A guerra e a esquerda: considerações sobre uma história conturbada

As causas econômicas da guerra

Enquanto a ciência política investigou as motivações ideológicas, políticas, econômicas e até mesmo psicológicas que conduzem à guerra, a teoria socialista forneceu uma de suas contribuições mais convincentes ao destacar o nexo entre o desenvolvimento do capitalismo e a proliferação bélica. Nos debates da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1872), César de Paepe, um de seus principais dirigentes, formulou aquela que viria a ser a posição clássica do movimento dos trabalhadores sobre a questão, a saber, que as guerras são inevitáveis sob o regime de produção capitalista. Na sociedade contemporânea, elas não são provocadas pelas ambições de monarcas ou de outros indivíduos, mas pelo modelo socioeconômico dominante (cf. De Paepe, 2014a; 2014b). O movimento socialista também mostrou quais setores da população eram mais atingidos por suas consequências nefastas. No congresso da Internacional realizado em 1868, os delegados aprovaram uma moção que conclamava os tra-balhadores a buscar “a abolição final de todas as guerras” (cf. Freymond, 1962, p.402) [1] pois seriam eles que pagariam – economicamente ou com seu próprio sangue, estivessem entre os vencedores ou os derrotados – pelas decisões de suas classes dominantes e dos governos que as representam. Para o movimento dos trabalhadores, a lição civilizatória veio da crença de que qualquer guerra deve ser considerada “uma guerra civil” (Freymond, 1962, p.403; cf. Musto, 2014b, p.49), um confronto brutal entre trabalhadores que os privava dos meios necessários para sua sobrevivência. Eles precisavam agir de forma resoluta contra qualquer guerra por meio da resistência ao recrutamento e de greves. O internacionalismo tornou–se assim um ponto cardeal da sociedade futura, que, com o fim do capitalismo e da rivalidade entre os Estados burgueses no mercado mundial, teria eliminado as principais causas subjacentes da guerra.Entre os precursores do socialismo, Claude Henri de Saint-Simon adotou uma posição categórica contrária tanto à guerra quanto ao conflito social, considerando ambos obstáculos ao progresso fundamental da produção industrial. Karl Marx não desenvolveu, em nenhum de seus escritos, suas visões – fragmentárias e às vezes contraditórias – sobre a guerra, nem apresentou diretrizes para o posiciona-mento correto a ser adotado em relação a ela. Ao escolher entre campos opostos, sua única constante era a oposição à Rússia czarista, vista por ele como o posto avançado da contrarrevolução e uma das principais barreiras à emancipação da classe trabalhadora. Em O capital (1867), argumentou que a violência era uma força econômica, “a parteira de toda velha sociedade grávida de uma nova” (Marx, 1996, p.739). Mas não pensava na guerra como um atalho crucial para a transfor-mação revolucionária da sociedade, e um dos principais objetivos de sua atividade política era engajar os trabalhadores no princípio da solidariedade internacional. Conforme também argumentou Friedrich Engels, eles deveriam agir de modo resoluto em países individuais contra o amortecimento da luta de classes que a invenção propagandística de um inimigo externo ameaçava provocar na eclosão de qualquer guerra. Em diversas cartas endereçadas aos líderes do movimento dos trabalhadores, Engels destacou o poder ideológico da armadilha patriótica e o atraso da revolução proletária resultante de ondas de chauvinismo. Além disso, em Anti-Dühring (1878), após uma análise dos efeitos de armamentos cada vez mais mortíferos, ele declarou que a tarefa do socialismo era “explodir o militarismo e todos os exércitos permanentes” (Engels, 1987, p.158).A guerra era uma questão tão importante para Engels que ele dedicou um de seus últimos escritos a ela. Em “A Europa pode se desarmar?” (1893), observou que, nos 25 anos prévios, todas as grandes potências tentaram superar seus rivais militarmente e em termos de preparativos de guerra. Isto havia envolvido níveis sem precedentes de produção de armas e aproximou o Velho Continente de “uma guerra de destruição como o mundo nunca viu” (Engels, 1990, p.372). Segundo o coautor do Manifesto do Partido Comunista (1848), “o sistema de exércitos permanentes foi levado a tais extremos em toda a Europa que deve trazer a ruína econômica dos povos por causa do fardo militar, ou então degenerar em uma guerra geral de extermínio”. Em sua análise, Engels não se esqueceu de sublinhar que os exércitos permanentes eram mantidos principalmente para fins políticos internos, assim como para militares externos. Seu propósito era “fornecer proteção antes contra o inimigo interno do que contra o externo”, consolidando as forças para reprimir o proletariado e as lutas dos trabalhadores. Uma vez que as camadas populares, por meio de impostos e do fornecimento de tropas ao Estado, pagavam mais do que ninguém os custos da guerra, o movimento dos trabalhadores deveria lutar pela “redução gradual do tempo de serviço [militar] por tratado internacional” e pelo desarmamento como a única “garantia de paz” (Engels, 1990, p.371) eficaz.

