso de estudiosos” e com direito à consulta somente através de solicita- ção prévia, em 1934. A primeira, da coletânea Política e economia, que alinhava, ao lado de Marx, textos de Labriola, Loria, Pareto, Weber e Rimmel; a tradução era aquela de Bettini revisitada pelo organizador Robert Michels.63 A segunda, em Florença, na versão de Labriola, em um outro volume coletivo, Le carte dei diritti (As cartas dos direitos), primeiro tomo da coleção “Clássicos do liberalismo e do socialismo”.
E depois do último, em 1938, desta vez sob a organização de Croce, como apêndice a uma coleção de ensaios sobre Labriola, intitulada La concezione materialistica della storia (A concepção materialista da história), na tradu- ção feita por ele mesmo. O volume incluía também um ensaio de Croce, que se tornou famoso, de título bastante explícito, Come nacque e come morì il marxismo teorico in Italia (1895-1900) (Como nasceu e como mor- reu o marxismo teórico na Itália (1895-1900)). O filósofo idealista, po- rém, se enganava. O marxismo italiano não estava morto, mas somente aprisionado nos Quaderni del cárcere (Cadernos do cárcere), de Antonio Gramsci,64 que logo mostrariam todo o seu valor teórico e político.
Com a liberação do fascismo, o Manifesto recomeçou a aparecer em diversas edições. Federações provinciais do Partido Comunista Italiano, iniciativas e editoras pequenas e particulares na Itália meridional já libe- rada deram ao texto de Marx e Engels um novo fôlego. Três edições apa- recerem em 1943 e oito, em 1944. E assim paulatinamente nos anos su- sucessivos: das nove edições publicadas no fim da guerra, em 1945, à façanha de 1948, por ocasião do centenário.
VI. Conclusão
Repercorrendo a história da edição italiana do Manifesto do Partido Comunista, fica evidente o enorme atraso com que foi publicada. Contra- riamente a muitos países em que o Manifesto foi o primeiro escrito de Marx e Engels a ser traduzido, na Itália apareceu só depois de outras obras.65 Também a sua influência política foi modesta e ele nunca incidiu diretamente sobre os principais documentos do movimento operário. Tanto menos foi determinante na formação da consciência política dos dirigen- tes socialistas. Todavia, foi de grande relevância para os estudiosos (veja- se o caso de Labriola) e, através de suas edições, teve um papel impor- tante entre os militantes, até se tornar a referência teórica privilegiada.
Mais de 150 anos de sua publicação, estudado por incalculáveis exegetas, opositores e seguidores de Marx, o Manifesto atravessou as mais variadas estações e foi lido nos modos mais diversos. Pedra angu- lar do “socialismo científico” ou plágio do Manifeste de la démocratie, de Victor Considerant; texto incendiário culpado de ter fomentado o ódio entre as classes do mundo ou símbolo da libertação do movimento ope- rário internacional; clássico do passado ou obra de vanguarda da reali- dade moderna da “globalização capitalista”. Qualquer que seja a inter- pretação considerada, uma coisa é certa: pouquíssimos outros escritos na história podem vangloriar-se de análoga vitalidade e difusão. Ainda hoje, de fato, o Manifesto continua a ser impresso e a ser assunto seja na América Latina como na China, nos Estados Unidos como na Itália e em toda a Europa.
Se a perpétua juventude de um escrito está na sua capacidade de saber envelhecer, ou seja, de ser capaz de estimular novos pensamen- tos, pode-se afirmar que o Manifesto possui, sem dúvida, essa virtude.
Marcello
Musto