Testes e colapso
Não tardou muito para que um debate teórico travado em tempos de paz se transformasse na principal questão política da época, quando o movimento dos trabalhadores teve que enfrentar situações reais. Inicialmente, seus representan-tes foram contrários a qualquer apoio à guerra. No conflito franco-prussiano de 1870 (que precedeu a Comuna de Paris), os delegados social-democratas Wilhelm Liebknecht e August Bebel condenaram os objetivos anexionistas da Alemanha de Bismarck e votaram contra os créditos de guerra. Sua decisão de “rejeitar o projeto de lei de financiamento suplementar para estender a guerra” (apud Pelz, 2016, p.50) rendeu-lhes uma sentença de dois anos de prisão por alta traição, mas ajudou a mostrar à classe trabalhadora uma maneira alternativa de responder à crise.À medida que as grandes potências europeias mantinham sua expansão impe-rialista, a controvérsia sobre a guerra adquiria um peso cada vez maior nos debates da Segunda Internacional (1889-1916). Uma resolução adotada em seu congresso de fundação consagrou a paz como “condição indispensável de toda e qualquer emancipação dos trabalhadores” (apud Dominick, 1982, p.343). A suposta política de paz da burguesia foi ridicularizada e caracterizada como uma política de “paz armada” e, em 1895, Jean Jaurès, líder do Partido Socialista Francês (SFIO), fez um discurso no parlamento no qual notabilizou resumidamente as apreensões da esquerda: “sua sociedade violenta e caótica, mesmo quando quer a paz, mesmo quando está em estado de aparente repouso, ainda carrega em si a guerra, assim como uma nuvem adormecida carrega uma tempestade” (Jaurès, 1982, p.32).À medida que a Weltpolitik – a política agressiva da Alemanha Imperial para ampliar seu poder na arena internacional – mudou o cenário geopolítico, os princípios antimilitaristas deitaram raízes mais profundas no movimento dos trabalhadores e influenciaram as discussões sobre os conflitos armados. A guerra não era mais vista somente como uma abertura para oportunidades revolucionárias e uma aceleração do colapso do sistema (uma ideia da esquerda desde a Guerra Revolucionária de 1792) [2] Ela era vista agora como um perigo em razão de suas graves consequências para o proletariado na forma de fome, penúria e desemprego. Ela representava assim uma séria ameaça para as forças progressistas; conforme escreveu Karl Kautsky em A Revolução Social (1902), em caso de guerra, estas seriam “encarregadas de pesadas tarefas que não lhes são essenciais” (Kautsky, 1903, p.77), tarefas que levariam a vitória final a ficar mais distante, em vez de aproximá-la.A resolução “Sobre Militarismo e Conflitos Internacionais”, adotada pela Segunda Internacional em seu Congresso de Stuttgart em 1907, recapitulou todos os pontos principais que se haviam tornado patrimônio comum do movimento dos trabalhadores, entre eles: um voto contrário aos orçamentos que aumentavam os gastos militares, antipatia por exércitos permanentes e preferência por um siste-ma de milícias populares e apoio ao plano de criar tribunais de arbitragem para resolver pacificamente os conflitos internacionais. Isso excluiu o recurso a greves gerais contra qualquer tipo de guerra, conforme proposto por Gustave Hervé, uma vez que a maioria dos presentes considerou a ideia muito radical e maniqueísta. A resolução terminou com uma emenda redigida por Rosa Luxemburgo, Vladimir Lênin e Yulii Martov. Ela afirmava que, “no caso de eclosão de uma guerra […], é dever [dos socialistas] intervir em favor de seu término célere e, por meio de todos os seus poderes, valer-se da crise econômica e política criada pela guerra, incitar as massas e, assim, acelerar o declínio do domínio de classe capitalista” (apud Lênin et al., 1972, p.80). No entanto, como isso não obrigava o Partido Social-democrata da Alemanha (SPD) a fazer qualquer mudança em sua linha política, seus representantes também votaram a favor dela. O texto, conforme alterado, foi o último documento sobre a guerra que obteve o apoio unânime da Segunda Internacional.Uma competição mais intensa entre os Estados capitalistas no mercado mundial, juntamente com a eclosão de diversos conflitos internacionais, tornou o quadro geral ainda mais alarmante. A publicação de O Novo Exército (1911), de Jaurès, estimulou a discussão de outro tema central do período: a distinção entre guerras ofensivas e defensivas e a posição a ser adotada em relação a estas, inclusive nos casos em que a independência de um país estivesse ameaçada. Para Jaurès, a única tarefa do exército deveria ser defender a nação contra qualquer agressão ofensiva ou qualquer agressor que não aceitasse a resolução da disputa por mediação. Toda ação militar que se enquadra nesta categoria deveria ser considerada legítima. A crítica perspicaz de Luxemburgo a essa posição apontou que “fenômenos históricos como as guerras modernas não podem ser medidos com o critério de ‘justiça’, ou por meio de um esquema sobre o papel da defesa e da agressão” (Luxemburgo, 1911). Em sua visão, era necessário ter em mente a dificuldade de se estabelecer se uma guerra era realmente ofensiva ou defensiva, ou se o Estado que a iniciou havia deliberadamente decidido atacar ou se havia sido forçado a fazê-lo por causa dos estratagemas adotados pelo país antagônico. Luxemburgo pensava, portanto, que a distinção deveria ser descartada e criticou ainda a ideia da “nação armada” de Jaurès, com o argumento de que, no limite, ela tendia a fomentar a militarização crescente da sociedade.À medida que os anos passaram, a Segunda Internacional comprometeu-se cada vez menos com uma política de ação em prol da paz. Sua oposição ao rear-mamento e aos preparativos de guerra era deveras débil e uma ala cada vez mais moderada e legalista do SPD trocou seu apoio a créditos de guerra – e depois até mesmo à expansão colonial – em troca da concessão de maiores liberdades políti-cas na Alemanha. Líderes importantes e teóricos eminentes como Gustav Noske, Henry Hyndman e Arturo Labriola foram os primeiros a adotar estas posições. Posteriormente, a maioria dos social-democratas alemães, socialistas franceses, líderes do Partido Trabalhista britânico e de outros reformistas europeus acabaria por apoiar a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Este rumo teve consequên-cias desastrosas. Com a ideia de que os “benefícios do progresso” não deveriam ser monopolizados pelos capitalistas, o movimento dos trabalhadores passou a partilhar dos objetivos expansionistas das classes dominantes e foi inundado pela ideologia nacionalista. A Segunda Internacional mostrou-se completamente impotente diante da guerra, fracassando em um de seus principais objetivos: a preservação da paz.Lênin e outros delegados da conferência de Zimmerwald (1915) – incluindo Leon Trotsky, que redigiu o manifesto final – previram que “por décadas, os gastos com a guerra absorverão as melhores energias dos povos, solapando as melho-rias sociais e impedindo qualquer progresso”. Em sua visão, a guerra revelava a “forma nua do capitalismo moderno, que se tornou irreconciliável não apenas com os interesses das massas trabalhadoras […], mas também com as condições básicas da existência comunal humana” (Trotsky, 1915). Apenas uma minoria no movimento dos trabalhadores prestou atenção na advertência, assim como ocorreu com o chamado a todos os trabalhadores europeus na Conferência de Kienthal (1916): “Seus governos e seus jornais dizem que a guerra deve continuar para matar o militarismo. Eles estão enganando vocês! A guerra nunca matou a guerra. Na verdade, ela desperta sentimentos e desejos de vingança. Desta forma, marcando-te para o sacrifício, eles te encerram em um círculo infernal”. Finalmente rompendo com a abordagem do Congresso de Stuttgart, que havia reivindicado tribunais internacionais de arbitragem, o documento final de Kienthal declarava que “as ilusões do pacifismo burguês” (Lênin, 1977, p.371) não interromperiam a espiral da guerra, mas ajudariam a preservar o sistema socioeconômico exis-tente. A única maneira de prevenir conflitos militares futuros era pela conquista do poder político e deposição da propriedade capitalista pelas massas populares.Rosa Luxemburgo e Vladimir Lênin foram os dois mais vigorosos opositores da guerra. Luxemburgo ampliou a compreensão teórica da esquerda e mostrou como o militarismo era uma vértebra central do Estado. [3] Demonstrando uma convicção e eficácia com poucos paralelos entre outros líderes comunistas, ela defendeu que o mote “guerra contra a guerra!” deveria tornar-se “a pedra angular da política da classe trabalhadora”. Conforme escreveu em Teses sobre as tarefas da social-democracia (1915), a Segunda Internacional havia implodido porque fracassou em “estabelecer uma tática e ação comum do proletariado em todos os países”. A partir de então, o “objetivo principal” do proletariado deveria ser, portanto, “combater o imperialismo e prevenir as guerras, tanto na paz quanto em guerra” (Luxemburgo, 1915).Em Socialismo e Guerra (1915) e muitos outros escritos durante a Primeira Guerra Mundial, o grande mérito de Lênin foi identificar duas questões funda-mentais. A primeira dizia respeito à “falsificação histórica” em curso sempre que a burguesia tentava atribuir um “senso progressista de libertação nacional” ao que, na realidade, eram guerras de “pilhagem” (Lênin, 1971, p.299-300), travadas com o objetivo único de decidir quais dos beligerantes oprimiriam desta vez a maior parte dos povos estrangeiros e ampliariam as desigualdades do capitalismo. A se-gunda, ao mascaramento das contradições realizado pelos reformistas sociais – ou “social-chauvinistas” (Lênin, 1971, p.306), como ele os chamava – que acabaram endossando as justificativas para a guerra a despeito de a terem definido como uma atividade “criminosa” nas resoluções adotadas pela Segunda Internacional. Por trás de sua pretensão de “defender a pátria” estava o direito que certas grandes potências haviam outorgado a si mesmas de “pilhar as colônias e oprimir os povos estrangei-ros”. As guerras não foram travadas para salvaguardar “a existência das nações”, mas “para defender os privilégios, a dominação, a pilhagem e a violência” das várias “burguesias imperialistas” (Lênin, 1971, p.307). Os socialistas que haviam capitulado ao patriotismo tinham substituído a luta de classes por uma reivindicação das “migalhas dos lucros obtidos por sua burguesia nacional por meio da pilhagem de outros países”. Por conseguinte, Lênin era a favor de “guerras defensivas” – não a defesa nacional dos países europeus à Jaurès, mas as “guerras justas” de “povos oprimidos e subjugados” que haviam sido “saqueados e privados de seus direitos” pelas “grandes potências escravistas” (Lênin, 1971, p.314). A tese mais celebrada deste panfleto – a de que os revolucionários deveriam procurar “transformar a guerra imperialista em guerra civil” (Lênin, 1971, p.315) [4] – implicava que aqueles que realmente desejavam uma “paz democrática duradoura” deveriam travar uma “guerra civil contra seus governos e a burguesia” (Lênin, 1971, p.316). [5] Lênin estava convencido de algo que a história posterior mostraria ser impreciso, a saber, de que qualquer luta de classes travada consistentemente em tempos de guerra criaria “inevitavelmente” um espírito revolucionário entre as massas.

Linhas de demarcação

A Primeira Guerra Mundial produziu fissuras não apenas no interior da Se-gunda Internacional, mas também no movimento anarquista. Em artigo publicado pouco após a eclosão do conflito, Kropotkin escreveu que “a tarefa de qualquer pessoa que tenha apreço pela ideia de progresso humano é esmagar a invasão alemã na Europa Ocidental” (Kropotkin, 1914, p.76-77). Esta declaração, vista por muitos como um abandono dos princípios pelos quais lutou sua vida toda, foi uma tentativa de ir além do slogan “greve geral contra a guerra” – que havia passado desapercebido pelas massas trabalhadoras – e de evitar a regressão geral da política europeia que resultaria de uma vitória alemã. Na visão de Kropotkin, se os antimilitaristas ficassem inertes, eles beneficiariam indiretamente os planos de conquista dos invasores e o obstáculo resultante seria ainda mais difícil de ser superado por aqueles que lutavam por uma revolução social.Em uma réplica a Kropotkin, o anarquista italiano Errico Malatesta argumentou que, embora não fosse um pacifista e considerasse legítimo pegar em armas em uma guerra de libertação, o mundo não era – conforme declarava a propaganda burguesa – uma luta “pelo bem geral contra o inimigo comum” da democracia e sim outro exemplo de subjugação das massas trabalhadoras pela classe dominante. Ele estava ciente de que “uma vitória alemã certamente representaria o triunfo do militarismo, mas também que um triunfo dos aliados significaria a dominação russo-britânica na Europa e na Ásia” (Malatesta, 1993, p.230).No Manifesto dos Dezesseis (1916), Kropotkin sustentou a necessidade de “resistir a um agressor que representa a destruição de todas as nossas esperanças de libertação” (Kropotkin et al., 1916). Uma vitória da Tríplice Entente contra a Alemanha seria o mal menor, solapando em menor grau as liberdades existentes. De outro lado, Malatesta e seus companheiros signatários do Manifesto antibélico da Internacional Anarquista (1915) declararam: “Não é possível distinguir entre guerras ofensivas e guerras defensivas”. Além disso, eles acrescentaram que “nenhum dos beligerantes têm direito a reivindicar a civilização, assim como nenhum deles têm o direito de alegar legítima autodefesa” (Malatesta et al., 1998, p.388). A Primeira Guerra Mundial, insistiram eles, era mais um episódio do conflito entre capitalistas de várias potências imperialistas, travado às custas da classe trabalhadora. Malatesta, Emma Goldman, Ferdinand Nieuwenhuis e a grande maioria do movimento anarquista estavam convencidos de que apoiar os governos burgueses seria um erro imperdoável. Ao contrário, sem hesitações, eles se ativeram ao slogan “nenhum homem e nenhum centavo para o exército”, rejeitando decididamente até mesmo um apoio indireto à guerra.As posições em relação à guerra também suscitaram debates no movimento feminista. A necessidade de substituir os homens recrutados em empregos que há muito haviam sido monopólio masculino – por um salário muito inferior, em condições de superexploração – incentivou o espraiamento de uma ideologia chauvinista em parcela considerável do movimento sufragista recém-nascido. Algumas de suas líderes chegaram a ponto de realizar petições de leis permitindo o alistamento de mulheres nas forças armadas. A exposição de governos fraudu-lentos – que, ao evocar o inimigo às portas, usavam a guerra para reverter reformas sociais fundamentais – foi uma das conquistas mais importantes das principais lideranças comunistas femininas da época. Clara Zetkin, Alexandra Kollontai, Syl-via Pankhurst e, claro, Rosa Luxemburgo foram algumas das primeiras a embarcar com lucidez e coragem no caminho que mostraria às gerações futuras como a luta contra o militarismo era essencial à luta contra o patriarcado. Posteriormente, a rejeição da guerra tornou-se elemento característico do Dia Internacional da Mu-lher e a oposição aos orçamentos de guerra na eclosão de qualquer novo conflito figurou com destaque em muitas campanhas do movimento feminista internacional.

O fim não justifica os meios e os meios errados prejudicam o fim

A profunda cisão entre revolucionários e reformistas, que se ampliou a um abismo estratégico após o nascimento da União Soviética, [6] e o crescimento do dogmatismo ideológico nos anos 1920 e 1930 eliminaram qualquer aliança possível contra o militarismo entre a Internacional Comunista (1919-1943) e os partidos social-democratas e socialistas europeus. [7] Tendo apoiado a guerra, os partidos que compunham a Internacional dos Trabalhadores e a Internacional Socialista (1923-1940) perderam todo o crédito aos olhos dos comunistas. A ideia leninista de “transformar a guerra imperialista em guerra civil” ainda tinha força em Mos-cou, onde as lideranças políticas e teóricas pensavam que um “novo 1914” era inevitável. Em ambos os lados, então, falava-se mais sobre o que fazer se uma nova guerra eclodisse e como prevenir seu início. Os slogans e declarações de princípios diferiam substantivamente daquilo que se esperava ocorrer e daquilo que se tornou então ação política. Entre as vozes críticas no campo comunista estavam Nikolai Bukharin, defensor da palavra de ordem “luta pela paz” e, entre os líderes russos, um dos mais convictos de que se tratava “de um dos assuntos centrais do mundo contemporâneo”; e Georgi Dimitrov, que argumentava que nem todas as grandes potências eram igualmente responsáveis pela ameaça de guerra e que era favorável a uma aproximação com os partidos reformistas para construir uma frente popular ampla contra os conflitos bélicos. Ambas as visões contrastavam com a ladainha da ortodoxia soviética, que, longe de atualizar a análise teórica, repetia que o perigo da guerra era inerente, de modo equânime e sem distinção, a todas as potências imperialistas.A visão de Mao Tsé-Tung sobre o assunto era muito distinta. À frente do movimento de libertação contra a invasão japonesa, escreveu, em A guerra prolongada (1938), que “guerras justas” (Tsé-Tung, 1966, p.15) – das quais os comunistas deveriam participar ativamente – “são dotadas de poder tremendo, que pode transformar muitas coisas ou abrir o caminho para sua transformação” (Tsé-Tung, 1966, p.26-27). A estratégia proposta por Mao, portanto, era “contra-por guerra justa à guerra injusta” (Tsé-Tung, 1966, p.53), e, além disso, “insistir na guerra até que seu objetivo político [seja] atingido”. Argumentos a favor da “onipotência da guerra revolucionária” são recorrentes em Problemas da guerra e da estratégia (1938), livro no qual argumenta que “apenas com armas pode o mundo inteiro ser transformado” (Tsé-Tung, 1965, p.219) e que “a tomada de poder pela força armada, a resolução do problema pela guerra, é a tarefa central e a forma mais elevada de revolução” (Tsé-Tung, 1965, p.225).Na Europa, a escalada de violência na frente nazifascista, tanto no âmbito doméstico como no exterior, e a eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) criaram um cenário ainda mais nefasto do que a guerra de 1914-18. Após o ataque das tropas de Hitler à União Soviética em 1941, a Grande Guerra Patriótica, que terminou com a derrota do nazismo, tornou-se um elemento tão central na unidade nacional russa que sobreviveu à queda do Muro de Berlim e dura até nossos dias.Com a divisão do mundo em dois blocos no pós-guerra, Joseph Stálin ensinou que a principal tarefa do movimento comunista internacional era salvaguardar a União Soviética. A criação de uma zona tampão de oito países da Europa do Leste 18 • Crítica Marxista, n.55, p.9-25, 2022.(sete, após a saída da Iugoslávia) foi um pilar central desta política. No mesmo período, a Doutrina Truman marcou o advento de um novo tipo de guerra: a Guerra Fria. Em seu apoio às forças anticomunistas na Grécia, no Plano Marshall (1948) e na criação da Otan (1949), os Estados Unidos da América contribuíram para evitar o avanço das forças progressistas na Europa Ocidental. A União Soviética respondeu com o Pacto de Varsóvia (1955). Essa configuração levou a uma enorme corrida armamentista, que, a despeito da memória recente de Hiroshima e Naga-saki, também envolveu a proliferação de testes de bombas nucleares.A partir de 1961, sob a liderança de Nikita Khrushchev, a União Soviética iniciou um novo curso político que veio a ser conhecido como “coexistência pa-cífica”. Esta guinada, com ênfase na não interferência e no respeito à soberania nacional, bem como na cooperação econômica com países capitalistas, suposta-mente evitaria o perigo de uma terceira guerra mundial (que a crise dos mísseis cubana mostrou ser uma possibilidade real em 1962) e sustentaria o argumento de que a guerra não era inevitável. No entanto, esta tentativa de cooperação cons-trutiva foi direcionada apenas para os EUA, não para os países do “socialismo realmente existente”. Em 1956, a União Soviética já havia esmagado uma revolta na Hungria, e os partidos comunistas da Europa Ocidental não condenaram a intervenção militar; ao contrário, justificaram-na em nome da proteção do bloco socialista. Palmiro Togliatti, por exemplo, o secretário do Partido Comunista Ita-liano, declarou: “Nós estamos do nosso lado mesmo quando ele comete um erro” (Togliatti apud Vittoria, 2015, p.219). A maioria daqueles que partilhava dessa posição arrependeu-se amargamente nos anos futuros, quando compreendeu os efeitos devastadores da operação soviética.Eventos semelhantes ocorreram no auge da coexistência pacífica, em 1968, na Tchecoslováquia. Confrontado com as demandas de democratização e des-centralização econômica durante a Primavera de Praga, o Politburo do Partido Comunista da União Soviética decidiu por unanimidade enviar meio milhão de soldados e milhares de tanques ao país. No congresso do Partido Operário Uni-ficado Polonês em 1968, Leonid Brezhnev explicou a ação referindo-se ao que chamou de “soberania limitada” dos países do Pacto de Varsóvia: “Quando forças hostis ao socialismo tentam direcionar o desenvolvimento de algum país socialista para o capitalismo, isto se torna não apenas um problema do país em questão, mas um problema e uma preocupação comum a todos os países socialistas”. De acordo com essa lógica antidemocrática, a definição do que era “socialismo” ou não, naturalmente, cabia à decisão arbitrária dos líderes soviéticos. Mas, desta vez, os críticos da esquerda foram mais enérgicos e chegaram a representar a maioria. Embora a desaprovação em relação à ação soviética tenha sido expressa não apenas pelos movimentos da Nova Esquerda, como também pela maioria dos partidos comunistas, incluindo o chinês, os russos não recuaram e levaram a cabo um processo que chamaram de “normalização”. A União Soviética continuou a destinar uma parte considerável de seus recursos econômicos para gastos militares, o que ajudou a reforçar uma cultura autoritária na sociedade. Deste modo, ela perdeu para sempre a boa vontade do movimento pacifista, que se tornara ainda maior com as extraordinárias mobilizações contra a guerra do Vietnã.Uma das guerras mais importantes da década seguinte começou com a invasão soviética do Afeganistão. Em 1979, o Exército Vermelho voltou a ser um instru-mento importante da política externa de Moscou, que continuava a reivindicar o direito de intervir no que descreveu como sua própria “zona de segurança”. A decisão infeliz transformou-se em uma aventura exaustiva que se estendeu por mais de dez anos, gerando um grande número de mortes e criando milhões de refugiados. Nessa ocasião, o movimento comunista internacional foi muito menos hesitante do que em relação às invasões soviéticas da Hungria e da Tchecoslová-quia. No entanto, esta nova guerra revelou ainda mais claramente à opinião pública internacional a cisão entre o “socialismo realmente existente” e uma alternativa política baseada na paz e na oposição ao militarismo.Tomadas como um todo, essas intervenções militares não apenas dificultaram uma redução geral das armas, mas serviram para desacreditar e enfraquecer o socialismo globalmente. A União Soviética era cada vez mais vista como uma potência imperial agindo de maneira não muito diferente dos Estados Unidos, que, desde o início da Guerra Fria, apoiaram golpes de Estado de modo mais ou menos secreto e ajudaram a depor governos democraticamente eleitos em mais de vinte países ao redor do mundo. Por fim, as “guerras socialistas” de 1977-1979 entre Camboja e Vietnã e China e Vietnã, tendo o conflito sino-soviético como pano de fundo, dissiparam qualquer prerrogativa da ideologia “marxista-leninista” (já distante das fundações originais erigidas por Marx e Engels) ao atribuir a guerra exclusivamente aos desequilíbrios econômicos do capitalismo.

Ser de esquerda é ser contra a guerra

O fim da Guerra Fria não atenuou a quantidade de interferência nos assuntos de outros países, nem aumentou a liberdade de cada povo escolher o regime político sob o qual vive. As inúmeras guerras – mesmo sem mandato da ONU e definidas, absurdamente, como “humanitárias” – realizadas pelos EUA nos últimos 25 anos, às quais se devem somar novas formas de conflito, sanções ilegais e doutrinação política, econômica e midiática, demonstram que a divisão bipolar do mundo entre duas superpotências não deu lugar à era de liberdade e progresso prometida pelo mantra neoliberal da “Nova Ordem Mundial”. Neste contexto, muitas forças políticas que antes reivindicavam os valores da esquerda envolveram-se em di-versas guerras. Do Kosovo ao Iraque e ao Afeganistão – para mencionar apenas as principais guerras travadas pela Otan desde a queda do Muro de Berlim –, estas forças expressaram seu apoio à intervenção armada e tornaram-se cada vez menos distinguíveis da direita.A guerra russo-ucraniana voltou a colocar a esquerda diante do dilema de como reagir quando a soberania de um país está sob ataque. A ausência de condenação da invasão da Ucrânia pela Rússia é um erro político do governo da Venezuela e torna menos críveis as denúncias de possíveis atos futuros de agressão cometi-dos pelos Estados Unidos. É verdade que, conforme escreveu Marx a Ferdinand Lassalle em 1860, “em política externa, há pouca vantagem em se usar palavras de ordem como ‘reacionário’ e ‘revolucionário’” – aquilo que é “subjetivamente reacionário [pode revelar-se] objetivamente revolucionário na política externa”. Mas as forças de esquerda deveriam ter aprendido com o século XX que as alianças “com o inimigo do meu inimigo” (Marx; Engels, 1985, p.154; cf. Musto, 2018, p.132) levam muitas vezes a acordos contraproducentes, especialmente quando a frente progressista é politicamente fraca e teoricamente confusa e carece do apoio de mobilizações de massa, como em nossos tempos.Recordando as palavras de Lênin em A revolução socialista e o direito das nações à autodeterminação: “o fato de que a luta pela libertação nacional contra uma potência imperialista pode, sob certas circunstâncias, ser utilizada por outra “grande” potência em seus interesses igualmente imperialistas não deveria ter mais peso em induzir a social-democracia a renunciar ao reconhecimento do direito das nações à autodeterminação” (Lênin, 1964b, p.148). Para além dos interesses e intrigas geopolíticos que geralmente também estão em jogo, as forças da esquerda historicamente apoiaram o princípio da autodeterminação nacional e defenderam o direito dos Estados individuais de estabelecer suas fronteiras com base na vontade expressa da população. A esquerda lutou contra guerras e “anexações” porque está ciente de que elas levam a conflitos dramáticos entre os trabalhadores da nação dominante e da nação oprimida, criando as condições para que estes se unam à sua própria burguesia, considerando aqueles seus inimigos. Em Balanço da discussão sobre a autodeterminação (1916), Lênin escreveu: “Se a revolução socialista fosse vitoriosa em Petrogrado, Berlim e Varsóvia, o governo socialista polonês, assim como os governos socialistas russo e alemão, renunciaria à ‘retenção forçada’, digamos, dos ucranianos dentro das fronteiras do Estado polonês” (Lênin, 1964a, p.329-330). Por que sugerir, então, que algo distinto seja admitido no governo nacionalista liderado por Vladimir Putin?Por outro lado, um número excessivo de pessoas de esquerda cedeu à tentação de se tornar – direta ou indiretamente – cobeligerantes, alimentando uma nova union sacrée (expressão cunhada em 1914 para saudar a abjuração das forças da esquerda francesa que, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, decidiu endossar as esco-lhas bélicas do governo). Tal posição hoje serve cada vez mais para borrar a distinção entre atlantismo e pacifismo. A história mostra que, quando não se opõem à guerra, as forças progressistas perdem uma parte essencial de sua razão de ser e acabam por engolir a ideologia do campo oposto. Isto acontece sempre que os partidos de esquerda fazem de sua presença no governo a forma fundamental de mensurar sua ação política – como fizeram os comunistas italianos ao apoiar as intervenções da Otan no Kosovo e no Afeganistão, ou a maioria do Unidas Podemos hoje, que une sua voz ao coro unânime de todo o arco parlamentar espanhol a favor do envio de armas ao exército ucraniano. Tal conduta subalterna foi punida muitas vezes no passado, inclusive nas urnas, assim que a ocasião surgiu.

Bonaparte não é democracia

Na década de 1850, Marx redigiu uma série brilhante de artigos sobre a Guerra da Crimeia que contém muitos paralelos interessantes e úteis com os dias atuais. Em Revelações da história diplomática do século XVIII (1857), falando sobre o grande monarca moscovita do século XV – considerado como aquele que unificou a Rússia e lançou as bases para sua autocracia –, Marx afirmou: “Basta substituir uma série de nomes e datas por outros e fica claro que as políticas de Ivan III […] e as da Rússia de hoje não são apenas semelhantes, mas idênticas” (Marx, 1986,p.86). Em um artigo para o New-York Daily Tribune, no entanto, em oposição aos democratas liberais que exaltavam a coalizão anti-Rússia, ele escreveu: “É um equívoco descrever a guerra contra a Rússia como uma guerra entre liberdade e despotismo. Afora o fato de que, se este fosse o caso, a liberdade seria representada nesta ocasião por um Bonaparte, todo o objetivo declarado da guerra é a manu-tenção […] dos Tratados de Viena – os mesmos tratados que anulam a liberdade e independência das nações” (Marx, 1980, p.228). Se substituirmos Bonaparte por Estados Unidos da América e os Tratados de Viena por Otan, estas observações parecem ter sido escritas hoje.O pensamento daqueles que se opõem tanto ao nacionalismo russo e ucraniano quanto à expansão da Otan não mostra prova de indecisão política ou ambigui-dade teórica. Nas semanas recentes, vários especialistas forneceram explicações sobre as raízes do conflito (que em nada reduzem a barbárie da invasão russa), e a posição daqueles que propõem uma política de não alinhamento é a forma mais eficaz de acabar com a guerra o mais rápido possível e garantir o menor número de vítimas. Não se trata de se comportar como as “belas almas” embebidas em idealismo abstrato, que Hegel julgava incapazes de abordar a realidade concreta das contradições terrenas. Pelo contrário: a questão é chamar a atenção para o único antídoto verdadeiro contra uma expansão ilimitada da guerra. Não há fim para as vozes que clamam por mais gastos militares e recrutamento, ou para aqueles que, como o Alto Representante da União Europeia para Relações Exteriores e Política de Segurança, pensam que é tarefa da Europa fornecer aos ucranianos “as armas necessárias para a guerra”(Borrell, 2022). Mas, em contraste com essas posições, é necessário buscar a atividade diplomática incessante com base em dois pontos firmes: a desescalada do conflito e a neutralidade da Ucrânia independente.A despeito do aumento de apoio à Otan após os movimentos russos, é ne-cessário trabalhar de modo mais árduo para garantir que a opinião pública não enxergue na maior e mais agressiva máquina de guerra do mundo – a Otan – a solução para os problemas de segurança global. Deve-se mostrar que ela é uma organização perigosa e ineficaz, que, em seu ímpeto de expansão e dominação unipolar, serve para alimentar as tensões que levam à guerra no mundo. Em O socialismo e a guerra, Lênin argumentou que os marxistas diferem dos pacifistas e anarquistas na medida em que “consideram ser necessário historica-mente (do ponto de vista do materialismo dialético de Marx) estudar cada guerra de modo individual”. Continuando, afirmou que: “Na história, houve inúmeras guerras que, apesar de todos os horrores, atrocidades, angústias e sofrimentos que inevitavelmente acompanham todas as guerras, foram progressistas, ou seja, beneficiaram o desenvolvimento da humanidade” (Lênin, 1971, p.299). Se isto foi verdade no passado, seria míope simplesmente repeti-lo nas sociedades con-temporâneas, nas quais as armas de destruição em massa estão continuamente espalhando-se. Raramente as guerras – que não devem ser confundidas com revo-luções – tiveram o efeito democratizante que os teóricos do socialismo esperavam. Na verdade, muitas vezes elas provaram ser a pior maneira de levar a cabo uma revolução, tanto pelo custo em termos de vidas humanas quanto pela destruição das forças produtivas que acarretam. De fato, as guerras disseminam uma ideo-logia de violência, frequentemente associada aos sentimentos nacionalistas que dilaceraram o movimento dos trabalhadores. Raramente favorecendo práticas de autogestão e democracia direta, elas ampliam o poder das instituições autoritárias. Trata-se de uma lição que também a esquerda moderada nunca deve esquecer.Em uma das passagens mais férteis de Reflexões sobre a Guerra (de 1933), Simone Weil indaga se é possível que “uma revolução evite a guerra”. Para ela, essa é a única “possibilidade débil” que temos se não quisermos “abandonar toda a esperança” (Weil, 2021, p.101). A guerra revolucionária frequentemente transforma-se no “túmulo da revolução”, já que “os cidadãos armados não têm os meios para fazer a guerra sem um aparato de controle, sem pressão policial, sem tribunal especial, sem punição por deserção”. Mais do que qualquer outro fenômeno social, a guerra incha o aparato militar, burocrático e policial. “Ela leva ao apagamento total do indivíduo perante a burocracia estatal”. Logo, “se a guerra não terminar imediata e permanentemente […], o resultado será meramente uma daquelas revoluções que, nas palavras de Marx, aperfeiçoam o aparelho de Estado em vez de destruí-lo” ou, de modo ainda mais claro, “ela significaria até mesmo estender, sob outra forma, o regime que queremos suprimir”. Em caso de guerra, então, “devemos escolher entre obstruir o funcionamento da máquina militar na qual nós mesmos constituímos as engrenagens, ou ajudar essa máquina a esmagar cegamente vidas humanas” (ibid., p.101-2). [8] Para a esquerda, a guerra não pode ser “a continuação da política por outros meios”, para citar a famosa frase de Clausewitz. Na realidade, ela apenas certifica o fracasso da política. Se a esquerda deseja retomar a hegemonia e mostrar-se capaz de se valer de sua história para as tarefas de hoje, ela precisa escrever inde-levelmente em seus estandartes as palavras “antimilitarismo” e “não à guerra!”.

* Artigo originalmente publicado com o título “War and the Left: Considerations on a Chequered History”, Critical Sociology, v.48, n.5, 2022. Tradução de Eduardo Altheman.
** Marcello Musto é professor de Sociologia na York University (Toronto, Canadá) e especialista no pensamento socialista e na história do movimento operário. Seus escritos – disponíveis em www.marcellomusto.org – foram publicados mundialmente em 25 idiomas.

[1] “Nossas instituições sociais, bem como a centralização do poder político, são uma causa perma-nente de guerra, que só pode ser eliminada por uma reforma social completa”. Um texto anterior apresentado pela Associação Internacional dos Trabalhadores no Congresso da Paz de Genebra, realizado em setembro de 1867, afirmava que: “para acabar com a guerra, não basta acabar com os exércitos; é preciso mudar a organização social no sentido de uma distribuição cada vez mais equitativa da produção” (apud Musto, 2014a, p.234). (Cf. Marx, 2014, p.92).

[2] Este período testemunhou o nascimento da ideia de “guerra revolucionária”. Em um ensaio breve, porém incisivo, intitulado Reflexões sobre a Guerra, Simone Weil mostrou que as ideias sobre a guerra defendidas pelas seções mais radicais da esquerda tinham muito pouco em comum com o pacifismo e eram de fato inspiradas na Revolução Francesa. Em 1792, a França declarou guerra à Áustria e tornou-se difundida a ideia de exportar princípios revolucionários para os povos submetidos às monarquias obscurantistas que governavam a Europa. Os girondinos consideraram a guerra de 1972 uma cruzada pela liberdade: “a guerra revolucionária, seja ela defensiva ou ofensiva, não apenas [era] legítima, mas uma das formas mais gloriosas de luta da classe trabalhadora contra os opressores” (Weil, 2021, p.94). Robespierre, contudo, era mais cético: ele percebeu que a guerra nunca libertara nenhum povo estrangeiro e que “a liberdade não se traz na ponta de baionetas” (Robespierre, 1974, p.129). Ele também compreendeu que a propagação da guerra favorecia o despotismo militar e minava a liberdade do povo.

[3] Alguns destes pontos podem ser comparados com as reflexões de Charles Wright Mills (1956) em A elite do poder, livro no qual o establishment militar é visto como um elemento determinante no governo burocrático.

[4] Na época da Guerra Franco-Prussiana de 1870, Mikhail Bakunin também exortou os trabalhadores a transformar a guerra patriótica em guerra revolucionária. (Cf. Musto, 2014b, p.49).

[5] Segundo Simone Weil (2021, p.96), esta terminologia foi abandonada após o término da Primeira Guerra Mundial, quando, diante de “massas castigadas pela guerra, […] os partidos que alegavam representar o proletariado [foram forçados] a usar uma linguagem puramente pacifista”.

[6] Enquanto o movimento comunista via a União Soviética como o ponto de referência para a revolu-ção proletária internacional, tomava forma em Moscou a teoria do “socialismo em um só país”. De acordo com a visão desenvolvida por Bukharin e Stálin na década de 1920, a prioridade absoluta para o movimento comunista deveria ser a consolidação do socialismo na Rússia. Em A Terceira Internacional depois de Lênin (1928), Trotsky criticou agudamente essa guinada: “A tarefa dos par-tidos na Comintern assume um caráter auxiliar; sua missão é proteger a URSS de uma intervenção e não lutar pela conquista do poder” (Trotsky, 1966, p.61).

[7] Entre as vozes que se insurgiram contra essa política estava a de Leon Trotsky. Em uma série de apelos urgentes por uma frente única antifascista dos partidos operários, ele denunciou a linha de Moscou segundo a qual “todos os partidos na Alemanha – dos nazistas aos social-democratas – eram apenas variedades do fascismo e estavam levando a cabo o mesmo programa” (Trostky, 1971, p.422).

[8] Weil concluiu seu texto com estas palavras: “não importa o nome que receba – fascismo, demo-cracia ou ditadura do proletariado –, o principal inimigo continua sendo o aparato administrativo, policial e militar; não o inimigo do outro lado da fronteira, que é nosso inimigo apenas na medida em que é inimigo de nossos irmãos e irmãs, mas aquele que alega ser nosso defensor enquanto nos transforma em seus escravos. Em qualquer circunstância, a pior traição possível sempre consiste em concordar com subordinar-se a esse aparato e, para servir-lhe, espezinhar todos os valores humanos em si mesmo e nos outros” (Weil, 2021, p.103).

 

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Journal:

Crítica Marxista

Pub Info:

Vol. 29 (2023), n. 55, 9–26

Reference:

DOI: 10.53000/cma.v29i55.18862

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